90 carnavais sem Chiquinha Gonzaga
A compositora, pianista, maestrina e feminista Chiquinha morria no Rio de Janeiro, em 28 de fevereiro de 1935, uma antevéspera de Carnaval, época marcada por sucessos como "Ô abre alas"
TEXTO Danielle Romani
25 de Fevereiro de 2025
Chiquinha deixou um legado de cerca de 2 mil composições, em diversos ritmos, como marchas, polcas, maxixes, tangos e habaneras
Foto Domínio público
Há 90 anos, no dia 28 de fevereiro de 1935, morria a compositora e pianista Chiquinha Gonzaga. Nos seus 87 anos bem vividos, afrontou convenções sociais: teve uma vida boêmia, quando as mulheres mal podiam sair de casa; separou-se de um marido rude, que a impedia de tocar qualquer instrumento e enfrentou o julgamento alheio para viver sua vida como desejava. Na prática, Chiquinha foi a primeira grande feminista brasileira.
Graças à coragem de desafiar padrões, foi a primeira maestrina brasileira, e tornou-se uma musicista reconhecida ao se consagrar tanto por obras eruditas como por composições populares, que caíram no gosto dos brasileiros. Ao morrer, deixou como legado um acervo de aproximadamente 2 mil composições, com inegável contribuição para a formação da Música Popular Brasileira. Alguns críticos a consideram, por sua expertise e ousadia, a própria mãe da MPB.
A artista teve aulas de música desde a infância e compôs a primeira canção com apenas 11 anos. Chiquinha começou a tomar contato com os acordes através do piano, e se tornou a primeira compositora de música popular do Brasil. O seu primeiro sucesso foi a polca "Atraente", de 1877. A pianista também escreveu trilhas de peças, como as operetas Forrobodó e A corte na roça.
A composição mais popular de Chiquinha, entretanto, é a marchinha de carnaval "Ó abre alas", que foi lançada em 1899, especialmente para a festividade. Outros sucessos da carioca foram "Gaúcho", um tango, e "Sonhando", uma habanera, gênero criado em Cuba que conquistou os salões europeus.
Com o nome de santa, Francisca Edwiges Neves Gonzaga nasceu em um bairro aristocrata do Rio de Janeiro, em uma família orgulhosa por ser parente do poeta lírico Tomás Antônio Gonzaga. Mas sua primeira certidão revela que sua mãe, Rosa Maria, era filha de escravos e solteira, só vindo a casar depois com o marechal José Basileu Neves Gonzaga, que reconheceu Chiquinha como sua filha.
A artista cresceu como sinhazinha, com aulas de piano, latim, ciências e português, e foi educada para gostar de óperas, valsas, polcas e tangos. A educação que lhe foi dada gerou resultados: aos 11 anos apresentou à família sua primeira das 2 mil composições que faria na vida: "Canção dos pastores".
O pai, militar, e a mãe, filha de escravos, não estavam nem aí para a paixão de Francisca Edwiges. Queriam que cumprissem o roteiro previsto para uma mulher de bem, que se casasse e fosse ter filhos. Aos 16 anos, lhe arranjaram um marido. Um engenheiro de estradas de ferro, Jacinto Ribeiro do Amaral, oficial da Armada Imperial, que logo a engravidou. Mas não suportou as longas ausências do marido sempre embarcado, as humilhações, menos ainda as ordens dele para que não se envolvesse com a música. Após anos de casada, e com três filhos, Chiquinha separou-se.
Pedir separação, naqueles tempos, era visto como uma afronta, e o ex-marido com o orgulho ferido moveu uma ação de divórcio perpétuo no Tribunal Eclesiástico, por abandono do lar e adultério.
Não demorou para Chiquinha descobrir o amor. Apaixonou-se pelo engenheiro João Batista de Carvalho, um Don Juan que adorava música e com quem viveu até em canteiros de obras no interior de Minas. No Rio, o casal foi muito hostilizado, isso teria abalado João e o casamento.
A infidelidade do companheiro fez com que Chiquinha o abandonasse e levasse a filha que tivera com ele, Alice. Mas nesse caso, igualmente, João entrou na justiça e ficou com a guarda da menina.
Para se sustentar, Chiquinha passou a morar em São Cristóvão, e começou a dar aulas de piano e idiomas, tocar em festas, cabarés e rodas de choro, além de vender suas composições de porta em porta.
Seu primeiro sucesso foi a polca "Atraente", lançada em 1877, que abriu caminho para a pianista, mas não sem percalços. Sua música "Aperte o botão", por exemplo, foi proibida pelo presidente Floriano Peixoto, que pediu a prisão de Chiquinha, por considerar a música irreverente demais. Isso, entretanto, só aumentou a fama da artista.
Frequentadora da boemia, era amiga de José do Patrocínio, Olavo Bilac, Carlos Gomes, Osório Duque Estrada e Artur Azevedo. Em 1883, musicou a peça Festa de São João e, em 1885, a opereta A corte na roça, que a tornou um nome da moda entre os autores do teatro. Ao longo da sua vida, compôs 77 partituras teatrais.
Apesar do preconceito contra o violão, considerado um instrumento menor, Chiquinha começou a tocá-lo e compôs muitos maxixes, um ritmo tido como obsceno pela dança agarradinha. Graças ao violão, Chiquinha tornou-se a primeira mulher a reger um concerto com 100 músicos de periferia, no palco do Teatro São Pedro, em 1887.
Em 1912, outro espetáculo teatral, Forrobodó, um dos maiores sucessos de sua carreira, mostrava que a compositora continuava envolvida com ideias e amigos irreverentes, já que retratava um baile da periferia carioca e era repleta de palavrões, embora Chiquinha só a tivesse musicado.
O auge da sua trajetória deu-se com a realização de marchinhas. "Ô abre alas", feita a pedido do Cordão Carnavalesco Rosa de Ouro para o Carnaval de 1899, fez com que a compositora fosse eternizada. Tanta irreverência e popularidade a fez se aproximar de mulheres revolucionárias e famosas, como a primeira-dama Nair de Teffé, que convidou Chiquinha para tocar o maxixe "Corta jaca" no violão, na última recepção oficial do marechal Hermes da Fonseca, no Palácio do Catete.
A essa altura, sua fama já havia extrapolado o Brasil. Em 1902, começou turnês internacionais para Portugal, Bélgica, Espanha, Itália, Alemanha, Inglaterra e Escócia. Em 1917, fundou a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (Sbat), que regulamentou os direitos autorais dos artistas.
À época, já viajava acompanhada de seu mais novo amor: João Batista, 36 anos mais novo que ela. Conheceram-se quando ele tinha 16 anos e ela 52. Para evitar escândalos, o reconheceu como filho. João esteve ao seu lado até o dia de sua morte, 28 de fevereiro, antevéspera do Carnaval.
Alguns autores se questionam, na atualidade, por quais motivos Chiquinha teria excluído o jazz de suas obras. Muitos também se perguntam como a fornecedora de partituras para o teatro de revistas, que não tenha tomado conhecimento do primeiro samba canção ("Ai Ioiô") de Henrique Vogeler e Marques Porto, com letra de Luís Peixoto, lançado pela cantora Araci Cortes, em fins de 1928.
Também não existem sinais de que tenha dado atenção diante do sucesso de "Pelo telefone", de Donga, apresentado pela primeira vez em 1916. Foi esse o primeiro samba gravado e tinha um andamento muito semelhante ao do maxixe. Chiquinha, aparentemente, não se interessou.
Chiquinha teve como sucessora, embora sem o mesmo reconhecimento na posteridade, a pianista e compositora Tia Amélia, cuja estreia na Rádio Clube de Pernambuco, aos 25 anos, desdobrou-se em temporadas no Rio e São Paulo. Outra grande instrumentista e compositora foi a violonista Rosinha Valença, que teve uma sólida carreira em discos e shows.
DANIELLE ROMANI, repórter especial das revistas Continente e Pernambuco