Cena de 'Cléo das 5 às 7h', obra-prima da cineasta e fotógrafa Agnès Varda
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"Mamãe, por que só os meninos estão ganhando em todos os lugares?"
Essa foi a pergunta que Marina, uma menina de 4 anos fez, ao ver com sua mãe a apuração do segundo turno das eleições municipais no Brasil, no último domingo (29). Estamos em 2020 e uma criança que aprendeu a falar há poucos anos já começa a perceber a desvantagem que o gênero feminino enfrenta. No domingo, diversas candidatas à prefeitura perderam a disputa com seus rivais. Obviamente, nessa equação entram questões como o antipetismo, antiesquerdismo, as campanhas difamatórias e a tendência à continuidade do partido que estiver no poder. Mas o machismo não pode ser descartado, pois ele permeia todas as esferas privadas e públicas, inclusive no fato de uma cidade como o Recife nunca ter tido uma prefeita e de, neste ano, apenas uma mulher (Cinthia Ribeiro, em Palmas/TO) ter sido eleita para administrar uma das 27 capitais brasileiras.
A pergunta que Marina fez à sua mãe me fez lembrar de um pensamento que eu tinha sobre uma canção composta pela cantora Marina (e seu irmão Antonio Cicero) e bastante conhecida na voz de Maria Bethânia, O lado quente do ser (1980). Quando eu era adolescente, essa música ainda tocava nas rádios e radiolas, e eu ficava intrigada com o início da letra: "Eu gosto de ser mulher…" Pensava: "Por que uma mulher gostaria de ser mulher?"
Nessa época, eu já menstruava (começou aos 11 anos) e isso, pra mim, era motivo suficiente para não gostar de ser mulher: o incômodo do absorvente a ser frequentemente trocado, do sangue descendo em situações sociais e das dores no útero todo santo mês. Mas já havia também outro incômodo: os olhares de homens desconhecidos e mais velhos para o corpo que estava se desenvolvendo. Passei a ter vergonha dos seios que começavam a surgir e a achar ridículo andar com os braços soltos.
Meu avô Vitor, pai da minha mãe, uma vez, indo comigo a um comércio do bairro, me viu andar com os braços presos para trás das costas. E me deu ordens como se estivéssemos no Exército: "Solta esses braços! Assim ó: barriga pra dentro! Peito pra fora!" Começou a marchar e a fazer "hup!", como se eu fosse um soldado e ele, o superior. Ele fez isso de maneira cômica. A tática funcionou. Aprendi a andar sem ter vergonha de balançar os braços e de estufar o peito.
No entanto, já começava a descobrir que o mundo era um cão raivoso. Alguns anos antes dessa marcha, eu estava na casa de uma vizinha, onde circulavam muitas pessoas. Não tinha avisado à minha mãe. Ela achava que eu estava em outra casa da nossa rua. Quando ela soube, me disse que era perigoso e que eu poderia sofrer uma coisa chamada violência sexual, estupro, que era quando... Um alerta que eu nunca esqueci e que acabou de vez com a fase da ingenuidade. Descobri que a vida não se resumia às brincadeiras com as amigas e amigos da rua e do colégio. Que o mundo podia ser um lugar perigoso.
Essas descobertas vão tirando pouco a pouco a leveza da infância. Um dia, estava passando pela lateral da casa de uma vizinha, onde também circulava muita gente, e alguém pediu para que eu baixasse a calcinha. Na época, eu deveria ter 7, 8 anos... Essa lembrança só me apareceu décadas depois. Lembro que uma figura masculina, provavelmente um adolescente, me pedindo para que eu fizesse isso. Era à tarde. Até hoje, não consigo lembrar quem foi – talvez porque eu já precisasse usar óculos de grau, o que só aconteceria aos 9 anos. Só lembro claramente, de fato, da sensação estranha da situação.
Nessa época, o mundo inteiro assistia, pela TV, ao casamento do Príncipe Charles com a Princesa Diana. Era transmitida, além da cerimônia, a ideia de que o conto de fadas realmente existia. Somente mais de uma década depois, descobrimos que o matrimônio foi um arranjado, que havia traição por parte dos dois e de que o verdadeiro afeto estava na relação fora do casamento entre Charles e Camilla Parker Bowles – que, no estouro da bomba midiática, era tratada como uma vilã de novela, destruidora de lares imperiais. Até hoje, estão juntos, e nas fotos, pelo menos, parecem bem mais felizes e sintonizados do que Charles e Diana.
Os podres da família podem ser vistos na quarta temporada de The Crown, que estreou no dia 15 de novembro na Netflix. Além das questões políticas, a série foca nos bastidores da vida da Rainha Elizabeth desde sua infância e até a velhice. Destaca-se o fato dela ter sido vítima, desde a coroação ainda jovem, do machismo dos altos funcionários palacianos e da figura do Primeiro-Ministro. Seria apenas uma figura decorativa, imagem que a série alega que ela vem tentando combater.
Quando Margaret Thatcher assumiu o posto de premiê da Grã-Bretanha, em 1979, a Rainha considerava que ambas conseguiriam estabelecer um elo baseado no gênero. No entanto, as origens, a formação e as diferentes funções e visões de cada uma as afastaram da possibilidade de uma relação mais próxima. A série mostra o machismo do qual a Dama de Ferro foi vítima até dentro da equipe (só de homens) montada por ela. Thatcher nunca quis mulheres em seu staff, alegando que seriam muito passionais – assim também como Janis Joplin não quis colocar mulheres na sua banda, sob o argumento de que não queria concorrência (isso está registrado no documentário Little Girl Blue, de 2015).
O aspecto da representação feminina em lugares de poder e de destaque é fundamental para a igualdade de gênero e para a evolução da própria humanidade. No começo dos 1980, se havia a imagem de Lady Di cultivando a ideia de conto de fadas, por outro lado, o advento de Madonna trouxe uma imagem de independência, força e rebeldia. Sua atitude altiva e livre era o exemplo mais autêntico daquilo que hoje se chama de empoderamento. Não à toa, no primeiro registro da primeira grande turnê da cantora, a Virgin Tour (1985), apareceram milhares de garotas vestidas da mesma forma que ela, como uma representação daquilo que elas queriam assumir a partir de então. Somente anos depois, a crítica, formada em sua maioria por homens, veio entender a importância de Madonna na música pop, na cultura e no comportamento.
Essa mesma crítica masculina fez cair sobre diversas artistas o manto da invisibilidade, como Kim Shattuck (morta em 2019), compositora, guitarrista e vocalista da banda Muffs, surgida nos anos 1990 – época em que movimentos como o grunge e o mangue eram formados por homens e contratados por homens. Outra artista ofuscada pela crítica, morta também em 2019, foi Agnès Varda. Precursora da Nouvelle Vague, realizou diversos filmes e uma obra-prima chamada Cléo das 5 às 7, que é pouco conhecida apenas porque não saiu da cabeça de Truffaut ou Godard.
A área cinematográfica é onde se cometem algumas das maiores injustiças históricas contra as mulheres na arte, seja o assédio sexual, seja a desvantagem numérica delas nas funções de roteiristas, diretoras, executivas e até protagonistas das narrativas. São várias amostras desse machismo, mas, para ficar em apenas uma mais conhecida: até hoje apenas uma mulher (Kathryn Bigelow) ganhou o Oscar de Melhor Direção.
Outra injustiça histórica, bem menos conhecida, é de que o cinema, como o conhecemos, foi criado por uma mulher, a francesa Alice Guy-Blaché. E quase ninguém sabe disso. Muito se fala dos irmãos Lumière, que inventaram o cinematógrafo e fizeram a primeira exibição. Porém, a filmagem deles não tinha uma narrativa. Era apenas um pedaço de película. Alice viu essa exibição e realizou aquilo que transformou uma invenção tecnológica em arte: criou um roteiro, montou as cenas de acordo com o texto, contou uma história. Isso tudo antes de George Méliès. O documentário Alice Guy-Blaché: a história não contada da primeira cineasta do mundo (2020) tenta reverter esse apagamento.
Quando uma mulher chega a uma função tradicionalmente ocupada por homens, há uma celebração do "feito". Mas parece que se comemora uma exceção e não um ponto de virada definitiva do status quo. Às vezes soa como se a façanha fosse um período de experiência do tipo "vamos ver se ela se sai bem nessa". Por isso, a retirada de Dilma Rousseff do cargo de presidente da República, em 2016, foi um golpe também no orgulho das mulheres, pelo menos, nas que entenderam o simbolismo e as consequências políticas e sociais daquilo.
Quando se diz que Lula foi o melhor presidente que o país já teve, esse elogio também se direciona a Dilma, na medida em que o próprio ex-presidente afirmou que ela era o seu braço direito no período em que ocupou o cargo de ministra da Casa Civil. O fato de Lula ter prestado esse reconhecimento foi crucial para o currículo político de Dilma Rousseff – se é que há algum futuro político-partidário para ela, depois de toda a tentativa de destruição de sua reputação.
O reconhecimento, mesmo que tardio, tem sua importância. Vejamos o caso de John Lennon. Apenas em 1980, no ano de sua morte, ele revelou que deveria ter creditado a Yoko Ono a parceria de sua música mais famosa, Imagine, de 1971. A letra era inspirada em poemas escritos pela artista visual Yoko Ono para o livro Grapefruit (1964). Em entrevista à BBC, ele afirmou que, naquela época, "era mais egoísta, um pouco mais machão. Eu meio que escondi a contribuição dela." Lennon admitiu a sua postura machista. Mas Yoko, no intuito de não manchar a imagem dele, disse recentemente que foi uma decisão dos dois.
Talvez Lennon tenha dado, 40 anos atrás, a senha da mudança: se os homens começarem a admitir as suas posturas machistas, haverá a possibilidade de acelerar uma transformação na sociedade. As mulheres, no entanto, não podem mais botar panos quentes em toda a situação. Está na hora de enxergar o mal que os homens vêm causando ao mundo, com as guerras, as violências urbanas, domésticas, sexuais e homofóbicas, o desmatamento, o aquecimento global. Boa parte dessas tragédias podemos colocar, sem medo de errar, na conta dos homens. Se fossem as mulheres que as tivessem cometido, haveria um consenso masculino em dizer: basta, chegou a nossa vez.
Recentemente tivemos mais outro exemplo de que o mundo precisa, com urgência, dessa transformação. A pandemia do novo coronavírus foi um teste para diversos líderes mundiais. Mas países liderados por mulheres demonstraram um melhor desempenho nas ações de combate ao vírus e, como consequência, tiveram menos mortes pela Covid-19: Nova Zelândia, Alemanha, Taiwan, Noruega e Islândia. A semelhança entre essas mulheres, além de administrarem países com economias desenvolvidas e sólidos sistemas de saúde, é que todas investiram em medidas preventivas.
A primeira-ministra islandesa, Katrín Jakobsdóttir, em janeiro, mesmo antes do registro do primeiro caso da doença, testou massivamente sua população e proibiu reuniões com mais de 20 pessoas. A presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, criou um centro de controle de epidemias, passou a rastrear infecções e aumentou a produção de equipamentos de proteção individual (EPI). A chanceler alemã Angela Merkel montou o maior esquema de testagem, rastreamento e isolamento da Europa. A resposta a isso já pôde ser vista nas urnas: Jacinda Ardern, da Nova Zelândia, foi reeleita em outubro.
Em 2020, as mulheres ocupam apenas 21 cargos de Chefes de Estado nos 193 países e são somente um quarto dos membros dos parlamentos do mundo. Mas será que daqui a 20, 30, 40 anos, a geração de Marina, hoje com 4 anos, ainda vai ouvir, após uma eleição no Brasil: "Mamãe, por que só os meninos estão ganhando em todos os lugares?"
P.S.: Apesar de tudo, eu gosto de ser mulher.