Mirante

Uma selfie com o furacão

TEXTO Débora Nascimento

30 de Junho de 2020

Cena de 'Um homem sério' (2009), dos Irmãos Coen Reprodução

Tem um filme dos irmãos Coen chamado Um homem sério (2009). Assisti há 10 anos. É um trabalho pouco conhecido da dupla, mas nunca me esqueci dele. E, desde que o Brasil se meteu nessa enrascada política, a partir de 2013, com os protestos ambíguos nas ruas, com o cínico questionamento das eleições em 2014, com o processo do impeachment em 2016, com o governo Temer e, a cereja do bolo, a eleição de Bolsonaro em 2018, me lembro sempre da imagem final desse filme. Um imenso furacão chegando. Fim. Sobem os créditos.

Bom, pela lei do spoiler, 10 anos depois, já se pode contar o final de um filme. Mas parei com os spoilers por aqui, até porque não é exatamente isso que interessa e, sim, o que o roteiro tem a ver conosco. O protagonista está atolado em problemas em todas as áreas de sua vida: saúde, trabalho, dinheiro, casa... Não precisava de mais outro e de maior magnitude. E essa é a piada tragicômica derradeira. Mesmo com tudo o que foi antecipado aqui da história, para quem não viu, recomendo… o filme.

Já na nossa história da vida real, a eleição de Bolsonaro, para mim, era como aquele furacão chegando ao Brasil, quando já estávamos atolados até o pescoço na lama das desventuras. Depois fui descobrindo que o furacão ainda nem era propriamente Bolsonaro em si. Era ele, sim, mas somado a tudo o que simboliza, atrai e carrega consigo, o que não é coisa de se ignorar. Sem contar com a inenarrável incompetência para lidar com questões urgentes, a exemplo do derramamento de óleo no litoral brasileiro e, agora mais gritantemente, o novo coronavírus.

Diz o surrado ditado, nada está tão ruim que não possa piorar, principalmente no Brasil: agora estamos tendo que lidar com a ameaça de uma nova ditadura. Numa pesquisa no Google, em qualquer dia, você encontra uma notícia fresquinha sobre o assunto. Essa palavra é tão séria que deveria ser acompanhada por um sinal da cruz e um “cruz-credo” bem alto. Mas até a própria discussão, paradoxalmente, está naturalizando a palavra, assim como o AI-5. O ato institucional, assinado em ‎13 de dezembro de 1968, que implantou a fase mais sangrenta do período ditatorial, de repente parece que voltou à moda, como se fosse a volta da pochete, da calça-cargo e da papete.

Não faz muito tempo, o Jornal Nacional divulgava uma pesquisa de opinião sobre se as pessoas concordavam ou não com o retorno da ditadura militar, da censura e da tortura. Assisti chocada. Uma enquete sobre algo inconstitucional é tão surreal, que parece uma esquete do Monty Python, só que ruim. Esse tipo de discussão não deveria nem ser colocado à prova, porque é ultrajante até cogitar. A própria consulta popular só existe porque estamos, bem ou mal, numa democracia. No dia 29 de junho, saiu o resultado de outra pesquisa. Segundo o Datafolha, ‎78% dos brasileiros consideram o regime militar uma ditadura.

E agora farei uma ponderação, que pode ser polêmica, mas vai assim mesmo: sempre fico na dúvida se a recente naturalização desses termos seriíssimos não começou com o Golpe de 2016. Confesso que, quando a palavra “Golpe” passou a circular na boca dos representantes da esquerda, senti um receio inicial (e passageiro) em adotá-la. Por um momento, achei o termo muito forte, carregado de simbolismo de um passado amargo e não tão distante. Até então, a palavra “Golpe”, no Brasil, era a abreviação do Golpe Militar de 1964 – expressão usada por quem fosse, claro, de esquerda. A direita inventou a denominação equivocada de “Revolução (de 64)”, que, há poucos anos, ouvi da boca de uma pessoa jovem e tive que corrigir na base do “Pelo amor de Deus”.

Mas, bem, talvez, com o nosso intuito de querer denunciar o Golpe de Estado (impeachment de Dilma sem crime de responsabilidade, posse de Temer, entrega do pré-sal, retirada de direitos trabalhistas, prisão de Lula) que estava acontecendo, em plena luz do dia em 2016, contra a democracia, tenhamos também paradoxalmente naturalizado a palavra anteriormente tão carregada de outras características agregadas e estimulado o insconsciente coletivo ultraconservador a realimentar a ideia de uma ruptura – afinal, o descarado Golpe de Estado de 2016 ocorreu diante dos nossos olhos e de todas as instituições democráticas e... ficou por isso mesmo. Dois dias depois, o Senado resolvia que as pedaladas fiscais não seriam crimes de responsabilidade fiscal, com risco de impeachment.

Para quem considera que aquele impeachment não atingiu o nosso estado democrático, Dilma Rousseff, em entrevista ao El País, no dia 26 de junho, explicou, a partir de uma metáfora perfeita, como funciona esse tipo de golpe: “Se compararmos a democracia a uma árvore, a ditadura militar vai lá e corta a árvore. Nos novos golpes que começam a ocorrer – sou um deles, com um impeachment sem crime de responsabilidade –, é como se a árvore fosse invadida por fungos e parasitas, que corroem por dentro as instituições”. Por fora, a democracia está intacta, dá até pra tirar foto ao lado dela. Por dentro, está sendo destruída. O plano do governo atual é avançar com essa corrosão interna: restrições na Lei de Acesso à Informação, cortes de verbas para veículos de comunicação, ataques à imagem da imprensa, do STF e do Congresso Nacional, intervenções em órgãos fiscalizadores e investigadores...

Essa naturalização de palavras muito fortes me lembrou um antigo episódio de um repórter que, convidado a escrever para um veículo de imprensa, pôs na sua matéria, do começo ao fim, apenas fontes com a mesma opinião. Orientado a ouvir os dois lados, ou seja, fazer uma regra intrínseca às notícias, principalmente as que envolvem temas polêmicos, ele negou-se e considerou essa condição à publicação do texto um ato de censura. Aqueles que foram, de fato, censurados, e até presos e até torturados, sabem o verdadeiro peso que tem essa palavra e a quem ela deve ser realmente atribuída.

Mas estamos numa época tão arenosa, que até fazer ponderações virou algo arriscado, porque basta muito pouco para se ganhar um inimigo novinho em folha. Isso reflete o momento em que vivemos. O presidente do país é uma figura que representa bem esse comportamento de fabricar inimigos imaginários diariamente: todo e qualquer aliado pode virar, de uma hora para outra, um rival. No final das contas, para ele, ninguém presta, só os filhos 01, 02, 03, 04, 05 (da "fraquejada") e a mulher. E talvez a mãe.

Voltando à metáfora do furacão. O que me fez lembrar da imagem final de Um homem sério, ao pensar na nossa trágica (às vezes, tragicômica) situação, é que, enquanto esse furacão vai se aproximando, no filme, as pessoas, em vez de correrem para se proteger, ficam apenas paradas, olhando o perigo chegar. Aqui, no Brasil, elas podem até fazer uma selfie com ele. 

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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