Mirante

Um pesadelo (ou um sonho) chamado Brasil

TEXTO Débora Nascimento

05 de Novembro de 2017

Caetano Veloso, mais um alvo de ofensas de internautas brasileiros

Caetano Veloso, mais um alvo de ofensas de internautas brasileiros

Foto Divulgação

“Meu protesto a respeito de qualquer censura à expressão da arte no Brasil.” Bastou essa frase para que Fernanda Montenegro se tornasse mais um alvo de insultos na internet. Insatisfeitos com o posicionamento da atriz sobre os recentes casos de censura a obras e artistas em museus, internautas partiram para as agressões verbais. Sem o menor pudor, enxovalharam uma profissional com mais de 60 anos de carreira, uma lenda viva do teatro, do cinema e da TV, e, no mínimo, uma senhora de 88 anos. Num outro post seu, desta vez em defesa do Teatro Oficina e de Zé Celso Martinez, alguém ousou chamá-la de “ordinária”. O que se assiste hoje na internet é um vale-tudo para defender uma visão de mundo e rechaçar a opinião contrária: perde-se o respeito e a civilidade.

Mas Fernanda Montenegro não é a única “ré” nesse julgamento virtual, que expõe e ofende aqueles que contribuem com a nossa cultura e o nosso sentimento de nação. Chico Buarque é outro exemplo. Já há alguns anos, vem sendo mira de xingamentos, como o registrado no vídeo em que dois playboys se acham no direito de abordá-lo na rua para tomar satisfações sobre a sua posição política, o apoio à então presidente Dilma Rousseff. 

Mas como deslegitimar Chico Buarque, se ele é Chico Buarque? Apenas disparando impropérios? A solução encontrada, descredenciá-lo como Chico Buarque, o artista icônico. Um trecho de seu documentário Desconstrução (2006), no qual diz que suas composições foram compradas de autores anônimos, passou a circular pelas redes sociais como se sua brincadeira fosse verdade. E o mais incrível é que muita gente acreditou ou fez de conta que acreditou apenas para tentar manchar seu prestígio. Fica a pergunta: como um país, em sã consciência, um belo dia resolve arregaçar as mangas para jogar no lixo um de seus maiores orgulhos nacionais, somente porque discorda de sua opinião?

O mesmo está acontecendo com outro gigantesco artista, Caetano Veloso, após mostrar-se contrário aos recentes ataques a obras e artistas nos museus, acusados injustamente de pedofilia – grave ofensa que agora recai sobre o próprio Caetano. O tuitaço da hashtag que o chama de pedófilo repercutiu tanto que chegou aos Trending Topics.

Os opositores resgataram, como chantagem discursiva, a primeira relação sexual de Paula Lavigne, uma mulher que muitos, inclusive, tratam, há algum tempo, como uma espécie de bruxa malvada da cultura brasileira. Alguns até abusaram da leviandade e disseram que o músico a estuprou. 

Nunca foi segredo pra ninguém que o casal tem uma diferença gritante de idade, 27 anos. Em 1997, ele escreveu sobre isso no livro Verdade tropical, e, em 1998, ela contou, em entrevista à Playboy, que fez sexo pela primeira vez aos 13 anos com ele, que estava com 40. Ninguém reverberou a declaração. 

O mais lamentável do resgate desse momento da vida pessoal dos dois, de três décadas atrás, é que o artista não está sendo rechaçado por conta de um acontecimento, perante a lei, bizarro (mas que, contrariando a regra, virou um casamento duradouro e com equilíbrio entre os cônjuges). Está sendo rechaçado porque, para tirá-lo de sua posição de formador de opinião, é necessário destruir a sua reputação. 

Em 1986, com a aprovação dos pais dela, Caetano e Paula Lavigne se casaram, tiveram dois filhos, Zeca, 25 anos, e Tom, 20, e permaneceram juntos até 2004. Ela virou sua empresária, produtora, fiel escudeira. Mesmo no período em que estiveram separados, não perderam o contato. E reataram no ano passado. 

A discussão sobre a questão da suposta "pedofilia nos museus", que deveria ser apenas estética, desceu a um nível baixíssimo. O casal processou judicialmente os detratores iniciais, o ator pornô Alexandre Frota e o grupo juvenil de extrema direita MBL. 

Não é por acaso que o foco dos ataques sejam agora Caetano e Paula. Eles vêm promovendo reuniões com artistas, organizando campanhas em favor da floresta amazônica, contra o governo Temer, apoiando iniciativas como o jornalismo alternativo da Mídia Ninja e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). 

No dia 30 de outubro, o músico baiano iria se apresentar, com voz e violão, para os assentados na ocupação do MTST em São Bernardo do Campo (SP). Mas, pela primeira vez no período democrático, foi impedido de cantar. Desde a ditadura militar, sua liberdade de expressão não havia sido tolhida. 

Sob a desculpa de que uma apresentação do cantor representaria um risco às pessoas da ocupação, uma juíza suspendeu a realização do evento – a segurança dos moradores desses assentamentos, no entanto, nunca é levada em consideração durante reintegrações de posse. Se cantasse, Caetano poderia até ser preso e teria que pagar uma multa de R$ 500 mil – coincidentemente, o mesmo valor que os donos do terreno, abandonado há mais de 40 anos, devem de IPTU. 

Se há mesmo um levante de moralidade no país, por que, então, não resgatar o histórico de Roberto Carlos? O cantor envolveu-se com Myrian Rios e Maria Rita, quando ambas tinham 16 anos. Os pais da última esposa foram contra o namoro e o casal somente se reencontrou 14 anos depois. O Rei consegue se esquivar desse tipo de polêmica porque, desde sempre, inclusive durante o período ditatorial no Brasil, nunca se posicionou politicamente.

Os ataques aos que opinam, aos que tomam uma posição, são parte da cultura do ódio que se estabeleceu nas redes sociais. Em outubro, um brasileiro menos conhecido foi outra vítima, Diego Bargas. Após assinar o texto Criada por Danilo Gentili, comédia ri de bullying e pedofilia, em referência ao filme O pior aluno da escola, o jornalista acabou perdendo seu emprego na Folha de S. Paulo

O desfecho se deu depois que o criticado postou no Facebook que o repórter não gostou de seu trabalho porque era um “torcedor do PT” e expôs prints de quatro posts de Bargas em favor de Dilma, Haddad e Lula. E completou o que o jornalista ainda apoiou a “pedofilia nos museus". Bargas passou a sofrer perseguição virtual (bullying) dos seguidores do comediante. 

A Folha de S. Paulo, por sua vez, acatou a suposição, demitiu o funcionário e, diante da polêmica gerada, publicou um texto em que tenta se explicar com seus leitores: “Bargas foi desligado do jornal na última sexta-feira (13/10) por, segundo a direção de redação, ter desrespeitado orientação reiterada sobre comportamento nas redes sociais. Os jornalistas da Folha são orientados a evitar manifestar posições político-partidárias e a não emitir nas redes juízos que comprometam a independência de suas reportagens”.

Diante desse imbróglio, fica a pergunta: o veículo não poderia ter escolhido uma outra forma de punir o seu empregado, para não expô-lo ainda mais e também não se expor? A demissão do repórter virou motivo de regozijo de Gentili e de seus 15 milhões de seguidores, que demonstraram a força de uma massa virtual hoje, quando jornais lutam para sobreviver através de anúncios negociados de acordo com os números de acessos em seus sites.

A postura do jornal lembrou a do Santander Cultural, que, sob o pretexto de não perder clientes, cedeu à pressão de milícias digitais e interrompeu a exposição Queermuseu, no dia 10 de setembro – fato que desencadeou toda essa histeria a respeito de "pedofilia em museu", factoide que é, na realidade, uma cortina de fumaça para desviar a atenção da população dos fatos políticos e também para inventar um discurso destinado ao palanque de muitos que não terão o que dizer em 2018, porque, neste mandato, apenas legislam contra o povo. 

Entidades como a Fenaj emitiram notas contra o desligamento de Bargas e organizaram eventos para discutir o assunto que envolve cobertura jornalística, crítica cinematográfica, posicionamento político e liberdade de expressão. 

Quem saiu vencedor e fortalecido dessa disputa foi o comediante, um dos incentivadores do discurso de ódio nas redes sociais e que, não raramente, faz piadas politicamente incorretas, mais especificamente racistas e misóginas: “O cara esperou uma gostosa ficar bêbada para transar com ela. Todos sabemos o nome que se dá para um cara desses: gênio”. 

Outro exemplo é o vídeo em que ele rasga em pedaços a notificação da deputada federal Maria do Rosário, ex-ministra da Secretaria de Direitos Humanos, esfrega em suas partes íntimas e os envia de volta no mesmo envelope recebido. Com os dedos, esconde a primeira e a última sílaba da palavra "deputada". Seus fãs, inclusive mulheres, o elogiaram, chamando-o de “mito”.

Atitudes como esta estão contribuindo para transformar a geração da “zuêra” numa massa de irracionais e intolerantes. Em um dos posts no Facebook sobre a cisma com o jornalista, uma seguidora escreveu: “Eu acabei de fazer a prova do concurso do Tribunal de Justiça de PE e o tema da redação foram suas piadas. Acredita? Eu tive que discordar de todas elas, porque eu sei que a banca é esquerdista. Mas a verdade é que eu amo seu trabalho”. A fã demonstra ignorar que houve um processo contra o humorista que tramitou no TJPE, por ele ter chamado a maior doadora de leite do Brasil de “vaca” e a comparado a um ator pornô. 

Esse cinismo de alguns concurseiros e vestibulandos, que escondem sua verdadeira opinião para conseguir uma aprovação no mundo civilizado, parece que terá um (mau) final. A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, confirmou, no começo deste mês, a decisão do Tribunal Regional Federal da 1a Região, de atender à ação do Escola Sem Partido e manter a determinação de que a redação no Enem não pode ser zerada, se desrespeitar os princípios dos direitos humanos, conjunto de leis universais criadas após a Segunda Guerra Mundial, para que o mundo não repita os horrores cometidos pelo fascismo e nazismo. 

Ou seja, se alguém agora defender algo desumano, como o trabalho escravo, não terá seu texto reprovado, desde que atenda a todas as regras gramaticais e a uma lógica argumentativa (difícil é conseguir elaborar argumentos lógicos contra os direitos humanos). Em outras palavras, a universidade estará abrigando e gerando novos profissionais sem comprometimento com a sociedade, com o outro, com o humano. O país financiará a formação autorizada de fascistas.

A fama de (pseudo) outsider de Danilo Gentili que, na realidade, mancha a história e a importância dos autênticos humoristas no Brasil, rendeu a ele o emprego no The Noite (exibido no SBT), uma imitação pífia do The Tonight Show Starring Jimmy Fallon. Ele e o seu patrão, Silvio Santos, guardam uma semelhança, além da evidente falta de noção: o descompromisso com o desenvolvimento intelectual e cultural do país. 

No dia 30 de outubro, um vídeo revelou o conteúdo de uma reunião, realizada em agosto, em que o diretor teatral José Celso Martinez Corrêa tenta convencer o dono do Baú da Felicidade a transformar, num parque cultural, o seu terreno, que fica em torno do Teatro Oficina. Isso complementaria o projeto original da arquiteta Lina Bo Bardi, falecida em 1992, e traria vários benefícios à cidade de São Paulo, sufocada por tanto concreto. O empresário quer construir imensas torres residenciais no local. No vídeo, Silvio ri de Zé Celso e de sua falta de recursos e alerta: “Não seja sonhador”. 

Mas o que seria do Brasil sem os sonhadores?

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

 

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