Mirante

“Como são sensatas as pessoas que pensam como nós”

TEXTO Débora Nascimento

11 de Janeiro de 2018

Cena do filme 'Rocco e seus irmãos' (1960), de Luchino Visconti

Cena do filme 'Rocco e seus irmãos' (1960), de Luchino Visconti

FOTO Divulgação

Uma das questões mais intrigantes deste tempo de extrema conectividade é: por que a opinião contrária incomoda tanto? Por que o que o outro pensa provoca tantas reações enfurecidas? Basta observar o comportamento nas redes sociais. A única certeza diária que se tem ao acessar uma delas é que haverá, além dos vídeos de gatos, cachorros e bebês, opinião sobre todo tipo de assunto, intolerâncias e embates.

A alarmante quantidade de discórdias (e suas repercussões) faz parecer que estas são um fenômeno recente. Mas a opinião alheia é algo que sempre despertou a ira dos contrariados, principalmente em momentos de instabilidade econômica e/ou política. Antes das redes sociais e dos smartphones, os debates de ideias costumavam acontecer no âmbito intelectual e através de artigos em jornais. No Recife, na época da ditadura militar, tornou-se rumorosa uma discussão entre respeitáveis nomes da cultura local sobre o movimento tropicalista. O bate-rebate teve início no papel-jornal e foi crescendo até tomar a forma de um soco no rosto.

Com as redes sociais, as brigas de ideias multiplicaram-se exponencialmente, mas também perderam a profundidade. Tempos atrás, a opinião publicada, ou seja, aquela que conseguia um alcance maior de público, era praticamente um item de luxo intelectual, destinado aos especialistas de determinadas áreas. Fora dessa possibilidade, somente opinava para um público maior quem fosse personagem de uma reportagem ou entrevistado no recurso jornalístico conhecido como “fala, povo” – utilizado quando havia questões polêmicas, como o desarmamento dos civis.

Agora, qualquer um com smartphone e que consiga juntar sujeito, verbo e predicado pode – e até acha que deve – expressar o que pensa em maior escala. O que decorre disso é, além de reações revoltosas, a grita dos que consideram que o leigo não deve sair opinando sobre tudo, mesmo nos parcos 280 caracteres do Twitter, para seus 300 amigos virtuais. Em época de extremismos e pouco ceticismo, o receio é que qualquer opinião free style possa gerar alguma faísca para um desdobramento desastroso.

Essa onda de opiniões, além de provocar conflitos (porque todos querem estar com a razão, como traduz a frase do título, de Millôr Fernandes), tem sua importância. Através dela, conseguimos conhecer mais sobre o que pensa o povo brasileiro. Mesmo que o conteúdo não seja lá muito agradável – é surpreendente constatar, nos comentários de portais de notícia e nos blogs de jornalistas, a quantidade de retrógrados, racistas, misóginos e preconceituosos em geral que habitam o país. Por conta do mau comportamento desses internautas, alguns blogueiros, como Leonardo Sakamoto, já retiraram de suas páginas o recurso de interação com leitores. Ou seja, perde-se um dos benefícios da Internet.

Mas o reacionarismo de muitos brasileiros já se apresentava tempos atrás. Na época da ditadura militar, havia, por exemplo, quem enviasse cartas ao governo cobrando mais rigor da censura. Imagine como seria se houvesse redes sociais naquele contexto? Provavelmente teria, de um lado, posts denunciando casos de prisões, desaparecimentos e torturas. Do outro, objeções veementes de que era tudo mentira e "mimimi" de esquerdopatas e seguidores de Jango.

Hoje, os confrontos de pensamento, que poderiam ser instigantes e fundamentais para o amadurecimento intelectual, e até emocional, não vão muito além, nas redes sociais, da possibilidade de desavenças e alavancas de antipatias. Para embaralhar tudo, o Facebook trouxe ao presente um bom punhado de relações que haviam ficado no passado por diversos motivos: falta de proximidade, afinidades e visões de mundo.

A comunicação nesse ambiente virtual é como se você chamasse, para uma mesa de bar, seus amigos, irmãos, primos, vizinhos, conhecidos, colegas de trabalho, ex-colegas de escola, ex-namorados, antigos e atuais chefes, ex-professores, tias, pai, mãe e os avós. Então, começasse a falar, em meio a tanta gente diversa, sobre aborto, corrupção, legalização das drogas, democracia, Game of thrones, Black mirror, liberdade de imprensa, beijo gay na TV e o clipe de Anitta. Isso não tem chance de dar certo. Em algum momento, rolará um “curto-circuito” e, na melhor das hipóteses, alguém vai bloquear alguém.

Por isso, as “bolhas” vêm funcionando como uma fantasiosa forma de melhorar a convivência virtual. Criadas artificialmente pelos algoritmos da internet, que escolhem o conteúdo ao qual temos acesso segundo nossas afinidades, elas criam uma ilusão de harmonia. São uma espécie de representação da vida real – nós costumamos interagir mais com pessoas que possuem gostos e opiniões semelhantes às nossas.

Uma pesquisa realizada recentemente na Universidade de Yale ilustra um pouco como isso funciona. Bebês com idade em torno de um ano foram colocados diante de um teatro de marionetes. No pequeno tablado, um boneco com a camisa vermelha tentava abrir uma caixa sem conseguir e, então, surgia um outro, de camisa azul, que atrapalhava a tentativa. No final, ambos eram oferecidos às crianças. Todas escolheram o "boneco bonzinho", o da camisa vermelha. Mas, depois, o teste mostrava o boneco azul comendo uma papinha que elas também comiam. Então, diante dessa nova informação, as crianças preferiam o "malvado". Agora havia um gosto em comum, uma afinidade entre eles.

Em meio a tantas batalhas de razões, algo está sendo observado e pode ter a ver, também, com essa questão da intolerância à opinião alheia: um encolhimento da crítica. Esse gênero jornalístico, principalmente de cobertura musical, era o mais recorrente dos veículos de imprensa (por conta da grande quantidade de lançamentos na área) e bastante lido (devido ao forte apelo do consumo de música no país). Mas não era/é raro um crítico ser xingado por falar mal do disco de um artista renomado ou simplesmente da moda. Poucos tiveram e têm a coragem de serem iconoclastas. O maior exemplo: Lester Bangs. Para quem não poupava artistas do porte de Lou Reed, ele hoje teria muito material para amolar a sua faca.

Atualmente a crítica musical, em meio à própria crise do jornalismo (nessa transição do papel para o digital e concorrência com diversas fontes de informação e opinião), se vê diante de uma avalanche de discos lançados, após a popularização dos meios de gravação e a enorme oferta no Spotify. Por sua vez, os artistas agora têm seus próprios canais de divulgação, seus perfis nas redes sociais. Não precisam mais dos jornalistas para conseguirem um alcance maior dos seus trabalhos.

Recentemente, quando lançaram seu novo álbum, os Tribalistas simplesmente ignoraram o jornalismo e informaram tudo pelas redes sociais. Nesse contexto, o crítico que mantiver o seu papel e a firmeza de analisar o trabalho de alguém ainda corre o risco de sofrer sanções, como aconteceu com o repórter Diego Bargas, demitido pela Folha de S.Paulo depois de criticar o filme de Danilo Gentili, Como se tornar o pior aluno da escola.

Em sua página no Facebook, o apresentador de TV fez questão de elogiar e recomendar os sites que publicaram resenhas positivas do seu longa – o que rende bons acessos a esses mesmos sites. No caso daquela crítica negativa, instigou uma legião de seguidores revoltosos a irem ao perfil do jornalista para xingá-lo. Talvez se tivesse tantos seguidores e curtidas quanto Gentili, Bargas ainda estaria no seu emprego – a quantidade de seguidores é hoje uma força inegável, como era a audiência da televisão.

Dia desses, naquelas clipagens de tela que ficam nos elevadores e nas praças de alimentação, uma notícia apareceu: “Eleitor de Fulano (presidenciável) é o mais ativo nas redes sociais”. A informação apareceu (com uma foto solene do candidato) como se isso fosse um aspecto positivo seu. Em outras palavras, 2018 promete muita artimanha e confusão – e não vai ser na Sessão da Tarde. A previsão é de muito embate de opiniões, incontáveis fake news, indiretas, bloqueios e muita cara feia no almoço de domingo da família.

A disputa não vai acontecer como antigamente, nas ruas, nos guias eleitorais, nas manipuladoras edições de debates da TV, nas capas da Veja ou nas chamadas do Jornal Nacional. E, sim, nos posts de Facebook e textos de anônimos nos grupos de WhatsApp. De acordo com pesquisa do Ibope, entre 2015 e 2016, “pela primeira vez, a maioria absoluta dos eleitores brasileiros (51%) recebeu informações sobre política pelo Facebook, Twitter ou pelo WhatsApp". Segundo o Instituto, a propaganda que funciona nessas redes é a negativa: "contra alguém ou contra uma ideia, muito mais do que a favor de um candidato".

Esse tsunami de opiniões e desentendimentos avançará sobre o país neste ano e será proveitoso para alguns candidatos. Políticos oportunistas vão aproveitar as marés de palpites e “convicções” para saberem por quais caminhos trilhar sobre temas específicos. O brasileiro disposto a (ou pago para) ocupar esses espaços virtuais, vai interferir no resultado das urnas e no destino do Brasil. Por isso, quem frequentar esses espaços, e deixar passar incólume aquela fake news infame repassada pelo tiozão, não vai ter o direito de reclamar depois. Vivemos numa realidade (e liberdade) bastante assustadora: o poder da informação está literalmente nas mãos de todos. E a verdade, em algum lugar. 

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

 

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