Mirante

Quando o Brasil não precisará mais de heróis?

TEXTO Débora Nascimento

28 de Outubro de 2022

Ilustração Rafael Olinto

Uns quatro anos atrás, mais precisamente em fevereiro de 2018, meses antes da fatídica eleição presidencial daquele ano, eu estava passando o olho pela timeline do Instagram, quando me deparei com uma foto. Nela, o jornalista pernambucano Antonio Martins Neto, que então morava havia poucos anos com sua família em Lisboa, aparecia ao lado de um simpático senhor. Era Marcelo Rebelo de Sousa, apenas o presidente de Portugal. A curiosidade da foto não residia somente no fato de ser uma selfie ao lado da pessoa com o cargo mais importante daquele país. Mas, principalmente, pelo fato de não ter sido tirada no palácio presidencial, e sim em um supermercado.

O presidente português estava fazendo a sua feira, ao final do expediente, quando foi avistado por Martins. Este não perdeu a oportunidade de registrar tal raridade, aos olhos de nós, brasileiros: ver o presidente do país circulando livremente por um lugar tão prosaico quanto um supermercado, algo que, no Brasil, causaria alvoroço e ganharia as manchetes típicas do antigo site Ego: “Presidente vai à feira comprar legumes e frutas”. 

“Sexta, 19:00. Encontro o presidente da República de Portugal no setor de frutas e verduras do supermercado. Olho para ele e ele é que fala comigo”, escreveu Martins no post. “Está só e puxa um carrinho de pequenas compras. Não há segurança, assessor nem empregada de uniforme. E ele ainda corre para apanhar uma laranja que deixou cair e que acabou por rolar pelo chão. Não resisto e peço uma selfie. Outras pessoas fazem o mesmo, de forma discreta, sem qualquer tumulto e sem atrapalhar os outros clientes do supermercado. Do lado de fora do estabelecimento, num shopping da cidade, não há carro com motorista à porta nem batedores.”

Resgato esse episódio inusitado não para falar sobre como era ou é bacana o presidente português “gente como a gente”, que se reelegeu em 2021, mas para falar um pouco sobre algo que, vez ou outra, penso sobre a figura de um político no Brasil, principalmente o presidente. Quando, finalmente, teremos um presidente que poderá fazer uma feira tranquilamente em um supermercado, como uma pessoa normal e sem que isso seja uma forma de autopropaganda como a farofada porca de Bolsonaro? 

Farei a pergunta de outra forma: quando teremos, finalmente, um presidente que não precise ser um personagem público extranatural, imaginado como uma figura mítica ou um salvador da pátria? Quando teremos, enfim, um presidente que seja simplesmente apenas um gestor competente, com programas e ações que não estejam vinculadas ao papel de um super-herói que terá de resgatar pessoas da morte por fome ou violência, mas apenas alguém que, diante de uma sociedade igualitária e civilizada, vai cumprir a Constituição, apresentar propostas inovadoras e continuar ações eficazes de gestões anteriores à sua, sem revanchismos?

É tão sintomático dessa expectativa de se querer ter, no cargo de presidente, uma figura extraordinária ou mítica, que alguém como Lula – nordestino, pobre, oriundo da classe operária – só tenha chegado ao poder porque era exatamente isso: extraordinário. Sua história de vida é digna das grandes obras da literatura: o brasileiro que saiu da extrema pobreza no agreste pernambucano, fugiu da fome e da morte no Nordeste, com a mãe e sete irmãos numa longa viagem em um pau-de-arara, conseguiu sobreviver no Sudeste, perdeu um dedo em um acidente de trabalho numa fábrica, como também perdeu a primeira esposa e o primeiro filho por causa de negligência médica em um hospital público; virou sindicalista, fundador do maior partido de esquerda do país, foi eleito deputado federal e, após quatro tentativas em eleições, presidente do país. 

Anos depois, conseguiu acrescentar mais feitos à sua trajetória. Alvo de uma campanha de assassinato de reputação na mídia hegemônica, foi julgado, condenado e preso injustamente, perseguido pelo juiz de seu processo (este alçado à categoria de herói pela mesma mídia) e procuradores. Conseguiu provar a parcialidade do tal juiz, foi libertado da prisão e está cotado para voltar à presidência, de onde saiu com índice recorde de aprovação em 2011 (87%). O seu palanque arregimenta tanto aliados quanto rivais históricos. A sua campanha tem o apoio dos mais renomados artistas e celebridades nacionais e até internacionais.

A competência e o carisma imenso, que formam o capital político de Lula, são o seu trunfo para um possível terceiro mandato. Isso pode nos garantir a possibilidade de sairmos dessa calamidade que é o governo Bolsonaro. Lula merece ser eleito, por todos os seus méritos. Mas, mais do que isso, nós merecemos que Lula seja eleito. Se ele perder, a perda será mais nossa do que dele. Ele já tem a faixa de melhor presidente da história do Brasil, é uma lenda política conhecida internacionalmente e o maior líder popular do mundo.

Lula foi convocado de sua quase aposentadoria, aos 76 anos, depois de uma prisão espúria de 580 dias, para – literalmente – nos salvar. Não nos esqueçamos. Gostaria de estar exagerando, mas a verdade inescapável é que nosso destino está em suas mãos. Caso ocorra a tragédia de uma vitória de Bolsonaro, este será irrefreável, pois terá o domínio do Executivo, da PGR, das Forças Armadas, das polícias, do Legislativo (ele tem maioria na Câmara e no Senado, e com isso, poderá finalmente interferir no STF, como aumentar vagas, nomear novos ministros e até sugerir o impeachment de magistrados que possam ser considerados pedras no seu caminho). 

Com essa maioria no Congresso, poderá propor uma nova Constituição que lhe dê direitos inimagináveis e, assim, nos tire o resto de dignidade que sobrou depois do Golpe de Estado de 2016. E, claro, teremos a possibilidade da perda total da nossa democracia. Seria uma tragédia com impacto profundo e prolongado no país para, pelo menos, os próximos 30 anos – com isso, nossa geração talvez não consiga nem alcançar, nesse caso, um cenário melhor no futuro. Isso sem falar da Amazônia que, com o desmatamento galopante sob o mandato de Bolsonaro, poderá chegar ao ponto irreversível de se tornar uma savana. Ou seja, não somente o bioma está ameaçado, mas a própria humanidade.

Lula foi convocado para nos resgatar de Bolsonaro, porque é o único que tem chance real de vencê-lo. O que está em jogo na possível vitória de Lula é mais do que uma vingança contra Sérgio Moro, mídia golpista, partidos rivais, antipetistas e ressentidos em geral. O eleitor de Lula sabe disso.

A formação dessa figura do eleitor de Lula é resultado de um longo processo até chegar à eleição em 2002. Ele tem um perfil múltiplo, heterogêneo, por mais que os detratores queiram criar uma imagem fantasiosa de um nordestino, faminto e analfabeto votando no 13. As eleitoras e os eleitores de Lula, sejam operários, estudantes, universitários, professores, funcionários públicos, têm em comum a esperança, a vontade de ver o país crescer e as minorias serem finalmente contempladas após injustiças históricas. 

Ele também costuma entender que a mídia hegemônica tem um lado, o da elite econômica, que nunca foi aliada de Lula – só está aliviando nesta eleição porque quer se ver livre de Bolsonaro. Logo, as matérias e análises nunca foram favoráveis ao PT. Elas costumavam criar e alimentar o antipetismo, que levou a extrema direita a ocupar a presidência. Curioso é ver, nesta eleição, analistas da mídia historicamente contra Lula afirmando que não entendem o porquê de nenhuma notícia sobre os desmandos, desmontes e desequilíbrio de Bolsonaro arranhar a imagem dele. Fazem de conta que o antilulismo, que cultivaram durante décadas, não é maior que qualquer crime cometido por Bolsonaro.

Assim como a primeira eleição de Lula em 2002 teve um longo processo por trás, a de Bolsonaro também, por mais que pareça que apenas a facada e as fake news tenham resolvido a disputa com Haddad em 2018. Por trás da criação do eleitor bolsonarista, há uma longa história, que inclui colonização, escravização, privilégio branco, deturpações históricas, ditadura militar, privilégio dos militares, culto ao patriotismo e aos valores arraigados a uma visão egocêntrica do mundo. 

Contudo, o eleitor bolsonarista não é homogêneo – por mais que queiramos chamar todos de fascistas. Cada um deles identifica-se com diferentes “atributos” que nós, do campo da esquerda, consideramos negativos em Bolsonaro (a homofobia, a misoginia, a falta de empatia e visão de futuro sustentável, o politicamente incorreto, o humor inconveniente, de mau gosto e constrangedor, a defesa dos “valores da família tradicional”. Para seus eleitores, as críticas feitas pela esquerda, centro e direita às políticas do governo Bolsonaro contra a educação, a ciência, a saúde, a cultura e a total falta de competência para gerir a economia são apenas uma deturpação dos seus inimigos). 

Mas há algo em comum entre eles, além da ignorância e da grosseria: o mais simples e puro ódio à esquerda. E esse ódio parece que terá prazo indeterminado para acabar, porque está sendo transmitido de pai para filho. Há muitos relatos de brigas entre crianças até do jardim de infância, com mordidas e puxões de cabelo, tendo como motivação a preferência por Lula ou Bolsonaro.

O que mais intriga é o fato de que nenhum dos outros postulantes à posição de rival de Lula nessa eleição ultrapassou a marca de um dígito nas pesquisas antes e durante o primeiro turno, para se tornar uma alternativa viável de voto do eleitor antilulista. Nem João Dória, que trouxe a vacina ao Brasil, foi recompensado por esse eleitorado de direita ou extrema direita – pois, ele havia virado inimigo de Bolsonaro e, como tal, deveria, na lógica bolsonarista, ser extirpado da vida pública, como foi. A realidade é que, além da vantagem que se via no favoritismo de Bolsonaro para derrotar o seu inimigo Lula, uma grande parcela desse eleitorado bolsonarista venera, acima de tudo e de todos (Deus e Família), o candidato do PL. 

Para além de representar como ninguém o antipetismo, essa veneração também tem a ver com o único aspecto que o ombreia a Lula: a capacidade de atrair o interesse e a paixão das classes mais pobres. De formas diferentes, ambos, à sua maneira, têm muito carisma e uma linguagem simples e direta. São vistos como pessoas comuns na forma de falar, de se comportar, de agir e reagir. Mas não a simplicidade ao ponto de poder ir ao supermercado sem criar uma comoção em volta. Em torno deles, foi criada uma aura mítica, quase religiosa, com seguidores fiéis, muitos deles até dispostos a morrer em nome da defesa de cada um deles.

Mas a grande diferença: Lula lida com a proposição, a conciliação, a união; Bolsonaro, com a divisão, a discórdia, a desavença. Lula cria laços, Bolsonaro cria inimigos. A política para Lula é a arte do diálogo, o meio para a construção de um partido, de um país, de uma história. Para Bolsonaro, a política sempre foi um meio de vida, como um funcionário que chega, bate o ponto e contribui o mínimo possível. Ele não enxergava longe. Passou 28 anos no Legislativo e só teve dois projetos aprovados, quase todos eram ligados a melhorias para as Forças Armadas e que não dizem respeito aos interesses da população. Não se conhece nenhum discurso memorável, nenhuma participação em comissões importantes, nenhuma atuação brilhante, seja no Rio ou em Brasília.

O deputado Silvio Costa chegou a dizer, em 2018, que Bolsonaro era praticamente invisível no Congresso Nacional. Não se destacava. Ninguém ligava pra ele. Nem o Centrão. Quase ninguém falava com ele, simplesmente porque não era um político que se mostrava relevante. Por isso, o Brasil não sabia da sua existência, até que o programa de TV CQC começasse a dar visibilidade a suas falas inapropriadas, consideradas cômicas. A sua briga com a deputada Maria do Rosário, discussão infame que se, por um lado, provocou ojeriza, por outro, foi um ponto de virada determinante na sua fama para arregimentar e atrair todos os machistas antipetistas que consideram a defesa dos direitos humanos apenas “defender bandidos”. 

Então, imagine o cara considerado uma espécie de loser da sala de aula, que ninguém dava a menor bola, de repente, virar o presidente da República, cheio de poderes. Por isso, é indisfarçável o seu deleite com a bajulação dos fãs de verde-e-amarelo no cercadinho. Nenhum presidente gastou tanto tempo falando com gatos pingados ao redor do Palácio da Alvorada. Por conta do poder, da importância e da atenção que atraiu ao ocupar a cadeira de presidente, ele não vai querer largar o osso tão facilmente. E, claro, há o pânico de parar atrás das grades, junto a seus filhos, devido a todas as denúncias que pairam sobre a familícia.

Naquele 2018, quando Bolsonaro despontou como candidato à presidência, lembrei a semelhança física entre ele e o então presidente da Argentina, Mauricio Macri, que, então, despertava paixões nos eleitores da direita aqui no Brasil. Era visível que essas pessoas queriam ter um presidente daquele ou que, no mínimo, o emulasse, uma cópia loira e de olhos azuis, mesmo que fosse bastante fajuta em imagem e ação. 

A propósito, imagine se o mesmo candidato à presidência do Brasil que falasse e fizesse tantas barbaridades fosse negro ou pardo. Ele não chegaria nem perto da frente do Palácio do Planalto, quanto mais da cadeira de presidente. Jamais iria angariar a tolerância de tantos “cristãos”, “pais de família”, enfim, “cidadãos de bem”. Em termos comparativos, para os Estados Unidos conseguirem ter o primeiro presidente negro da sua história foi necessário o surgimento de um Obama. Mas para colocar, na mesma cadeira, um homem branco, pode ser qualquer medíocre que viva falando e comentendo insanidades, como Trump e George Bush. As medidas do rigor do eleitor norte-americano são todas jogadas fora diante do homem-branco-hétero-rico. 

No Brasil, acontece o mesmo. E ainda estamos longe de termos um presidente negro. Mas, pelo visto, ele terá que ter uma história absolutamente heróica ou, no mínimo, alguém que represente o “combate” ao PT, como um Joaquim Barbosa da vida, que até foi cotado, em meados dos anos 2000, para se candidatar à presidência, depois do destaque como relator do processo do mensalão.

Seja como for, o Brasil precisa urgentemente superar a sua ânsia por ter salvadores da pátria. As fotos de Lula sendo abraçado com fervor e lágrimas por seus eleitores nas ruas são emocionantes como um belo poema, mas, nessa mesma comoção popular, além do amor pelo político e a admiração pela figura histórica, cabem muitas angústias de pessoas que veem nele uma esperança de dias melhores. 

Se tivermos instituições fortes, uma boa educação e informação de qualidade, o povo não vai mais precisar apelar para uma salvação. Não vai cair tão facilmente em fake news, fofocas, disse-me-disse, futricas, factóides, lendas urbanas, desinformação, politicagens. Vai simplesmente ouvir e avaliar propostas de governos. Triste de um país que ainda precisa de heróis, mitos, salvadores da pátria ou deuses. No dia em que tivermos um presidente que possa ir ao supermercado tranquilamente para fazer uma feira, com o preço dos alimentos acessível a ele e a todas as classes, estaremos no Brasil que verdadeiramente merecemos.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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