Mirante

Oração ao tempo

TEXTO Débora Nascimento

30 de Abril de 2020

Foto Débora Nascimento

No dia 22 de abril, recebi pelo WhatsApp o áudio de uma pessoa querida da família de minha mãe. O arquivo mostrava a duração: 5:20. Fui ouvir. A gravação começava com um “Louvado e engrandecido seja Deus”. Parei. Se não frequento igreja, também não preciso ouvir oração pelo WhatsApp. Mas a curiosidade foi maior e também o respeito à pessoa. Escutei o restante. Era uma súplica ao Todo Poderoso. Vou resumir os mais de cinco minutos nessas poucas frases: “A cada dia que passa, podemos ver que o nosso clamor ainda está sendo pouco. Muitos ainda não estão enxergando o Teu recado. Só o Senhor é quem pode parar essa guerra. Numa época tão difícil como essa, tem tantas pessoas perdendo ainda seu tempo com ostentações, com lives... E ele está esperando pelo nosso clamor. Tem muita gente sofrendo por imprudência de alguns”.

Inicialmente achei o tom melodramático, depois dramático, em seguida, emotivo. Mas, ao final, comecei a considerar que aquele tom era o mais apropriado à situação, mesmo. Essa pessoa, que já havia se curado de um câncer, não tem nenhum parente acometido pela covid-19, mas estava claramente tocada pelo sofrimento das vítimas e seus familiares. Fui tão atingida pela sinceridade e manifestação de sua piedade, que, naquela noite, inspirada pelo áudio, voltei a rezar. Sim, eu, que não frequento igreja ou costumo rezar, já havia voltado a juntar as duas mãos em prece durante essa pandemia, para pedir a alguma entidade suprema ou força superior do universo que ajude a ser lançada uma vacina ou um tratamento eficiente (e menos perigoso que a hidroxicloroquina) o mais breve possível. O que esse áudio religioso me fez pensar foi nas dimensões bíblicas dessa pandemia e como o nosso isolamento privilegiado também nos afasta do verdadeiro pandemônio que habita lá fora.

Nós, que estamos em home office, sem podermos colocar os pés nas ruas, transformamos em espaços de convivência o Facebook, o Twitter e o Instagram, este principalmente, porque mimetiza eventos sociais através do feed e dos stories. Algo que costumo fazer, ao entrar no Instagram, é acessar aquela área geral na qual são selecionadas as fotos mais curtidas ao redor do mundo. Nela faço algumas descobertas tanto no mundo das artes quanto no das celebridades efêmeras. Também, vez ou outra, faço pesquisa na área de buscas das hashtags. Há algumas semanas, digitei #coronavírus e #quarentena, para ver o que aparecia. E me surpreendi diante das imagens incompatíveis com o tema que apareceram.

Uma delas era a de uma aspirante a modelo ou blogueira. Ela posava de biquíni, exibindo sua boa forma e uma expressão facial com intenção sensual. Inevitável pensar na quantidade de degraus do bom senso que a sociedade desceu para chegar ao ponto de usar a popularidade de assuntos tão graves e trágicos para exibir corpo, rostos, produtos. Sei que, em tese, cada um pode fazer o quiser com seu corpo e suas redes sociais, mas o que impressiona é a falta de empatia mesmo e o egocentrismo em meio à maior crise na saúde deste século, somada a sérios problemas políticos, econômicos e sociais – um termômetro são as filas nas quais pessoas literalmente arriscam a vida para poder receber R$ 600, pagos a contragosto pelo governo federal.

Esse universo ególatra e insensível, apresentado no Instagram, cultivado por esse ideal de um eu público lucrativo com milhões de seguidores anônimos, condiz com o comportamento do Despresidente da República, cuja primeira resposta ao quebrar a quarentena, foi afirmar que, se ele pegasse o novo coronavírus, a responsabilidade seria dele. Em seu incomensurável ego, não cogitou que o problema era maior que o seu umbigo: a sua inconsequente saída às ruas, com direito a aperto de mão em eleitores, poderia contaminar outras pessoas e influenciar outros a fazerem o mesmo.

O maior risco bolsonaro é que ele não está sozinho. Esse ser inominável representa bem uma boa parcela desta população. Para exemplificar, o que dizer da blogueira Gabriela Pugliesi, uma das primeiras pessoas no país contaminadas pelo novo coronavírus? Só descobri sua existência após saber que várias pessoas foram contaminadas na festa do casamento de sua irmã em Trancoso. Para saber quem era, entrei no perfil no Instagram, quando me chamou a atenção o fato de ela não haver feito nenhuma concessão em seu feed para se solidarizar com as outras pessoas que também pegaram o vírus no evento realizado por sua família. Em um post, de pijama, ela aproveitou a oportunidade da audiência redobrada com as notícias para fazer publicidade de um produto. Como disse um desses representantes de empresas de investimento em propaganda no YouTube, a pandemia é uma “oportunidade de negócios”.

No final de semana passado, soube que essa blogueira ultrapassou o limite do tolerável. Postou fotos de uma festa na sua casa com outras amigas blogueiras. E não era #TBT. Era uma festa em plena quarentena. Numa matéria, foi colocado o link de um vídeo em que ela, com um drink na mão, berra para a câmera do celular, com um sorriso no rosto: “Foda-se a vida!”. Fiquei sem entender. Esse “último grito da moda” da babaquice partiu da garganta de uma das vítimas da covid-19 que mais tiveram sorte. Seu quadro foi leve e sem a temida falta de ar. Permaneceu em casa, inclusive com empregada doméstica – algo observado pelos seguidores, através do reflexo de um vidro. Tentou se justificar, alguns aceitaram, outros não. Então, já curada, apareceu com um “Foda-se a vida!”, quando muitas pessoas estão exatamente lutando e sofrendo por ela, sem encontrar um respirador disponível, num sistema de saúde já em colapso.

A influenciadora digital faz parte do perfil de gente que as mães antigamente chamavam de “má influência”. Da mesma forma, o “bad influencer” do Palácio do Planalto, cujo pronunciamento sobre a “gripezinha” levou mais pessoas a circularem nas ruas, e o “bad influencer” norte-americano, que sugeriu a ingestão de desinfetante para matar o vírus. E, então, sim, teve quem fosse na dispensa para beber uma garrafa de brilux. O ultraje da blogueira gerou uma repercussão negativa e consequências desagradáveis aos bolsos: perdeu nove contratos de patrocínios e acabou apagando o seu perfil no Instagram – não se sabe se temporariamente. Mas isso também não significa que ela deixará de promover festinhas offline em casa, assim como meus vizinhos bolsonaristas. Nessa quarentena, já organizaram umas três reuniões de amigos em casa, com direito a sertanejo em som alto, bebedeira e berros. Uma delas aconteceu no dia da live de Roberto Carlos.

A propósito, quem está dando conta dessa avalanche de lives? Parece algo ingrato e injusto de se dizer, já que elas, as lives, em tese, estão aí para nos distrair em meio à quarentena e fazer circular a arte, quando todos os eventos culturais presenciais foram cancelados. Mas elas não deixam de trazer consigo um escapismo (em parte necessário) e uma leve e equivocada impressão de que esse isolamento seria um período para se relaxar daquela vida corrida que levávamos, enquanto o pandemônio toma conta do mundo lá fora. Agora se pode curtir mais a casa, a família e aprender a fazer pão caseiro. Alguém colocou uma faixa numa janela na Itália: “Não romantizem a quarentena”.

O que percebo, acompanhando as redes sociais de anônimos e famosos, é que as pessoas ainda estão se esquecendo do essencial neste momento, como bem disse a amiga religiosa no áudio sofrido de mais de cinco minutos. A situação está gravíssima. E vai piorar. Com um sistema de saúde em pleno colapso, o conselho de medicina já lançou diretrizes para os médicos escolherem quem terá ou não direito a um respirador, para que façam “A escolha de Sofia” baseados no paciente que potencialmente possui mais chances de sobrevivência e em menor duração, para não ocupar um leito durante muito tempo – o período na UTI pode chegar a até três semanas. Serão, então, beneficiadas pessoas que estiverem próximas ao perfil de Gabriela Pugliesi, jovens e saudáveis.

Em meio a esse cenário que humilha qualquer filme de terror, o Brasil parou em frente à TV, na semana passada, para dedicar milhões de votos à médica Thelma Assis, a primeira candidata negra a vencer o BBB. Parabéns a ela, foi histórico e emocionante (vi o vídeo, não acompanhei o BBB, que disseram ter sido o melhor de todos; o último que vi – e pouco – tinha Jean Wyllys). Mas, enquanto isso, os médicos estão enfrentando uma guerra cruel e sem armas. Pernambuco, até a terça-feira, registrava 1.601 profissionais de saúde infectados com a Covid-19, uma parte considerável dos 5.724 casos confirmados no Estado. E eles precisam urgentemente de EPIs adequados. Não apenas máscaras e luvas. Dentre eles, já há mortos e desertores. Já há falta de profissionais para atender leitos. Já há gente dobrando plantão. Pagando aluguel extra para não contaminar a família em casa.

Nós, que não somos da área de saúde, não fazemos a menor ideia do que, de fato, um estresse desse porte significa no corpo e na mente de um trabalhador, numa situação como essa. O único famoso que vi propor algo relevante sobre essa questão específica foi Gregório Duvivier, ao lançar, no seu programa Greg News, a campanha www.maisdoquepalmas.com.br, para que os profissionais de saúde tenham direito a EPIs apropriados, estadia em hotel paga pelo governo e pensão para seus filhos, em caso de morte – só esse último pleito rendeu um projeto de lei do Psol.

Na entrevista que fiz com o psicanalista Carlos Ferraz sobre os efeitos psíquicos da pandemia, para o Trópicos, podcast da Continente, dediquei uma pergunta específica a respeito da necessidade de um acompanhamento psicológico dos profissionais de saúde. Ele respondeu: “Por mais preparo que essas pessoas tenham para lidar com a morte, a pandemia está trazendo uma avalanche, uma experiência de uma intensidade que, até para profissionais de UTI, é uma experiência muito dolorosa, que podemos usar até essa tão batida palavra ‘trauma’. Essas pessoas precisam ser assistidas desde já, porque estão no front de guerra. Mesmo quem é de UTI normalmente não vivencia isso no seu cotidiano. Essas pessoas merecem e deveriam procurar ajuda num momento como esse pra enfrentar o que está acontecendo e para ressignificar no futuro o que elas vivenciaram”.

E enquanto eu entrevistava o psicanalista, numa videochamada no sábado passado (25), dia da festinha da blogueira, as sirenes das ambulâncias que passavam pelo bairro não paravam de ser ouvidas do meu apartamento. Assim como enquanto escrevo este texto.

***

Em meio a esse período sombrio que se abate sobre o mundo, fiz, para o perfil do Facebook da Cepe Editora, uma lista de 10 canções que inspiram força, motivação e esperança, para enfrentar essa quarentena não só com muita reza, mas com o poder da música. Reproduzo aqui:

Jorge de Capadócia
Marcelo Yuka, logo após ter levado os tiros no assalto no Rio, em 2000, "rezou" essa composição de Jorge Ben, que faz uma adaptação da oração de São Jorge. Quem não se sente espiritualmente protegido ao cantar essa música? A versão do acústico MTV é a melhor.

The rising
Bruce Springsteen costuma fazer composições que transmitem força, motivação e esperança para seus fãs. Essa música, do disco homônimo, de 2002, foi feita após o 11/9. Não somente os EUA, mas o mundo precisa dele mais uma vez. Ou, pelo menos, ouvir novamente esse álbum.

Tarde vazia
“Pela janela vejo fumaça, vejo pessoas (as que estão quebrando a quarentena; #ficaemcasa!!!)”. Começa assim uma das mais belas canções do rock nacional. Lançada em 1990, no disco Clandestino, do Ira!, a música fala sobre o tédio de um rapaz desfeito pela ligação de uma garota, que salvou o dia dele. Quantas ligações estão salvando a quarentena de pessoas realmente isoladas?

É pedra, não é gente ainda
“Quem não respeita a natureza / Não dá força pra beleza / Não considera a vida / É pedra, não é gente ainda”. Essa letra pode ser uma indireta para um certo “presidente”, que não sabe governar e lidar com crises. Nessa música menos conhecida de Pepeu Gomes, lançada em 1988, quando a questão ecológica ganhava mais espaço na mídia, o compositor escreve uma letra ambientalista e pacifista.

Hey, Jude
Paul McCartney fez essa composição para Julian Lennon, quando seus pais Cynthia e John se separaram. Paul, que costumava brincar com o garoto, compôs essa música para dar ânimo ao menino. “Take a sad song and make it better”.

Let it be
Paul McCartney escreveu essa música a partir de um sonho que teve com sua mãe, que tinha falecido de câncer, quando ele era adolescente. Ao cantar “Mother Mary comes to me” é quase como uma evocação da Virgem Maria avisando que tudo vai ficar bem. “There will be an answer / Let it be”.

Tempo rei
Estamos vivendo um período de suspensão e estado de alerta. Nós, que tínhamos todas os dias e horas programados, agora estamos vivendo sob essa expectativa angustiante. A pandemia escancarou o que evitávamos ver: não temos pleno domínio sobre a vida e o tempo. “Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei / Transformai as velhas formas do viver / Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei / Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei”.

Amanhã
Guilherme Arantes escreveu essa música, cuja sonoridade e letra inspiram esperança no ouvinte. Foi lançada em 1977, quando o país ainda vivia sob a ditadura militar, mas ela pode ser ouvida por nós, neste momento de completa incerteza e insegurança. Precisamos nos agarrar na ideia e na busca de um amanhã melhor.

Here comes the sun
Enquanto “quarentenamos”, tentando achatar a curva, fica a expectativa de que chegue logo ao mundo uma vacina contra esse vírus. Mesmo antes de começar a letra, os primeiros acordes do violão de Here comes the sun já nos transmitem uma sensação de otimismo. O sol nela aparece como uma metáfora de tempos melhores, que “trarão de volta sorrisos aos rostos”.

Chega de saudade
Com o isolamento social, muitas pessoas estão ansiosas, melancólicas e principalmente saudosas de familiares, amigos e do cotidiano, pelo menos, como conhecíamos. Talvez essa antiga rotina demore a voltar ou não volte a ser mais exatamente como era antes. Em um momento em que não podemos nos aproximar das pessoas, esperamos por abraços que “hão de ser milhões de abraços”. 

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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