Mirante

O único poder que resiste ao tempo

TEXTO Débora Nascimento

30 de Abril de 2019

Oliver Mtukudzi, cantor e compositor do Zimbábue, faleceu em março deste ano

Oliver Mtukudzi, cantor e compositor do Zimbábue, faleceu em março deste ano

Foto Divulgação

Dias desses, descobri, por acaso, que o cantor e compositor Oliver Mtukudzi havia morrido. Minha tristeza foi maior, porque a morte ocorreu no longínquo 23 de janeiro. A descoberta dessa morte, três meses depois, reflete não somente a imensa distância geográfica entre o Brasil e a África, mas o enorme distanciamento entre o nosso país e o continente africano, mesmo que haja uma indelével ligação, iniciada com a chegada dos primeiros escravizados de diversas nações que participaram da construção da nossa cultura e identidade como povo.

Oliver Mtukudzi, conhecido como Tuku, o artista mais querido do Zimbábue, faleceu, aos 66 anos, de diabetes, e não saiu uma nota sequer nos portais de notícias brasileiros. Sua morte parou o seu país e ele foi velado num estádio lotado, com todas as honras destinadas a um chefe de estado. O cantor e compositor, que lançou 67 álbuns, era uma importante voz de esperança numa nação vitimada por colonizadores ingleses e pela ambiguidade do governo de Robert Mugabe, que assumiu o poder após o país tornar-se independente da Inglaterra. Ao contrário da contundência do cantor Thomas Mapfumo, Mtukudzi fazia músicas mais líricas, amenas e espirituais, cantando a liberdade, a vida, o meio ambiente, a luta das mulheres e das pessoas com Aids. Sua partida precoce trouxe imensa tristeza à população, como relatado em vídeos do seu funeral, disponíveis no YouTube.

Eu já havia postado sobre ele no Facebook e o quanto sua música tinha me emocionado desde que a conheci tardiamente em 2013. No post, sugeri que ele fosse convidado para se apresentar na Mimo em Olinda ou em outros festivais de música no Brasil. Escrevi brevemente sobre Tuku, em um texto sobre os reflexos da africanidade na música da América, para a revista Outros críticos, em 2015. Estava pensando em entrevistá-lo numa reportagem maior para a Continente sobre a música africana, quando soube de seu falecimento.

Primogênito de sete filhos de uma família pobre e cristã, Tuku começou na música ainda jovem, cantando no coro da igreja. No início dos anos 1960, costumava ouvir, no rádio de uma loja, a soul music de James Brown, Otis Redding e Wilson Pickett. Naquela década, comprou uma guitarra barata e aprendeu a tocar tentando imitar o som do mbira, instrumento africano, começando a criar um estilo próprio, posteriormente denominado de tuku music.

Sua primeira música, Stop after orange, foi gravada em 1975, mas ele tornou-se famoso em toda a Rodésia (antigo nome do Zimbábue, antes da independência) em 1977, depois de integrar a banda Wagon Wheels, que incluía Mapfumo. Sua música Dzandimomotera foi um hit, passando 11 semanas como o número 1 do país. Após uma conversa com Mapfumo, decidiu compor e cantar na língua shona, em vez do inglês dos colonizadores - era uma forma de afirmação como povo e também de driblar uma possível averiguação dos representantes do governo, pois cada palavra do idioma pode ter muitos sentidos.

Em 1980, seu álbum Africa se tornou trilha sonora para o novo estado do Zimbábue. No ano passado, ele tocou no show de celebração à volta do amigo Thomas Mapfumo à terra-natal, após 14 anos de autoexílio nos Estados Unidos, por causa do governo de Robert Mugabe, no poder entre 1980 e 2017, quando foi pressionado pelos militares a renunciar. Desde 2011, Mtukudzi era embaixador da boa vontade para o fundo das crianças da ONU e cavaleiro da Ordem do Mérito, honraria recebida do governo italiano. Deixou esposa, cinco filhos e dois netos.

A notícia de sua morte passou despercebida no Brasil não somente pelo fato de estarmos alheios aos acontecimentos políticos, econômicos, culturais e sociais da África (em abril, o Zimbábue apareceu no noticiário mundial, pois foi um dos três países africanos vitimados pelo ciclone Idai, que deixou milhares de desabrigados e 344 mortos no país), mas porque o único assunto que parece importar hoje no Brasil é Bolsonaro. Tudo o que ele faz, diz, ou o que seus filhos fazem, dizem, ou o que seus ministros fazem, dizem, é o que desperta interesse na população – isso fica evidente no altíssimo volume de menções a ele, tanto na imprensa quanto nas redes sociais.

Obviamente é crucial estarmos alertas e acompanhando o que vem sendo maquinado nesse governo. Mas, desde antes da eleição, Bolsonaro já era o nome mais frequente nos jornais brasileiros e nas redes sociais, por conta da reverberação de suas frases racistas, machistas, conservadoras e fascistas. O então candidato seguiu a mesma a cartilha que levou Trump à presidência dos Estados Unidos, e nós caímos nessa armadilha, em vez de termos divulgado mais as nossas opções. O que considerávamos ser denúncias, através de nossos posts, acabaram tornando-se propaganda para popularizar seu nome, com a ajuda dos algoritmos das redes sociais, atraindo a atenção e angariando o voto dos que pensam como ele ou dos que “apenas” não queriam, a qualquer custo, a volta do PT ao poder.

O resultado é que está em curso no país um desmonte sem precedentes em várias áreas: ambiental, trabalhista, educacional, econômica, comportamental, cultural. Há a intenção de aplicar uma agenda ultra neoliberal, ao mesmo tempo em que começam tentativas de invisibilizar as vozes contestadoras que se sobressaíram nas últimas décadas: mulheres, gays, negros... Não à toa ele vetou a propaganda do Banco do Brasil que reflete a imagem diversificada da juventude que o rechaçou durante a campanha eleitoral.

Paralelamente, promove caça às bruxas, com a investida contra alguns dos setores que mais se opuseram à sua eleição: estudantes, professores, pesquisadores. A forma mais eficaz e aparentemente democrática de atingir os dissidentes é tirar deles a chance de se destacarem no que são melhores: pensamento, pesquisa, inovação. O instrumento, para isso, é o corte de verbas. Na penúltima semana de abril, ele anunciou a tesourada no orçamento dos cursos de Filosofia e Sociologia, como também a suspensão de repasses para filmes e séries através da Ancine e cortes nos patrocínios culturais da Petrobras.

Ainda na mesma semana, foi negado o terceiro recurso do cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho, que questiona o pagamento da multa de R$ 2,2 milhões relativos ao filme O som ao redor. Coincidentemente, no dia seguinte à negativa, o diretor recebeu a notícia de que seu novo longa, Bacurau, vai concorrer à Palma de Ouro de 2019. Em 2016, no tapete vermelho do festival, Kleber e a equipe do filme Aquarius tinham denunciado o Golpe. A denúncia reverberou e contribuiu para escancarar ao mundo o que acontecia no Brasil. Agora a manutenção da cobrança dessa multa, que surgiu ainda no governo Temer, demonstra ser um contorcionismo burocrático para penalizar um opositor.

Em um cenário obscurantista, em que Bolsonaro volta-se contra a cultura, não podemos torná-lo o protagonista dos nossos dias, dos nossos posts, das nossas conversas, das nossas vidas. A cultura, mais do que nunca, vai precisar que os nossos holofotes estejam voltados para ela. Nos últimos meses, quantas pessoas deixaram de falar sobre o último filme que viram, dos discos que escutaram recentemente, dos livros que estão lendo? Qualquer timeline hoje, de cima a baixo, só dá Bolsonaro. A maioria dos links compartilhados são sobre ele.

Com esse fluxo constante de fatos e factoides, cujo objetivo é dispersar e confundir, estamos afogados nas bolsonews, lutamos para termos o mínimo de atenção e foco para outra coisa. Vez ou outra, algo como Vingadores ou Game of Thrones, consegue quebrar – parcialmente – esse monopólio bolsonarista na atenção dos internautas, ultimamente preocupados com a última fala tresloucada da Damares, o mais recente piti tuiteiro de Carlucho, mais uma sandice do presidente. Enquanto isso, o objetivo maior do governo é aprofundar a agenda neoliberal no país, orquestrada pelo mercado financeiro – aprovar a reforma da previdência e privatizações das estatais rentáveis. O nosso petróleo, no pós-Golpe de 2016, já foi entregue às multinacionais.

Desde o ano passado, as TVs, os jornais, os portais de notícia descobriram que o sobrenome Bolsonaro gera audiência. Falar bem ou mal dele, tanto faz, rende cliques, visualizações, compartilhamentos, engajamento. Isso me lembrou de um amigo que, ao fazer curadoria para um evento nerd, decidiu colocar no título de todas as palestras a palavra “zumbi”, para despertar a curiosidade do público-alvo. Em algum momento de cada palestra lotada, alguém questionava: e os zumbis? A propósito, você também tem a impressão de que os zumbis em Game of Thrones não fariam falta à série e foram apenas isca para atrair parte dessa plateia?

Em 2019, para chamar a atenção dos brasileiros, nos moldes dos títulos das palestras nerd, talvez precisássemos inserir nas chamadas das matérias: “O novo disco da Ave Sangria e Bolsonaro”, “O que Bolsonaro tem a ver com o livro da Pussy Riot?”; “O bolsonarismo refletido no filme de Jordan Peele”.

A realidade é que estamos caindo na mesma cilada de 2018. Um exemplo é que, no sábado (27/4), dia da publicação da entrevista de Lula na Folha de S. Paulo e El País, parte da imprensa brasileira destacou, das duas horas de declarações, uma fala que tinha a ver com Bolsonaro, “Esse governo é formado por malucos”, e depois repercutiu a resposta do líder dos malucos: “Pelo menos, não é de cachaceiros”. E as redes sociais, mais uma vez, reverberaram a fala daquele que pauta os nossos dias. Parafraseando a famosa frase de John Lennon (“Vida é aquilo que acontece a você enquanto você está ocupado fazendo outros planos”), neoliberalismo é aquilo que acontece a você enquanto você reverbera a fala polêmica da vez.

Saindo desse ciclo vicioso, retomo o nome abordado no começo deste texto, Oliver Mtukudzi, cuja doçura contrasta com a maldade dos homens que querem dominar o mundo; Tuku, que trouxe esperança e força ao povo do Zimbábue, vítima de governos autoritários. Que a música desse artista africano, que os brasileiros jamais terão a chance ouvir ao vivo, nos inspire a resistir pela beleza e pelo poder da arte, o único poder que resiste ao tempo.
 

 

 



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necessariamente a opinião da revista Continente. 

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