Mirante

O último ato

TEXTO Débora Nascimento

28 de Dezembro de 2022

Ilustração Rafael Olinto


Demorou,
mas está bem próximo: o dia em que vamos – finalmente!!! – nos livrar de um presidente que mais parecia uma praga dos infernos. Que tornou os nossos dias dificílimos, que fazia com que tudo girasse em torno dele, que dominou o noticiário, que sequestrou nossa atenção, que perturbou o pouco de paz que nós, brasileiros, temos; que quis destruir tudo o que construímos como nação. E quase conseguiu. Parece um sonho vermos, neste mês de dezembro, Lula anunciando um ministério com pessoas qualificadas para os seus cargos, quando passamos quatro anos apenas assistindo a raposas tomando conta do galinheiro.

Bolsonaro não somente nos tirou direitos e verbas e a possibilidade de termos profissionais competentes em cargos públicos, ele tentou inviabilizar saídas para os problemas que ele mesmo criou. Em seu sequestro de país, fez um cerco institucional para que seus opositores não encontrassem alternativas e soluções, a não ser fenecerem. Seu último ato se dá na reta final de seu desgoverno. E ele, com a perda iminente da faixa presidencial, não está sabendo como levar adiante a atuação do personagem público que alimentou diante das câmeras. 

Sua derrota deveria ter sido, mas não foi esmagadora, graças à ignorância e desinformação que cultivou em seu eleitorado, obtendo, apesar de todas as desgraças cometidas, 58 milhões de votos. E esse é seu único trunfo para sair de um mandato, que foi do medíocre ao hediondo, com uma falsa imagem de dignidade, para manter a fidelidade canina de seus eleitores, que acampavam na frente de quartéis enquanto o 02 curtia a Copa no Catar.

Ao contrário de Getúlio, Bolsonaro sai “da vida (política) para entrar na (lixeira da) História”. Em seu último ato, vem encenando uma performance ambígua, cuja plateia alucinada é formada por apoiadores mais extremistas que, desde o resultado do segundo turno, vêm realizando protestos com o intuito de gerar o caos. Isso significou, na prática, atrapalhar a vida da população. E nada mais. As imagens dessas manifestações devem entrar também para a lixeira da História, pois, usando as cores da bandeira e o hino nacional, tentaram dignificar o que era apenas um delírio coletivo de saudosos da ditadura.

Mas há que se notar, nesse momento, o único talento do suposto governante que agora sai da cadeira que nunca deveria ter sentado: o dom de iludir. Em plena era da imagem, ele soube usar, como ninguém, as palavras para manipular a boa e má fé de seus seguidores. Utilizou e deturpou palavras cheias de simbolismos, como “família”, “Deus”, “pátria”, que alcançam um imediato efeito positivo no imaginário popular, para cometer atos que foram exatamente na contramão da profundidade do significado de tais palavras.

Por isso, um dos cuidados que Lula deve ter em seu governo, além da atenção aos aliados de ocasião, é com o uso das palavras. O possível slogan para o seu mandato, “Brasil: união e reconstrução”, demonstra essa preocupação. Esse lema dialoga com o sentimento que se tem hoje, em grande parte da população, o de que todos vamos ter que arregaçar as mangas e “arrumar a casa”, organizar o caos deixado por Bolsonaro.

Espero que, ao contrário de seus dois mandatos anteriores, Lula conte com aquilo que nunca teve: uma trégua bastante generosa da mídia hegemônica, pois o apoio midiático ao impeachment de Dilma, à Lava Jato e à prisão de Lula acabou por levar o país à tragédia que foi o governo Bolsonaro.

As palavras foram deturpadas desde o começo de todo esse processo. E a imprensa já começou errando no português: gente, o certo é “Lava a Jato”. A preposição (assim como a ética) faltou em quase todas as reportagens sobre a operação liderada por Sérgio Moro. Outro exemplo: durante esses últimos quatro anos, toda vez que o despresidente surtava com suas grosserias, a imprensa dizia “O presidente subiu o tom”. Quem sobe o tom é músico. O futuro ex-presidente “agredia”, “vociferava”, “surtava", “gritava”. Ele nunca mereceu a deferência de um eufemismo honroso que suavizasse a sua brutalidade.

Sob a expectativa da posse de Lula, a imprensa e parte da população temem uma manifestação que se assemelhe à que houve no Capitólio no dia 6 de janeiro de 2021, nos Estados Unidos, quando trumpistas insatisfeitos com a derrota de seu candidato invadiram o congresso norte-americano. Mas há diferenças. Primeiro, o Capitólio à brasileira não precisou de um lugar e de uma data específica, ele vem ocorrendo de forma difusa e não somente após a eleição de Lula no segundo turno em 2022, mas já começou em 2018, quando um eleitor de Bolsonaro decidiu matar o artista baiano Moa do Katendê.

De lá para cá, vários bolsonaristas já agrediram e mataram pessoas apenas porque são eleitoras do PT, como também, com os bloqueios nas estradas, prejudicaram outros seres humanos, a exemplo do garoto que precisava fazer uma cirurgia no olho e quase perdeu o procedimento cirúrgico, caso o pai não tivesse conseguido encontrar uma saída no meio do mato. A resposta dos que estavam bloqueando a estrada: “Que fique cego”. 

Os bolsonaristas, em sua reação inconformada à derrota do seu candidato, demonstraram ser piores que os trumpistas. Para efeito de comparação: no fatídico dia 6 de janeiro de 2021, nos Estados Unidos, houve um momento em que os manifestantes, na tentativa de invadir maciçamente o Capitólio, agarraram um dos policiais e o agrediram a socos e pontapés. O policial, com medo de ser morto – e poderia ter sido mesmo –, disse que era pai de dois filhos. Nesse momento, um dos trumpistas interrompeu a turba com o grito: “Ele é pai e tem dois filhos!” Paralisaram o ataque e devolveram o homem ao grupo de policiais que fazia a barreira humana durante as quatro horas seguidas de empurra-empurra. Devido ao estresse, ele teve um infarto. Mas foi socorrido a tempo.

Esse episódio está registrado no esclarecedor documentário Four hours at the Capitol (HBO, 2021), uma forma de entender como um evento popular aparentemente democrático pode fugir ao controle e se tornar trágico, sem que o maior incentivador e beneficiário dessas ações (Trump ou Bolsonaro) seja responsabilizado e punido.

Sobre a comparação entre trumpistas e bolsonaristas, alguém imagina estes, que impediram um garoto de realizar uma operação no olho, tendo a mesma reação complacente de, em meio a um ataque covarde de violência, parar de agredir alguém porque este disse ser pai? (O petista Marcelo Arruda foi morto a tiros em plena festa de aniversário com a família). Ou, por outro lado, dá para imaginar tamanho empenho das forças policiais para frear uma tentativa de invasão ao Congresso Nacional ou ao Palácio do Planalto?

Por essa e tantas outras, após quatro anos enfrentando a bestialidade do despresidente, a imprensa brasileira deveria demonstrar que aprendeu alguma lição e, primeiro, não mais tratar um presidente civilizado, como Lula, a patadas e sem os preceitos do jornalismo, como o sagrado direito de resposta. Segundo, voltar a fazer as pazes com o dicionário, porque não se pode mais dizer que onde houve extrema direita, chamar de “direita”; onde houve terrorismo, qualificar como “radicalismo”; onde houve genocídio, nominar como “incompetência”, e onde houve crime ambiental, denominar de “má gestão”. 

Nesses longos últimos quatro anos, Bolsonaro foi tratado como uma criança mimada, que não podia ser contrariada, senão, esperneava, pois sempre havia alguém para bajulá-lo. Esse sujeito atrasou a nossa vida em quatro anos – em certo momento desse período que parecia não acabar nunca, alguém me confortou: “Um dia a mais é um dia a menos”. E eu pensava como Nelson Cavaquinho: “Quero ter olhos pra ver a maldade desaparecer”. 

Quem conseguiu chegar vivo, com emprego e comendo as três refeições diárias, ao final desse mandato de terror, que agradeça à sorte ou ao histórico privilégio de algumas classes no Brasil. Se chegar vivo ao dia 1 de janeiro de 2023, sorria, você sobreviveu ao governo Bolsonaro. E infelizmente, orçamentando secretamente, ele também.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

 

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