Mirante

O Palhaço, o Papa e o Humorista

TEXTO Débora Nascimento

28 de Maio de 2021

FOTO Reprodução

Vinte e cinco de dezembro de 2022. Segundo o Painel de Vacinação da Covid-19, essa é a data estimada para que a imunidade coletiva seja alcançada no Brasil. Ou seja, de acordo com os cálculos publicados no último dia 24 de maio e feitos por pesquisadores de várias universidades do país, baseados no ritmo da vacinação que estiver vigente e em outros aspectos, o total ideal dos brasileiros a serem vacinados com a segunda dose apenas será atingido quase dois anos após o início do processo de imunização. Nessa data, se você tiver sorte de já ter sido vacinado, poderá finalmente passar o Natal na casa de seus parentes e, quem sabe, até esquecer o espírito natalino e lembrar aos familiares que, por ventura, tenham votado em Bolsonaro, que ele foi o responsável por vocês não terem se encontrado decentemente durante todo o período de pandemia, porque simplesmente não se interessou em comprar nenhuma das 170 milhões de doses de vacinas que lhes foram oferecidas para ser entregues, ainda em 2020, pelo Butantan e pela Pfizer.

Esse estudo, pautado em modelo matemático que prevê como será o andamento da vacinação, me lembrou de algo que falta muito na vida do brasileiro, seja na esfera pública ou até mesmo privada: a previsão, iniciativa que pode levar à outra, o planejamento. Planejar significa saber o que temos, para fazer o que podemos e alcançar o que queremos/devemos. Em meio à pobreza, ao desemprego, à fome, aos distúrbios psicológicos decorrentes das mais variadas situações em meio à pandemia, à falta de educação, saúde e transporte de qualidade, fica difícil, ou quase impossível, para a população planejar.

De maneira generalizada, vive-se um dia após o outro, no melhor e no pior sentido da expressão. Planejamentos a curto, médio e longo prazo se tornaram privilégios para poucos, os que têm emprego e renda fixos e bem acima da média. Mas até estes podem ser surpreendidos pela doença ou outro infortúnio afetando as suas vidas ou a de seus parentes e amigos. Afinal de contas, já ficou claro pra todo mundo que há uma vibe pesadíssima no mundo e a humanidade deve estar passando por algum momento de karma coletivo ou complicada conjunção astral.

Planejar também deveria ser um verbo atrelado a um outro ausente no país: a prevenção. Para prevenir algo, é preciso conhecer ou, pelo menos, buscar conhecer e se preparar para o que poderá ocorrer. Nada disso foi ou vem sendo feito. Assistimos de camarote a todos os equívocos e negligências cometidos pelo governo federal, no que se refere a protocolos de segurança sanitária, coordenação nacional da crise na saúde (para não faltar oxigênio, IFA, kit intubação), punição a infratores das recomendações preventivas, proteção financeira aos mais vulneráveis, coordenação do ensino público e manutenção dos empregos.

O que testemunhamos também é o erro gritante de uma população omissa que votou em um candidato sem plano de governo, apenas repleto de objetivos perversos e causas retrógradas. O brasileiro parece viver como o título do hit de Zeca Pagodinho, Deixa a vida me levar (nesse caso, a morte). Para uma parcela da população, pode ser colocado qualquer um no governo e que o acaso os proteja, enquanto andarem distraídos por aí aglomerando em festas e sem máscara.

Um padre paraibano, nesta semana, pediu ao Papa, no Vaticano, para que rezasse pelos brasileiros. Sorrindo, o pontífice respondeu: “Não tem salvação. É muita cachaça e pouca oração”. Em seguida, passou a mão na cabeça do homem, como se estivesse abençoando. Os bolsonaristas correram para usar uma fala esporádica do Papa, para defender as incontáveis frases bizarras e desumanas saídas da boca de seu ídolo nefasto.

Mas ficou muito evidente, na frase do líder do catolicismo, que chegaram ao resto do mundo as imagens das incontáveis festas, shows e demais aglomerações de brasileiros, inclusive conduzidas pelo presidente, enquanto milhares agonizam nos hospitais. Já ficou claro para o mundo que não somos um país sério, um país que deve ser levado a sério, quando, em meio à maior crise sanitária da nossa história, o ministro da economia e o presidente resolvem estremecer a relação diplomática com o nosso maior fornecedor de IFA, a China.

Além de um presidente digno do cargo, precisamos de futurologistas ou de especialistas nas pastas que consigam estar informados e atualizados nas suas áreas e, sobretudo, que tenham a capacidade de vislumbrar a partir de uma sentença básica: o que pode dar errado? Porque se há algo que deveríamos ter aprendido no Brasil é: o que pode dar errado neste país vai dar errado. E algumas vezes, tudo ao mesmo tempo, como agora: crise na saúde, educação, economia, sociedade, polícia, política...

Como ninguém previu e se planejou para evitar as filas em leitos de enfermarias e UTIs, a escassez de oxigênio e de insumos? A verdade é que o terror que vem acontecendo nesses ambientes ninguém de fora nunca saberá de fato e em detalhes, mesmo que alguém resolva escrever sobre ele, mesmo que câmeras de TV façam alguma reportagem. Mesmo que Petra Costa esteja fazendo um documentário sobre a pandemia. O martírio de pacientes graves e de profissionais de saúde nos bastidores dos hospitais será uma experiência trágica vivida somente entre eles. Fala-se em traumas semelhantes a ex-combatentes de guerra.

Aos que estão, felizmente, fora desses ambientes, só resta a empatia e a consciência, para não piorar ainda mais a situação. O que se pode fazer é exigir que a Constituição seja cumprida, que o governo trabalhe em prol da população, que a CPI da Pandemia documente, para a história, os culpados pelo caos e pela tragédia que ultrapassa 450 mil mortos de Covid-19 – sem contar com os mortos por outras doenças, que não conseguiram tratamento adequado no sistema de saúde ou que, por medo de contrair o vírus, não saíram de casa para buscar ajuda. Que a CPI, com a demanda de interrogatórios de ministros, médicos, conselheiros, auxiliares do presidente, não sirva apenas para Bolsonaro argumentar que foi mal-assessorado ou mal-orientado por sua equipe técnica. Que a CPI não sirva apenas para alimentar piadinhas no Twitter.

Essa data prevista para o fim da vacinação, que pode ser um baque nos otimistas, também pode ser uma forma de a gente se planejar. O que podemos fazer? Cuidar de nós mesmos, da nossa saúde física e mental. Penso sempre na frase “Pior é na guerra”. Penso em povos, como os da Faixa de Gaza, aterrorizados com a violência, as bombas e a destruição. Lembro o sofrimento de antigos prisioneiros políticos como Nelson Mandela, que passou 27 anos na prisão, e Dilma Rousseff, que ficou presa por quase três anos, período em que foi submetida a torturas. Um bom exercício mental talvez seja pensar naquilo que nos faz feliz e tentarmos manter contato com isso, mesmo que de uma forma diferente: seja família, amigos, trabalho, música, cinema, teatro, artesanato, literatura, artes visuais, humor...

A propósito, uma frase do ator Paulo Gustavo, uma das vítimas da Covid-19, circulou bastante pela internet após sua morte: “Rir é um ato de resistência”. Até foi cogitado que a morte do humorista seria motivo suficiente para um “basta!” da população brasileira ao governo Bolsonaro. Imaginou-se que a personificação de todas as 450 mil mortes na figura de alguém muito querido pelo público surtiria um feito tal qual o assassinato de George Floyd. Não aconteceu. O brasileiro é um caso sério a ser estudado. Seria um basta, se o eleitor bolsonarista não fosse aquele mesmo que caiu ou se deixou cair no conto da cloroquina.

A defesa do “tratamento preventivo”, não custa lembrar, teve e tem o objetivo de manter o povo na rua trabalhando e tirar, do entendimento dos eleitores bolsonaristas, a responsabilidade do chefe do executivo por qualquer morte de brasileiro por Covid-19, difundindo, em seu lugar, a ideia de que quem morreu, morreu porque não tomou o “kit preventivo” ou não o tomou a tempo de evitar um quadro mais grave. Genialidade do Mal. Acho que nem Hitler teria uma ideia tão brilhantemente malígna para iludir seus fanáticos apoiadores.

Para se ter uma noção da loucura que toma parte da população deste país: médicos que tratam acometidos pela Covid-19 já disseram que diversos pacientes, que haviam tomado cloroquina, não aceitavam que seriam internados. E, quando algumas dessas pessoas escapavam da morte, porque reagiram bem ao serem submetidas a diversos tratamentos nas UTIs, atribuíam a cura à cloroquina e não aos esforços dos profissionais de saúde.

O Brasil caminha a passos largos para atingir 500 mil mortes por Covid-19. Um estudo prevê que, até agosto, vão morrer, devido à doença, 750 mil brasileiros – ou seja, o número equivalente a multiplicar por 300 vezes a queda das Torres Gêmeas. E o povo brasileiro, ou melhor, o eleitor bolsonarista, que precisa de um estudo sério, ainda agarra-se ao Pai da Mentira. Quantas mortes a mais até o seguidor dessa seita se convencer de que caiu numa fábula letal, tipo Jim Jones? Como cantou Bob Dylan, em Blowin' in the wind (1962): “Quantas mortes serão necessárias até ele saber que pessoas demais morreram?”

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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