Mirante

O macartismo bolsonarista: 1º ato

TEXTO Débora Nascimento

25 de Novembro de 2019

Audiência pública no STF com artistas, no início de novembro

Audiência pública no STF com artistas, no início de novembro

Foto Nelson Jr. SCO/STF

No dia 9 deste mês, Artur Xexéo escreveu para O Globo um texto intitulado Você tem medo de quê?, no qual afirma que, mesmo sob ataques, descasos e revanchismos do governo Bolsonaro, a arte brasileira sobreviverá. “Ele acaba com o Ministério da Cultura, dá um cargo supostamente importante na área cultural para um artista rancoroso, ameaça intervir em instituições como a Funarte, a Ancine, a Biblioteca Nacional, mas os Chicos e as Fernandas continuam aí. Os Zé Celsos e os Bacuraus também. Eles fazem arte, presidente. São indestrutíveis”, conclui o jornalista.

Embora tenha alertado ao ocupante do Palácio do Planalto sobre a indestrutibilidade da arte, essa ideia poética, defendida por Xexéo, não pode ser multiplicada como um discurso de resposta ao afrontoso desmonte praticado por esse desgoverno. Tomemos como exemplo os indígenas. Pode até ser poético dizer que eles vão resistir, vão sobreviver, mas assassinatos vêm sendo cometidos e permanecem impunes. A sociedade precisa cobrar ações do governo e não romantizar a situação das vítimas.

Quando Xexéo fala em sobrevivência, exemplificando Chico Buarque e Fernanda Montenegro, ele menciona o topo da cadeia produtiva da arte, o olimpo da arte brasileira. Esses são artistas que, mesmos atacados pelo governo e seus seguidores, podem se beneficiar da longa experiência, do peso do nome, do tamanho de seu público, da influência e do patrimônio que já acumularam. Quando o jornalista cita o fenômeno Bacurau, está usando como referência uma obra cinematográfica cuja produção foi iniciada antes do esfacelamento bolsonarista.

Atualmente, há centenas de projetos audiovisuais parados, porque a Ancine não liberou verbas. O filme Marighella, que seria lançado em 20 de novembro (Dia da Consciência Negra), não conseguiu receber o dinheiro referente à distribuição – até onde sabemos. No entanto, como é uma produção da 02 Filmes e Globo Filmes, vai virar série na TV Globo em 2020, sem maiores danos. Vale lembrar que a emissora, que é a única TV aberta do país a realmente investir em produtos audiovisuais de qualidade, como minisséries e filmes, vem sendo ameaçada pelo presidente de não ter sua concessão renovada, caso continue a noticiar o envolvimento da família Bolsonaro em crimes.

O que não está no texto de Xexéo é que, para um filme como Bacurau existir, foi necessária uma longa trajetória da indústria cinematográfica brasileira, que envolveu diversas fases, como a retomada nos anos 1990, o surgimento das leis de incentivo, a profissionalização do setor. Um cineasta, produtor, roteirista ou fotógrafo que construiu sua vida profissional e pessoal baseada na realização de filmes há uma, duas, três décadas, vai viver como agora? O cinema brasileiro, que já conquistou diversos prêmios internacionais e criou seus próprios festivais, enfrentará uma nova precarização, com impactos incalculáveis, inclusive para a economia do país (segundo dados da Ancine, o audiovisual rendeu, em 2014, R$ 24,5 bilhões). Já há realizadores que não têm a menor ideia do que vão fazer a partir do próximo ano. Kleber Mendonça Filho, que está sendo cobrado de uma controversa multa de R$ 2 milhões pelo O som ao redor (2012), terá verbas para seu próximo projeto?

O cinema está ao Deus dará. O presidente da Ancine teve que renunciar ao cargo no dia 14, após ter sido afastado por denúncia do Ministério Público Federal. Bolsonaro disse que agora sua intenção é nomear um evangélico que cite “200 versículos bíblicos”. O que isso tem a ver com cinema, ninguém sabe. Ele já ameaçou transferir a sede da Ancine, que fica no Rio, para Brasília. E também ameaçou extinguir o órgão. “Vai ter um filtro, sim. Já que é um órgão federal, se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine. Privatizaremos ou extinguiremos”, disse em 19 de julho, um dia após assinar o decreto presidencial que transferiu o Conselho Superior do Cinema do Ministério da Cidadania para a Casa Civil. No dia 4 de novembro, houve uma audiência pública de artistas no Supremo Tribunal Federal para criticar essa transferência e a censura de obras de arte, como também defender a liberdade de expressão artística.

A cada semana, surge uma nova ameaça, chantagem ou factoide. Para 2020, o governo propôs um corte de 43% no orçamento do Fundo Setorial do Audiovisual. Há também a previsão de uma redução gritante na captação de recursos. Em 2020, esse orçamento passará de R$ 650 milhões para R$ 300 milhões.

Em agosto, o ministro da Cidadania, Osmar Terra, interrompeu a seleção de séries com temática LGBT+, pré-selecionadas em edital para TVs públicas. O Ministério Público Federal interveio sobre a censura e, em outubro, a Justiça determinou que a Ancine retomasse a produção das séries.

Em setembro, a Ancine suspendeu o termo de permissão que dava aos produtores dos filmes Greta e Negrum3 uma ajuda de custo de R$ 4,6 mil (a cada produção) para a participação no Festival Internacional de Cinema Queer, em Lisboa. O primeiro longa aborda homossexualidade; o segundo, questão racial. Greta é protagonizado por Marco Nanini, que interpreta um enfermeiro homossexual aficionado por Greta Garbo. O filme vem sendo aclamado pela crítica.

Mais conhecido por ser a pessoa que atacou gratuitamente Fernanda Montenegro (chamou a atriz de “sórdida” e “mentirosa”), o novo secretário da Cultura do governo Jair Bolsonaro, Roberto Alvim, fez, no dia 19 deste mês, um discurso delirante na reunião anual da Unesco, em Paris. Em um dos trechos, disse que “a arte e a cultura no Brasil estavam a serviço da bestialização e da redução do indivíduo a categorias ideológicas, fomentando antagonismos sectários carregados de ódio – palcos, telas, livros, não traziam elaborações simbólicas e experiências sensíveis, mas discursos diretos repletos de jargões do marxismo cultural, cujo único objetivo era manipular as pessoas, usando-as como massa de manobra de um projeto absolutista”.

O discurso de Alvim, o Rancoroso, lembrou o do artista plástico fracassado Adolf Hitler, que considerava “arte degenerada” a arte moderna que o ignorou, vangloriava apenas a arte clássica. Esse discurso desequilibrado do secretário gerou constrangimento em ministros da Cultura de diversos países, presentes à reunião. E a conclusão de sua fala não poderia ser mais simbólica do sanatório geral: as mudanças na gestão cultural brasileira seriam “para a glória de Deus”.

A declaração, que parece ter saído de alguém que passou por uma lavagem cerebral, é uma amostra do novo macartismo que o governo Bolsonaro pretende implantar no Brasil. Uma perseguição ideológica tão ou mais estúpida do que a praticada nos Estados Unidos nas décadas de 1940 e 1950, sob o comando do senador Joseph McCarthy.

O intuito, quase o mesmo. Se, naquela época, a ideia básica era caçar comunistas nos órgãos oficiais e nos meios acadêmico e artístico, hoje a intenção é destruir cinicamente aqueles que fazem pensar. A estratégia do governo é cortar na fonte: as verbas para a educação e a cultura – e, neste caso específico, aniquilar uma arte que necessita fundamentalmente de um bom orçamento para existir em sua plenitude, o cinema.

Durante o macartismo nos anos 1950, o escritor Dalton Trumbo era um dos perseguidos em Hollywood. Acusado de comunista, ele se recusou a apontar nomes de outros “comunistas” na comunidade artística – abdicando, desta forma, do perdão de Joseph McCarthy. Foi preso sob a acusação de traição à pátria e sofreu a retaliação de não conseguir mais trabalhos. Uma forma de driblar a situação, para poder conseguir sobreviver, foi usar pseudônimos ou o nome do amigo Ian McLellan Hunter, que assinou, em seu lugar, o roteiro de A princesa e o plebeu (Roman holiday, 1953), de William Wyler. No macartismo bolsonarista, a estratégia é desmontar o setor, que, em sua maioria, sabe-se que é anti-Bolsonaro.

Estamos na reta final de 2019, no primeiro ano desse (des)governo, um governo sem programa de governo. Que tem apenas diretrizes ultraneoliberais. Depois que aprovar suas reformas e livrar seus filhos da Justiça, Bolsonaro provavelmente terá mais tempo para inventar novos inimigos internos, persegui-los e prejudicá-los. A hora de tentar reagir é agora, enquanto há tempo e, principalmente, espaço. O macartismo bolsonarista pode estar apenas no seu 1º ato. A arte brasileira vai sobreviver, Xexéo. Mas a que custo?

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

 

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