Mirante

O bom e o mau Messias

TEXTO Débora Nascimento

31 de Maio de 2022

Arte Matheus Melo sobre frame de vídeo

O fato aconteceu há muitos anos, em meados da década de 1990. Um dos meus irmãos tinha ido levar uma prima de volta à casa. A dois quarteirões da residência dela, no Vasco da Gama (zona norte do Recife), um carro bateu no dele. Qualquer pessoa que tivesse assistido ao acidente de pouca proporção, mais um incidente, na verdade, saberia logo quem era o culpado: o motorista do outro carro, que, inclusive, estava visivelmente bêbado. O desconhecido, vendo que se tratava de uma mulher e de um jovem, começou a ficar extremamente grosseiro. Ao sabermos do imbróglio, eu e minha família fomos direto ao local para dar reforço a meu irmão. Enquanto todos aguardavam a chegada da CTTU, uma viatura da polícia passou por perto. Quando o carro parou ao lado da confusão, o primeiro pensamento que me veio à mente foi: agora f**** de vez. Evidentemente, morando no Brasil, praticamente nasci sabendo que não se deve confiar nessa instituição.

Quando os policiais começaram a descer da viatura, surgiu uma imagem totalmente inesperada. Dentre os agentes, um destacou-se. Naquele homem, reconheci um antigo colega da escola pública onde eu havia estudado nos anos 1980, em Casa Amarela. Ele abriu o seu habitual sorriso e exclamou, surpreso: "Débora?!" Com a mesma tranquilidade e sensatez com as quais ajudava os amigos do colégio, inclusive eu, a entender as equações matemáticas, Messias conseguiu acalmar o homem e convencê-lo de que ele estava totalmente errado, a começar pelo fato de ter bebido antes de dirigir. A situação foi resolvida e saímos todos na santa paz.

Ao me despedir de Messias, meu colega de turma e um dos seis filhos do também gentil seu Manoel da Venda, o sentimento que tive foi o de que qualquer outro cidadão, pobre ou rico, preto ou branco, também deveria ter aquele mesmo direito que tivemos: o de sentir segurança e proteção quando a polícia estiver por perto. Porque a corporação tem a obrigação profissional e ética de trazer, em circunstâncias anormais, a volta à normalidade, aplicando os princípios da lei, da justiça, da civilidade, da igualdade de direitos e deveres. Enfim, algo básico, mas que no Brasil parece um sonho delirante.

Frequentemente, ocorre o contrário: atos de brutalidade e abuso de autoridade, muitos deles provocados deliberadamente por esses agentes do Estado. Na semana passada, o Brasil assistiu – mais uma das milhares de vezes – a cenas típicas de países que vivem sob ditadura, com torturas e mortes promovidas por policiais: a chacina da Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, que matou 26 pessoas, em 24 de maio, e o assassinato, no dia seguinte, em Sergipe, de Genivaldo Santos na câmara da gás improvisada na mala da viatura da Polícia Rodoviária Federal (órgão que também participou como coadjuvante da chacina), fato ocorrido em um dia simbólico, no qual completavam-se dois anos do assassinato de George Floyd, em Minnesota (EUA).

Sobre a morte de Genivaldo, cujo "crime" foi andar de moto sem capacete, o presidente da República, que costuma pilotar livremente nas suas motociatas sem o equipamento de proteção, chamou levianamente, na segunda (30), a vítima de "marginal". Ainda acrescentou que "não se pode generalizar" o fato, como se este tivesse sido um evento isolado. No domingo (29), o programa Fantástico revelou que outras 18 pessoas no país passaram pela mesma situação em viaturas da polícia e só sobreviveram porque tinha sido lançado spray de pimenta e não gás lacrimogêneo, produto que retira o oxigênio do ambiente e acarretou na morte do sergipano. 

Já a "operação" no Rio de Janeiro mereceu um elogio infame de Bolsonaro no Twitter: "Parabéns aos guerreiros do BOPE e da @PMERJ que neutralizaram pelo menos 20 marginais ligados ao narcotráfico em confronto, após serem atacados a tiros durante operação contra líderes de facção criminosa. A ação contou com apoio da DRE (@policiafederal) e @PRFBrasil". Quando o principal mandatário do país enaltece uma ação que passa longe da inteligência e culmina com dezenas de mortes (inclusive de 13 pessoas que não tinham passagem pela polícia), algumas delas a facadas, o que quebra a tese da troca de tiros, só faz estimular que mais abusos de poder multipliquem-se. 

Não é coincidência, portanto, que desde o início do seu mandato, tenha havido um significativo aumento no número de mortes praticadas pela Polícia Militar, já conhecida como a que mais mata no mundo e também a que mais morre (círculo vicioso que lembra a frase de Marcelo Yuka, "Também morre quem atira"). Se em 2015, foram 3.330 mortos, em cinco anos, esse percentual dobrou. Em 2019, foram 6.357 pessoas assassinadas. Em 2020, 6.424. São números que deveriam provocar indignação generalizada na população brasileira.

Mas o racismo da sociedade impede que ela se sensibilize e se mobilize contra esse genocídio – 80% das vítimas são pessoas negras e pobres, em sua maior parte, homens negros jovens. A dimensão da reação da população tem impacto direto no que se refere ao andamento de investigações e julgamentos de crimes. Um ano após a morte de George Floyd, que ganhou repercussão mundial e revolta massiva nos Estados Unidos, o assassino, o policial Derek Chauvin, recebeu a sentença de 22 anos de prisão. Já a morte de Genivaldo, no Brasil, ocorrida com mais requinte de crueldade, angariou reações apenas nas redes sociais.

Além do racismo, outro fator que arrefece a indignação no país é a frequência com a qual a polícia brasileira comete ações brutais e assassinatos deliberados. Mal a sociedade reage a um ato de violência, já acontece outro e mais outro e mais outro... E, assim, as vítimas vão perdendo rapidamente o protagonismo do noticiário para as próximas. Sem contar que geralmente os casos que envolvem algum aspecto inédito ou um engajamento maior nas redes sociais conseguem ganhar destaque na imprensa. Além disso, com a grande quantidade de casos de violência no país e a crise no mercado jornalístico, poucos veículos atualmente têm condições de contribuir com a elucidação de algum caso não-resolvido através do jornalismo investigativo.

Os dados das mortes praticadas por policiais foram levantados pelo Monitor da Violência, resultado de uma parceria entre o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segundo os pesquisadores, a diminuição no número de mortes de 2020 para 2021, pode ter a ver com alguns fatores: capacitação dos policiais em cursos de sobrevivência e de uso progressivo da força; maior utilização de armamentos não letais, como as armas de choque; rigor no acompanhamento e punição de episódios de violência policial; isolamento social na pandemia da Covid-19 (em agosto de 2020, o STF proibiu operações policiais em favelas do Rio durante o período).

Mas um item pode ter sido fundamental: a adoção de câmeras nos uniformes da PM de São Paulo. Só agora, após a chacina na Vila Cruzeiro, a segunda ação policial mais letal da história do Rio de Janeiro (ficando atrás apenas da chacina no Jacarezinho, em maio de 2021, com 28 pessoas mortas), o governo estadual anunciou o começo do uso dos equipamentos de filmagem nas fardas da PM. Inicialmente, 1.637 policiais de 9 unidades vão utilizar a câmera.

O fato de o presidente ter elogiado a operação policial na Vila Cruzeiro não tem a ver somente com a sua visão distorcida da realidade. A bajulação descabida aponta para o interesse de trazer o apoio dos PMs para o seu projeto de permanecer, a qualquer custo, na cadeira de presidente, uma forma de garantir, por tabela, o foro privilegiado (o direito de ser julgado apenas pelo STF) e a imunidade penal temporária (só poder ser julgado durante o mandato por crimes de responsabilidade, em processo de impeachment, e por infrações comuns penais, em ação do STF, apenas quando tiverem relação com o exercício da presidência).

Se há uma desconfiança de que o intuito do presidente do Brasil é seguir os passos de Donald Trump e arquitetar uma rebelião de seus eleitores contra uma possível derrota na eleição deste ano, essa suspeita ganha suporte quando Bolsonaro faz constantes adulações às Forças Armadas com elogios e aumentos exorbitantes de salários, como no caso do Exército (que, no seu mandato, teve o maior aumento de honorários de todo o funcionalismo público). Nos Estados Unidos, a tentativa trumpista de golpe não deu certo porque havia instituições fortes e comprometidas com a manutenção da lei e da ordem.

A polícia foi fundamental para conter a invasão do Capitólio. Isso fica claro no impressionante documentário Four hours at the Capitol (HBO), que mostra, através de imagens amadoras, da imprensa, de vigilância e até mesmo filmagens postadas pelos invasores nas redes sociais, toda a trajetória dos acontecimentos que culminaram com a invasão, levando a um exaustivo embate entre policiais e invasores, prisões e até suicídios posteriores. No caso de uma mesma investida aqui no Brasil, poderemos contar com a polícia para conter os insatisfeitos com o resultado das eleições? Provavelmente, numa situação como essa, vamos precisar de mais bons Messias na polícia para conter os seguidores do mau Messias.

O Brasil assiste a cenas de violência moral e física praticada por agentes do Estado há décadas, em diferentes períodos e mandatos. Está claro que a PM, na maior parte das vezes, age por conta própria, como se fosse um organismo independente, um poder paralelo, mas que, na prática diária, precisa de regras claras, treinamento, formação humanista e remuneração mais adequada, pois historicamente muitos desses funcionários públicos costumam atender ao ímpeto de cair no lado sombrio da força. Recentemente, um achado arqueológico demonstrou isso. Em uma pedra de 17 séculos atrás, encontraram uma inscrição esculpida. A frase em grego era uma espécie de pichação da época e parecia ser a revolta contra um soldado romano: "Secvndinvs, filho da p***". 

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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