Mirante

Não peça desculpa por ser feliz

TEXTO Débora Nascimento

31 de Agosto de 2022

Imagens da primeira-ministra da Finlândia Sanna Marin durante e após a festa

Imagens da primeira-ministra da Finlândia Sanna Marin durante e após a festa

Arte sobre reproduções Rafael Olinto

Em meados dos anos 1990, estive em uma festa que, como qualquer festa da época, teve aquele momento em que alguém sacava da bolsa uma máquina fotográfica e registrava, em algumas das 36 poses do rolo, o que estivesse ocorrendo. Eram tão poucas as opções de fotos, que você tinha que rezar, segundos antes do “clique”, pra não sair esquisito ou com a cabeça cortada na imagem. Naquele momento, eu estava abraçada a alguns amigos e olhávamos todos para a câmera que estava posicionada abaixo de nós. Levantei a perna de leve, de brincadeira, e a lente flagrou, por debaixo da minha saia, um pedaço do biquíni. Após ver a imagem no papel, quis a foto pra mim. A pessoa que fotografou disse: "Não, no futuro essa foto pode ser útil para chantagear você". Ele falou em tom de brincadeira. Mas achei curioso o fato de ele realmente não ter me dado e de eu ter pensado, mesmo rapidamente, o quão injusto seria que algo feito num instante descontraído pudesse ser usado depois contra alguém. Nessa época, não havia internet nos computadores domésticos. E muito menos, Instagram.

Quase 30 anos depois, nunca mais vi aquela foto, que não era, de forma alguma, comprometedora, e também retirei, já há alguns anos, aquela pessoa do meu rol de amigos virtuais, por seus posicionamentos extremamente retrógrados, para não dizer bolsonaristas. Eu já tinha até me esquecido daquela foto, na realidade, mas relembrei após ter visto a reportagem sobre a primeira-ministra da Finlândia pedindo desculpas pelo vídeo em que aparece dançando até o chão numa festa privada.

Não sei em outro país, mas a frase “dançar até o chão”, no Brasil, nos faz lembrar logo da dança “na boca da garrafa”. A dança do grupo É o Tchan! tomou conta do país nos anos 1990. Quantas e quantas festas particulares não tiveram o seu momento “Vai ter que dançar na boca da garrafa!”? Quantos e quantos casamentos e festas de formatura não viram futuros médicos, advogados, engenheiros ou seus parentes dançando agachados sobre a boca de uma garrafa de bebida?

Existe uma falsa ideia, nas sociedades, de que pessoas em cargos de status considerados “de elite”, “nobres”, não devem ser flagradas nesse tipo de descontração. Caso contrário, não serão mais dignas de respeito – em 1985, a Princesa Diana escandalizou a família real por ter subido ao palco da Royal Opera House, para dançar uma coreografia com o bailarino Wayne Sleep da música Uptown girl. Recentemente um vídeo nos stories de médicas reproduzindo o videoclipe Envolver, de Anitta, gerou uma discussão sobre o assunto, à qual presenciei. Alguém defendeu que aquilo não era comportamento de médicas, que elas perderiam o respeito dos pacientes que as seguissem no Instagram.

Não vi o vídeo das médicas, mas tentei imaginá-lo. E pensei como eu reagiria ao ver minha ginecologista dançando no chão, como fez Anitta. E, mesmo assim, eu continuaria a respeitá-la. Motivo melhor pra perder respeito por um médico é ouvi-lo tentar convencer o paciente a votar em Bolsonaro e/ou a tomar cloroquina contra a Covid-19. Somente numa situação hipotética em que alguém precise fazer uma cirurgia no cérebro com o mais gabaritado neurocirurgião da área, não aconselharia ninguém a desistir do profissional por ele ter apertado o 17. Porque hoje é mais fácil encontrar o melhor presidente do país (e tê-lo por três vezes no cargo) do que encontrar o melhor médico de uma especialidade num plano de saúde.

A propósito, por falar em Lula, ele também foi vítima dessa confusão de papéis que as pessoas costumam fazer com figuras públicas. Quem não se lembra do texto publicado no New York Times, em 2004, que destacou negativamente o fato de o então presidente do Brasil gostar de beber umas e outras? Até hoje tem quem resgate esse episódio tentando colar em Lula o rótulo de bêbado ou alcoólatra (o que é mais grave, afinal é uma doença). Mas uma coisa parece certa: ele não trabalhava embriagado e nunca surgiu trocando as pernas no Palácio do Planalto. Imagens antigas suas em brindes com diversas pessoas, como Chico Mendes, Chico Buarque e Zeca Pagodinho, demonstram um espírito festivo e contam a favor entre seus eleitores. Por causa dessa personalidade expansiva, surgiu a frase recorrente na sua campanha, a de que, no seu próximo governo, o brasileiro vai voltar a comer picanha e tomar cerveja.

Em muitos países, é provável que esse discurso não fosse aceito. Poderia ser entendido como vulgar. Mas, através de uma metáfora simples, a frase, em seu poder de síntese, tem o mérito de mandar uma mensagem direta para a população: a vida vai voltar a ser boa. Ao contrário de outras eleições, Lula não precisa mais gastar seu economês falando em juros, dólar, bolsa, reformas, inflação, combustível, exportação, importação, commodities. Boa parte do Brasil quer voltar a comer. E, se possível, voltar a comer carne, algo que simboliza o ápice da bonança num país que passa fome e onde o vegetarianismo (ou veganismo) ainda é assunto complexo. Fazer churrasco com os amigos significa, aqui, estar bem de vida.

Embora vire ataque nas redes sociais, essa informação da predileção etílica de Lula talvez não seja explorada com maior intensidade por seus detratores pelo fato de ele ser homem. Se fosse Dilma a personagem da notícia, a reação provavelmente seria pior. A mão dos críticos sempre pesa mais quando o alvo é uma mulher. Nesta semana, foi divulgada a notícia de que uma professora na Índia havia sido demitida porque postou fotos de biquíni em seu Instagram (e era um biquíni “bem-comportado”). Alguém imagina o mesmo acontecendo com um professor usando sunga na sua vida pessoal?

Alunos que a seguiam deram print nas imagens da mulher que estavam em seus stories (que só duram 24 horas) e compartilharam entre si. Os pais e professores ficaram horrorizados e alegaram que os estudantes poderiam não mais respeitá-la. Nem, ao menos, questionaram os alunos por suas atitudes e se, afinal, perderam mesmo o respeito por ela. A propósito, como é fácil neste mundo machista se perder o respeito por mulheres – o maior exemplo disso vem do presidente da República e sua frequente agressão verbal a jornalistas. O que dizer mais? Sua eleição foi a coroação do machismo no Brasil.

Essa vigilância dos corpos e da vida alheia, principalmente feminina, só reforça o aspecto tóxico das redes sociais, em especial o Instagram, não somente na forma como surte um efeito negativo em relação à autoestima dos usuários, mas também no que se refere à imagem pública. O que se posta contribui para ser formada uma ideia definitiva sobre quem postou. Uma vida inteira pode ser resumida (ou reduzida) em fotos. Você é quem você mostra nas redes sociais. Toda a complexidade de sua existência (amores, dores, rancores, traumas, saberes, experiências, anseios) só existe a partir daquela coleção de imagens postadas.

Um frame, um vídeo, uma foto podem viver para sempre. Mas uma vida não. Um deslize pode ser replicado, como a brincadeira no TikTok que, após gerar bullying na internet, provocou o suicídio do filho da cantora Walkyria Santos (ex-Magníficos). Lamento por essa juventude que já nasceu em um mundo onde não se tem o direito de brincar, de errar e de ser feliz. Um mundo onde tudo vira postagem, todas as ações viram fotos, todos os gestos viram vídeos. Tudo tem que ser minimamente calculado. Caso contrário, pode-se virar um pária digital ou real.

Dizem que o erro da primeira-ministra, no caso do vazamento do vídeo da festa, foi o fato de que o evento foi realizado em plena crise econômica naquele país e em meio à tensão militar com a Rússia, que ameaçou invadir a Finlândia, caso o país insista em entrar na Otan. Outro agravante seria porque duas amigas de Sanna Marin tiraram fotos se beijando nos arredores da casa oficial, com as blusas levantadas, mesmo que não mostrassem os seios. Por conta das postagens de amigos que vazaram, a premiê foi humilhantemente obrigada pela oposição a fazer teste toxicológico – e deu negativo.

Quando vi o vídeo de Sanna Marin pedindo desculpas, lembrei da expressão “unapologetic bitch”, título de uma música de Madonna, e de duas frases. Uma de John Lennon: “Vida é aquilo que acontece enquanto você está fazendo outros planos”. E outra, de Nelson Rodrigues, sobre não deixar ninguém saber que você é feliz. O escritor falou a respeito disso em um tempo a léguas de distância do Instagram, mas sabia dos sentimentos (bons, mas também maus) que exibir sua felicidade pode despertar nas pessoas. Ao ver aquela mulher competente, de 36 anos, cujo governo foi exemplo mundial no combate ao coronavírus, chorando, numa coletiva de imprensa, tive vontade de dizer: não peça desculpa por ser (ou querer ser) feliz.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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