Dois sábados atrás, estava passando um documentário na TV sobre Cazuza. Parei pra assistir. Quando chegou no trecho em que o cantor recebe o resultado positivo do teste de HIV, há uma encenação do momento. Chorando, ele corre para a praia buscando refúgio no lugar que antes representava o cotidiano de sua gloriosa juventude, sol, mar, amigos, namorados, sorrisos, pele bronzeada, diversão. Ezequiel Neves tenta consolá-lo. Comecei a chorar. Não somente pela cena ou pelo sofrimento que Cazuza enfrentou. Mas imaginei como deve ter sido terrível também para meu tio, que, na época, descobria que estava com o vírus. Essa situação exata eu não presenciei, apenas o dia em que ele contou para a minha mãe que estava infectado. Eu me tranquei no quarto e eles tiveram essa conversa na sala de jantar. A porta tinha uma brecha e dava para ver e ouvir parte do que acontecia do lado de fora. Ao saber da revelação, comecei a chorar. Nesse tempo, ser soropositivo era como receber uma sentença de morte.
Era impensável pra mim, que meu tio, uma pessoa jovem, aparentemente saudável, que vivia viajando, se divertindo – assim como Cazuza – e tinha toda uma vida pela frente, estivesse, a partir daquele resultado de exame de sangue, condenado a sucumbir de um mal que não contava com um remédio na farmácia. Passei a rezar para que surgisse a cura da Aids – hoje em dia, os pacientes podem conviver a vida inteira com o vírus que, neste 2021, completou 40 anos de descoberta.
A revelação dele foi feita em 1990. Cazuza ainda estava vivo. Isso tudo nos assombrava, porque, embora estivesse longe de haver redes sociais na época, o processo do adoecimento do artista fora explicitado em fotos, matérias de TV e jornais, shows, discos. Acompanhamos tudo. O disco ao vivo vivia tocando em casa. O show exibido na TV foi lindo e digno. Quando Cazuza faleceu, deixei de ouvir essas músicas. Elas tinham o peso de uma memória dura de acessar, porque carrega – até hoje – sentimentos difíceis, como tristeza, pena, incompreensão, sensação de fragilidade, injustiça, vulnerabilidade, finitude.
A saudade do meu tio permanece em mim. Por isso, vez ou outra, sou acometida pela força dessa existência. Alguns meses atrás, me pediram um depoimento sobre lembranças de sessões nos cinemas do Recife. Rapidamente, muitas das que vieram à tona foram as de ser levada por ele, na infância, para ver filmes. Meu pai havia falecido quando eu estava prestes a completar apenas 1 ano de vida. E minha mãe não tinha dinheiro nem tempo suficiente para passeios e diversões, vivia trabalhando ou estudando ou, depois, cuidando dos meus três irmãos, frutos do segundo casamento, que começaram a nascer a partir dos meus 9 anos.
Era meu tio quem mais me levava, nessa fase, aos “cinemas de rua” dessa época. Isso significava ir de ônibus ao centro da cidade para ver filmes no Veneza, Trianon, Art Palácio, Astor, Ritz e no São Luiz, que eu gostava especialmente por conta da bomboniere localizada à esquerda do hall. Eu sempre pedia pra ele comprar um tubinho de Alpino. Esse chocolate, durante muito tempo, ficou associado a esses flashes de memória.
Tenho poucas lembranças das imagens desses filmes nas telas, acho que pelo fato de já ser míope há um bom tempo, o que só foi descoberto quando eu tinha 9 anos, por apertar muito as pálpebras para enxergar as coisas distantes. Mas, de qualquer forma, a sensação boa de ir ao cinema perdurou, como também a de ir à praia. Em uma dessas vezes, lembro de estar, de maiô vermelho, brincando na areia, rodeada por seus amigos, gays como ele – essa convivência fez com que a homossexualidade fosse natural para mim desde criança, como deve ser. Tempos depois, fui entender que, além da satisfação de sair com a sobrinha que ele adorava, acho que meu tio tinha uma certa pena por eu ter sido órfã de pai ainda bebê – a propósito, por eu saber dessa ausência desde cedo, o tema da morte também chegou a mim, quando criança, com naturalidade.
Meu tio era um orgulho na minha vida. Não por me levar para passear, claro. Mas por sua história. Sua mãe, minha avó materna, não conheci. Faleceu muito jovem também, de tuberculose, aos 40 anos, deixando três filhos adolescentes. Meu tio saiu da casa do pai militar, na periferia da zona norte do Recife, aos 18 anos, para morar só. Fez intercâmbio nos Estados Unidos, quando a família não tinha a menor ideia do que era isso. Lembro das vezes em que o levamos ao aeroporto para viajar. Eu tinha uns 4, 5 anos. Nessa época, passei a achar que os EUA e São Paulo eram localizados no céu. Como, em seus retornos à cidade, nunca fomos buscá-lo no aeroporto, eu só tinha a imagem do avião subindo.
Meu tio foi a primeira pessoa da família a ter um diploma universitário. Formou-se em Letras na Unicap. Ele gostava muito de ler. Sempre nos visitava aos sábados, perto da hora do almoço. Chegava arrastando as sandálias havaianas depois de voltar da praia – minha mãe costumava reclamar para ele parar com esse barulho. O que eu entendia é que, para ela, isso fazia a pessoa parecer desleixada.
Ele trazia sempre um livro consigo. Quase sempre publicados em inglês, que ele falava fluentemente, ajudando no seu trabalho como competente agente de turismo. Também falava e lia em espanhol, francês e alemão. Sua casa era repleta de livros, roupas e discos, muitos discos. Ele adorava cantoras. Quando me tornei fã de Madonna com o Like a Virgin, em 1984, ele me deu como presente de aniversário o disco seguinte, True blue (1986), cujo encarte abri, fascinada com as fotos e o design gráfico. Perguntei a ele sobre o título: descobri que blue não significava somente azul, mas também tristeza.
Além de Madonna, ele me deu o segundo disco de Whitney Houston (de 1987), cuja capa trazia a cantora com camiseta branca, linda. A música que eu mais ouvia era I wanna dance with somebody – até hoje, a minha preferida dela. Ele gostava de falar do parentesco da nova intérprete com a sua artista predileta, Dionne Warwick, de quem ele cultivava verdadeira adoração e da qual já tinha visto diversos shows. Mas nunca no Recife.
O tempo foi passando e, como ele sempre aparecia disposto, bronzeado e divertido à nossa casa, esquecemos que ele poderia falecer dessa doença. Até que, um dia, o telefone tocou. Era um amigo dele avisando que ele havia desmaiado num supermercado e fora submetido a uma intervenção cirúrgica. Estava com uma inflamação no coração. Após o procedimento, se recuperou na nossa residência e, em alguns dias, voltou para o seu apartamento em Boa Viagem.
Aparentemente se recuperou, até que ficou sem dar notícias. Ele dizia que passar a faltar aos almoços dos sábados iria nos acostumar com sua futura ausência. Minha mãe estranhou e foi à residência dele. Ele estava sem forças até para tomar banho, precisava sentar em uma cadeira para isso. Minha mãe o trouxe para ficar conosco. Mas houve uma piora. Fui com ele ao pneumologista no Espinheiro, que viu o resultado do raio-x e disse que os pulmões estavam comprometidos. Indicou que fosse levado imediatamente ao hospital. Dessa vez, fiz o caminho inverso da minha infância. Agora eu, aos 20 anos, era quem o conduzia, porque ele não agia nem dizia uma palavra. Tinha plano de saúde, mas foi para um hospital público. Na época, os planos de saúde não atendiam pacientes com Aids, como parte do pacote da imensa ignorância e homofobia que eram ainda maiores do que são hoje. Ele foi internado no Oswaldo Cruz e nunca mais voltou para a sua ou a nossa casa.
Durante os quase dois meses em que esteve internado, ficava sempre calado. Nesse período, vários pacientes jovens também foram internados e morriam um a um rapidamente, parecia uma guerra desigual em que, de um lado, havia munição pesada, do outro, mãos vazias e atadas. Conheci um rapaz, que era bancário, de muito bom humor. Estava com câncer no cérebro (foi a forma como a doença se manifestou nele). Quando esse rapaz faleceu, meu tio ficou arrasado, porque era esse companheiro de enfermaria que o animava nesses dias de desesperança. No meio desse contexto, um fato que me deu mais orgulho dele foi o de ter dispensado a cantoria dos evangélicos que pregavam no hospital. Meu tio não tinha religião e manteve-se assim, firme, até o fim. Não que não tivesse medo da morte. Mas não queria abdicar do que ele acreditava.
Quando ele faleceu, minha mãe foi ao seu apartamento e pegou pouca coisa, porque era muito difícil o processo de recolher o legado da vida de alguém, especialmente de um irmão querido, próximo e amigo. Um dos itens que ela recolheu e trouxe para a nossa casa foi uma fita VHS, que, com certeza, se ele estivesse vivo, eu jamais perderia a oportunidade de usar para tirar onda da cara dele. Era uma gravação de um karaokê, feita nos Estados Unidos, em um estúdio muito tosco, com um chroma key horrível, com um pôr do sol artificial de cenário. Do começo ao fim, meu tio desafina.
No vídeo, ele canta (ou tenta cantar) The greatest love of all. Na época, pensei o quão triste era ter, como único registro dele em movimento, um vídeo desses e com uma música cujo arranjo eu considerava cafona. Somente em 2016, após assistir ao filme Toni Erdmann, comédia austro-alemã que traz uma cena com essa música, parei para prestar atenção na letra e no que significava para meu tio cantar essa música. Entendi que tinha tudo a ver com a história dele, porque ela fala de orgulho, autoestima, amor próprio, empoderamento, que todo mundo procura por um herói e que, na falta de quem se espelhar, você se espelha em si mesmo. No trecho de maior intensidade, é dito: “Eu decidi há muito tempo/ Nunca andar na sombra de alguém/ Se eu falhei, se eu fui bem-sucedido/ Pelo menos, eu vivi como eu acreditei/ Não importa o que levem de mim/ Eles não podem tirar minha dignidade”.
Na volta do enterro dele, em novembro de 1994, me tranquei naquele quarto de onde ouvi, quatro anos antes, que ele estava com Aids. Comecei a adormecer, então senti uma mão pegando no meu braço, e respondi: “Tia?”, pensando que era minha tia-avó, Dona Iracema, que o criou após minha avó ter falecido. Não era. Não tinha mais ninguém no quarto. Minha tia-avó, que dividia o quarto comigo, estava na varanda. Ela o adorava, o idolatrava. Ficou desorientada, angustiada, me perguntava quem tinha sido enterrado. O choque de realidade foi muito pesado para ela.
Dias depois de meu tio ter falecido, com apenas 40 anos, minha vida começou a mudar para melhor. Foram tantas mudanças, entrei no curso de Jornalismo, consegui bons estágios, conheci pessoas incríveis, escolhi onde trabalhar – quando me formei, tinha duas ofertas de emprego. Talvez tudo isso não tenha sido somente talento e sorte. Apenas há duas semanas, quando assisti a esse documentário sobre Cazuza que passava na TV, percebi que a minha primeira grande entrevista publicada em um veículo de imprensa foi com Lucinha Araújo, a mãe do cantor. Teria sido apenas coincidência? Essa e outras coisas boas que fiz e que aconteceram na minha vida, queria ter compartilhado com meu tio. Tenho certeza de que, assim como eu com relação a ele, ele também teria ficado muito orgulhoso. Por isso, fui homenageá-lo, indo ao show de Dionne Warwick no Recife, em 2012: “Together, forever, you’ll stay in my heart!”.
Algumas semanas atrás, pesquisei no Google o nome do meu tio, para ver o que poderia aparecer, e foi tão triste constatar que não havia nenhuma menção. Senti como se sua existência tivesse ficado definitivamente restrita ao século XX. Num mundo onde parecemos só existir para as pessoas se estivermos em aplicativos como Facebook, Instagram, Twitter e WhatsApp, morrer e não ter nenhuma referência na internet parece uma segunda morte. Mas agora meu tio, que arrasaria no Instagram com suas fotos de viagens, vai ter, com este texto, um registro na rede de computadores: seu nome era Edimir Euclides dos Santos, mais conhecido por sua sobrinha, que o amava muito, como Tio Vazinho, meu primeiro herói.