Quando o apresentador de TV e ex-baterista dos Titãs Charles Gavin me disse isso, em fevereiro deste ano, numa entrevista para o site da Continente, concordei imediatamente com sua afirmação, pois já vinha pensando em como a “música de protesto” havia perdido sua força nas duas últimas décadas.
Desde a irônica Pelo telefone, primeira composição registrada como samba, a música brasileira esteve sintonizada com o que acontecia nas ruas, nos guetos, salões e gabinetes. Com a ditadura militar, essa tradição ficou ainda mais forte e evidente, gerando, nos anos 1960 e 1970, uma safra de excelentes compositores que, em meio à censura, foram as principais vozes de denúncia da época, ainda que, muitas vezes, através de metáforas.
Ao mesmo tempo em que retratavam o período, esses autores provocavam uma revolução na forma de compor e na própria feição da música brasileira, que se tornou mais moderna, poética e diversificada. Apesar de todo o autoritarismo institucionalizado, e talvez por conta disso, foi um período que exigiu muita criatividade dos artistas.
Em meados dos anos 1980, durante o estouro do rock nacional e do mercado de shows, impulsionados pelo primeiro Rock in Rio, a música no Brasil contava com jovens compositores que, no turbulento contexto da Nova República (presidente eleito indiretamente, hiperinflação, Plano Cruzado), exibiram a herança da tradição crítica das duas décadas anteriores. Nomes como Renato Russo, Cazuza, Hebert Vianna e integrantes dos Titãs compuseram letras contundentes e marcantes.
Coincidentemente, essa movimentação do “BRock”, que começou em 1981 com a formação da Gang 90 e Blitz, e gerou dezenas de bandas, foi intensa até a primeira eleição direta para presidente na nova era democrática do país, em 1989. Naquele mesmo ano em que a Legião Urbana lançava o último grande sucesso comercial da década, o álbum Quatro estações, morreram dois ícones da rebeldia: Cazuza e Raul Seixas.
O investimento em bandas do rock nacional nos anos 1980, que parecia uma iniciativa duradoura das gravadoras, revelou-se apenas um interesse momentâneo. Nos anos 1990, o mercado fonográfico apostou pesado em novas ondas musicais, como as duplas sertanejas, os grupos de pagode e axé (alguns poucos, como o Olodum, possuíam letras de temática social). A estabilização da moeda, impulsionada pelo Plano Real, em 1994, veio abrandar a inflação de 2.477% (1993), ajudando, também, a vendagem de CDs na segunda metade da década.
Naquele 1994, era criado o Banguela Records, uma ideia do irreverente jornalista e produtor Carlos Eduardo Miranda, que convocou os Titãs para integrar a equipe de produção musical (recebendo maior engajamento de Charles Gavin). O selo da Warner ajudou a reconquistar o interesse das gravadoras para o rock nacional, ao lançar um bom punhado de bandas, dentre elas Raimundos, a mais bem-sucedida dos anos 1990, e Mundo Livre S/A, cuja estreia, a obra-prima Samba esquema noise, exibia letras contestatórias, assim como o Da lama ao caos (1994), de Chico Science & Nação Zumbi, que saiu pela Sony.
Segundo Gavin, nessa mesma entrevista, Chico Science, morto em 1997, foi o último grande autor de letras politizadas do rock nacional e, desde então, o gênero está vivendo um marasmo no que se refere a críticas sociais e políticas. Embora o ex-baterista dos Titãs esteja correto em sua afirmação, por outro lado, como compensação, a internet e as novas tecnologias conseguiram ampliar o protagonismo na composição.
Enquanto nas décadas de 1960 e 1970, as canções de protesto estavam basicamente sob o comando de homens heterossexuais e brancos de classe média ligados a gravadoras e que combatiam a ditadura, a partir dos 2000, as composições de contestação, já no período democrático, passaram a discutir temas que envolvem racismo, violência policial, questões de gênero, desigualdade social, sendo feitas por homens, mulheres, negros, indígenas, gays, contratados ou não por gravadoras.
Essa variedade de autores e assuntos vem contribuindo para democratizar o mercado musical e propagar o trabalho de artistas de estilos musicais, como o funk e o rap (vide o Racionais MC’s), oriundos das periferias, ampliando, com isso, os pontos de vista sobre a sociedade e a realidade do país.
O motivo da diminuição da música de protesto a partir dos anos 2000 talvez resida não somente na “sofrência” das bandas emo e dos Los Hermanos (que ninguém nunca sabe dizer se acabou mesmo ou não), mas na vitória de Luiz Inácio Lula da Silva para presidente em 2002. É possível que os compositores comumente afinados com o pensamento da esquerda (Chico Buarque é o principal exemplo) tenham perdido, por um longo período, a motivação para compor letras incisivas sobre a política no país.
O Brasil estava em crescimento, milhões saíam da miséria, havia uma melhora significativa em vários setores. Todo esse contexto gerou um clima de otimismo e esperança. Para completar, Gilberto Gil, um dos maiores nomes da música surgidos nos anos 1960, era ministro da Cultura do Governo Lula.
Nos 2000, apenas uma banda rompeu, de forma mais incisiva, com esse clima de entusiasmo: os Titãs. Já sem Arnaldo Antunes, Nando Reis (em carreira solo) e Marcelo Fromer (morto em 2001) lançaram a música Vossa Excelência. Isso foi em 2005, conhecido por alguns como o Ano do Último Álbum do Los Hermanos, e, por outros, como o Ano do Mensalão. Naquela ocasião, boa parte da população constatou que, para governar, não bastava boa vontade de um presidente, era preciso também “boa vontade” do Congresso Nacional.
Com a expulsão de Dilma Rousseff da Presidência da República por esse mesmo Congresso Nacional e a ascensão do vice Michel Temer e suas temerárias reformas, os artistas são novamente convocados a estarem do lado do povo. Daí a crítica de Gavin. “Onde está a preocupação com o mundo político brasileiro? Ninguém mais fala disso? A gente não vai mais falar? Não vai mais criticar? Um dos poucos que ainda faz isso é Tom Zé, incansável, não para de criticar.”
Sim, Tom Zé. O baiano é um dos raros autores musicais que costumam usar as notícias como fonte de inspiração. Cronista dos fatos que acontecem no país, compõe, grava e lança, num mesmo dia, uma música nova. Nesse ritmo, já saíram composições como Queremos as delações, Sabatina em latim para a indicação de um juiz do Supremo e Samba da Comissão da Linguiça.
Mesmo sendo tímida a manifestação de compositores, a música de protesto começa a ganhar novo fôlego em ações pontuais. No ano passado, o paraibano Chico César lançou Os reis do agronegócio, sobre a bancada do boi – conjunto de deputados federais que representa um dos maiores entraves à igualdade social do país, ao meio ambiente e à existência dos povos indígenas.
Em abril deste ano, o músico lançou, em parceria com Carlos Rennó, a música Demarcação já. Para a gravação, reuniu 21 artistas, dentre eles, Maria Bethânia, Gilberto Gil, Ney Matogrosso, Zélia Duncan e Lenine. O belo videoclipe da canção foi lançado na mesma semana em que 3 mil indígenas ocuparam a Explanada dos Ministérios para protestar contra diversas ações do Governo Temer, como a paralisação das demarcações de terras, o enfraquecimento da Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que transfere a responsabilidade das demarcações do Executivo para o Legislativo.
Por falar em Temer, enquanto nos Estados Unidos já há um cancioneiro ruidosamente dedicado a Donald Trump, com bandas e artistas como Green Day, Arcade Fire, Gorillaz, Father John Misty, Kristin Kontrol, Franz Ferdinand, Fiona Apple, Prophets of Rage, Run the Jewels, Pusha T e Bruce Springsteen, no Brasil ainda são poucas as composições sobre a tragédia política instaurada.
A funkeira MC Carol compôs Delação premiada, Flávio Renegado e Tico Santa Cruz, O morro mandou avisar, o pernambucano Matheus Mota lançou o álbum As palavras voam, musicando a famosa carta de rompimento político de Temer a Dilma Rousseff em que bem diz: “...sempre tive ciência da absoluta desconfiança da senhora e do seu entorno em relação a mim e ao PMDB” (veja AQUI).
Por outro lado, os remanescentes do rock nacional Lobão e Roger Moreira uniram forças e lançaram aquela que pode ser considerada a primeira “canção de protesto de direita”: O bobo. O clipe da música, que pode ser tranquilamente apontada como uma das piores da história, ironiza o movimento estudantil secundarista, que vem a ser um dos grupos mais atuantes da sociedade contra aumento de passagens, reforma trabalhista e previdenciária...
Prova dessa estagnação na música de protesto é que, em incontáveis manifestações do período democrático, como passeatas, piquetes e greves, vêm sendo ouvidas as onipresentes Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré, e Lili (Vamos, amigo, lute!), de Edson Gomes. Ad infinitum.
Para os necessários protestos futuros, precisaremos renovar esse repertório, embora Que país é este? (1987), lançada um ano antes da promulgação da Carta Magna de 1988, esteja tão atual quanto há 30 anos: “Ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da Nação”.
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