Mirante

Eu vejo a vida melhor no futuro?

TEXTO Débora Nascimento

30 de Janeiro de 2020

FOTO Reprodução

Há uma infinidade de dias comuns, de coisas rotineiras que naturalmente esquecemos, mas, por algum motivo, uns momentos, por mais breves que sejam, ficam na memória. Um dia, eu voltava de uma pauta em Boa Viagem. Não lembro mais qual era a pauta. Mas recordo o trajeto da volta à redação. Era perto de meio-dia, o sol iluminava o céu sem nenhuma nuvem. Quando o táxi passou em frente ao Cabanga Iate Clube e pegou a avenida do Cais José Estelita rumo ao Recife Antigo, começou a tocar no rádio Tudo azul, de Lulu Santos. O taxista, um dos que costumavam conduzir os jornalistas do Jornal do Commercio, na antiga Rua do Imperador, começou a bater no volante acompanhando o ritmo 4x4 da música. As janelas do táxi estavam abertas, o vento açoitava o cabelo longo e loiro do homem, que parecia Gerárd Depardieu quando interpretou Obelix. Por causa dessa reação espontânea, eu olhava a paisagem com um sorriso no rosto. Não havia as Torres Gêmeas, o RioMar. O Cais José Estelita havia sido pintado com as cores vibrantes que seriam corroídas pelo tempo e abandono. Isso foi em 1996, 1997 ou 1998. Eu estagiava no jornal onde sonhava em trabalhar (depois de formada na UFPE, em 1998, acabei escolhendo o Diario de Pernambuco, numa época em que um jornalista no Brasil podia se dar ao luxo de escolher onde trabalhar), tinha uma bolsa de pesquisa, quando havia bolsas de pesquisa para quem quisesse pesquisar. O Brasil ainda vivia a boa reverberação do Plano Real na economia. O dólar custava R$ 1 e poucos centavos (era bom quando o mercado financeiro não fazia chantagem para interferir na política). Mesmo com os problemas sociais, havia no ar uma sensação de otimismo. Parodiando Lulu em Tempos modernos, eu via a vida melhor no futuro.

Naqueles anos inicias no jornalismo, descobri que o tratamento dado a um repórter (ou estagiário) diz muito sobre a personalidade (e até mesmo o caráter) de um entrevistado. Se ele for famoso, o que significa conviver sempre com holofotes, há uma baita chance de não valorizar veículos de comunicação de fora do eixo Rio-São Paulo. Nesse período tive a oportunidade de entrevistar poucos famosos. E foi marcante pra mim a profunda gentileza como fui tratada pelos atores Fábio Assunção e Herson Capri, ambos interpretariam respectivamente o papel de Jesus Cristo na Paixão de Cristo de Nova Jerusalém, em 1997 e 1999.

Nesse mesmo 1999, já no DP, tive a oportunidade de entrevistar uma atriz de quem eu tinha sido realmente fã, até mais do que de Fábio Assunção ou Herson Capri. Ela se chamava Regina Duarte. E tinha vindo ao Recife com a peça Honra. Como a maior parte dos espectadores brasileiros, eu gostava dela devido ao trabalho em novelas como Roque Santeiro e Vale Tudo, na minissérie Chiquinha Gonzaga e na série Malu Mulher, um marco da TV por abordar questões feministas. Regina Duarte, porém, foi uma pequena decepção na ocasião daquela entrevista. Ela caminhava na praia e não parou para falar com os poucos repórteres que a cercavam, inclusive eu. Saiu em disparada, até que desistimos e um assessor a retirou do cerco. Esse episódio prosaico talvez seja um pouco revelador do por quê de ela ter se juntado à equipe de um governo encabeçado por um homem que destrata jornalistas e que já inseriu, em duas ocasiões diferentes, a “mãe” do repórter nas respostas.

Regina Duarte, “a namoradinha do Brasil” que aceitou o “pedido de casamento” de Jair Bolsonaro no último 29 de janeiro, sendo agora a quarta pessoa a ocupar a Secretaria Especial de Cultura desde janeiro de 2019, entrou como a salvadora da imagem de um governo atolado em escândalos, incompetências, patacoadas, ultrajes e gafes. A cartada foi tão conveniente a esse governo, que leva à suspeita de que o vídeo que provocou a demissão de Roberto Alvim foi uma encenação. No vídeo, o ex-secretário da pasta fazia, em seu discurso, menção a uma frase de Joseph Goebbels, ex-ministro da Propaganda da Alemanha nazista. Ao fundo, ouvia-se uma música de Wagner, compositor adorado por Hitler. Ricardo Alvim estava tão canastrão e cínico na leitura desse texto, que até desperta a possibilidade de armação dentro de um governo já cheio de artimanhas. A lógica seria perfeita: Bolsonaro, demitindo-o, tirava de si, e aos olhos de seus eleitores, o rótulo de fascista. De quebra, colocaria numa pasta tão criticada pelo meio artístico, uma artista que, para boa parte do povo brasileiro, tem credibilidade. Talvez ele quisesse repetir o feito de Lula ao colocar, como ministro da Cultura, um compositor renomado e querido pela população. Bolsonaro talvez acredite que Gilberto Gil trouxe ao governo Lula a simpatia do povo e da classe artística. No entanto, o mérito de Gil como ministro não estava na sua discografia e, sim, no ótimo trabalho que realizou e com o aval de Lula.

Agora, o que esperar de Regina Duarte na Secretaria Especial de Cultura? Bolsonaro disse que ela terá total liberdade. Mas o que significa, de fato, isso? A atriz já convidou para ser secretária-adjunta a reverenda Jane Silva, que, dentre os seus planos mirabolantes para a área, quer realizar "eventos destinados à família” ao lado de cada baile funk… Regina também foi orientada pelo ocupante do Palácio do Planalto a não liberar verbas para projetos de esquerda, principalmente com temática LGBT. Desde o início do governo, a Secretaria de Cultura e o Ministério da Educação vêm sendo ocupados por nomes indicados por Olavo de Carvalho – o “filósofo” que disse haver no Brasil “uma dominação tirânica, opressiva e ditatorial exercida pelos comunistas nos últimos 50 anos.” O macartismo bolsonarista já levou à transferência de 80 servidores para outros setores e já faz estragos na área cinematográfica, com diversos projetos parados, sem verba.

Crítica ao uso da Lei Rouanet por artistas famosos, Regina Duarte, desde aquele 1999 em que a entrevistei, já captou mais de R$ 1,4 milhão para três espetáculos, através de sua empresa A Vida É Sonho Produções Artísticas. O primeiro deles foi a peça Honra, que captou R$ 800 mil. Inclusive um de seus projetos, a peça Coração Bazar (2004), que captou R$ 321 mil, teve sua prestação de contas desaprovada pelo então Ministério da Cultura, em 2018. De acordo com portaria publicada no Diário Oficial em março daquele ano, a empresa da atriz terá que restituir R$ 319,6 mil aos cofres públicos, pois ela não prestou contas. Já a montagem de Pedro e Vanda, de autoria de Jay Di Pietro, com tradução e adaptação de Eduardo Lippincott (seu marido pecuarista), está com prestação de contas em análise pela Secretaria Especial da Cultura, que, olhem só, ela agora vai gerenciar. Quanta coincidência neste país...

Regina Duarte não costuma ser representante da coerência: se agora ela flerta, flerta não, se “casa” com um governo fascista, em 1985, quando interpretava a Viúva Porcina em Roque Santeiro, ela, que gosta de apelar para o terror (como esquecer do “Eu tenho medo” de 2002?), pediu voto em Fernando Henrique Cardoso para prefeito de São Paulo, convocando a união da esquerda contra Jânio Quadros. Em campanha na TV, usou o curioso argumento: “Acho que a gente tem que fazer isso para impedir que as forças da corrupção e da ditadura voltem a se juntar e destruam a nossa frágil democracia. Gente, não vamos nos iludir nesse momento! Votar em (Eduardo) Suplicy é ajudar o Jânio. Não vamos também nos esquecer do que aconteceu na Alemanha na década de 1930. Os democratas se dividiram e o que aconteceu? Hitler subiu ao poder com pouco mais de 30% dos votos. Então, esse é o momento onde a gente não pode vacilar”.

Como qualquer pessoa em sã consciência pode perceber, Regina Duarte vacilou ao aceitar ser secretária de Bolsonaro. Mas ele não. Embora escancaradamente apoie a TV Record, Bolsonaro pegou a principal estrela da TV Globo e pôs na sua desastrosa equipe e, de quebra, também ganhou uma garota-propaganda. Talvez esteja tentando fazer o que Castelo Branco fez no início da ditadura, quando ensaiou uma aproximação à classe artística, indo a eventos, recebendo artistas em reuniões e acatando pedidos. A cordialidade durou pouco. E todo mundo sabe como essa relação terminou. Mesmo no primeiro governo eleito democraticamente em 1989, as pautas dos artistas ainda foram ignoradas. Apesar de ter criado a Lei Rouanet, Fernando Collor acabou com a Embrafilme. E como esquecer que, nesse período, começou a ascensão do sertanejo às paradas de sucesso?

Os sertanejos ou breganejos que hoje dominam o mercado musical brasileiro, incluindo as rádios, se reuniram, na última semana de janeiro, com o ocupante do Palácio do Planalto para uma “agenda positiva” e uma pauta específica: o fim da meia-entrada para estudantes. A meia-entrada, que foi uma das maiores conquistas do movimento estudantil nos anos 1990, sofreu um golpe já na época, quando empresas e produtoras se aproveitaram para aumentar o valor dos ingressos, compensando, dessa forma, as supostas perdas com o valor da meia-entrada. E hoje o ingresso de uma peça ou um show no Brasil é um dos mais caros do mundo – sem contar que o próprio valor dos ingressos em shows internacionais já aumentou nas últimas décadas.

Se levarmos em consideração que no concerto de rock mais precioso da história, o último dos Beatles, realizado em 29 de agosto de 1966, em San Francisco, o bilhete custou U$ 6,50 (!!!), nós, os espectadores, perdermos muito nas últimas décadas. Com o dólar hoje a R$ 4,26, aquele ingresso para ver o Fab Four custaria apenas R$ 27,69. Cinco décadas depois, com a perda salarial somada à falta de acesso a bons produtos culturais, não é de se estranhar que o segundo show de Paul McCartney no Recife, em abril de 2012, tenha sofrido para encher o Estádio do Arruda.

Lembro de eu ter ficado abismada pelo fato de, num estado de 9 milhões de habitantes, Paul McCartney ter atraído (apenas) 40 mil pessoas no primeiro show, e (somente) 30 mil no segundo – 10 mil ingressos boiaram. Isso confirma que, para além da pobreza da população, a falta de acesso à diversidade musical, é um fator importante. Hoje, provavelmente, se aquele taxista que me trazia de uma pauta, num dia ensolarado de céu azulado, ligasse o rádio, em vez de Tudo azul, ouviria Estado decadente. Não, não é uma música de crítica social, mas uma das dez canções mais tocadas nas rádios do Brasil, em 2019. Todas sertanejo ou breganejo. Praticamente todas falam em dor de cotovelo e muita, muita bebida – a propósito, será que existe aí um lobby da Ambev, como existia um lobby da indústria do cigarro no cinema americano? Bolsonaro disse na reunião com os sertanejos: "Nós chegamos à Presidência em parte devendo a vocês". Provavelmente, dessa vez, ele tenha razão.

Não lembro mais o nome do taxista. Mas recordo claramente o sentimento indizível que, de vez em quando, nos acomete no cotidiano, quando paramos um pouco de nos preocupar com o mundo, com o que temos que fazer e apenas nos sentimos realmente presentes, mesmo que seja numa ocasião banal como aquela, marcada apenas pelo fato de se ouvir uma boa canção. Nenhum de nós era rico naquele curto trajeto do começo ao fim da avenida do Cais José Estelita, que, desde o ano passado, deu forçadamente lugar ao Novo Recife. Não sei se o taxista ainda está vivo, se virou motorista de Uber, mas, se ele não ganhou na loteria, posso incluí-lo no plural, continuamos a não sermos ricos (ou mesmo a não termos dinheiro sobrando). E muito provavelmente nunca seremos. Mas, enquanto houver um céu azul, um sol lá fora, boas músicas, bons artistas, alguns sonhos e momentos-presente, que possam ser entendidos como momentos-presente, esta vida, mesmo que seja no Brasil, deve valer a pena.

“Nós somos muitos / Não somos fracos / Somos sozinhos nessa multidão / Nós somos só um coração / Sangrando pelo sonho de viver”.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente. 

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