Mirante

Era uma vez em… Bacurau

TEXTO Débora Nascimento

20 de Setembro de 2019

Frame do filme Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles

Frame do filme Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles

Foto Victor Jucá / Divulgação

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O filme começa no espaço sideral e, em seguida, transfere sua narrativa para a Terra, ao som de Also sprach Zarathustra, de Richard Strauss. Em 1968, Stanley Kubrick revolucionava a ficção científica no cinema com 2001 — Uma odisseia no espaço. No ano em que o ser humano ainda não havia pisado na Lua e em que a URSS estava à frente dos EUA na corrida espacial, o longa norte-americano exibia cenas espaciais impressionantes. Segundo defensores da tese de que o homem nunca pôs os pés na lua, Kubrick, por conta do surpreendente impacto estético de 2001, teria sido convidado/convocado pelo governo norte-americano para produzir as imagens da (suposta) ida à Lua em agosto de 1969.

Como se sabe, a divulgação dessas imagens (verídicas ou não), que ficaram famosas no mundo inteiro, concedeu aos EUA uma considerável vantagem política em plena Guerra Fria e consolidou, a partir de então, a aura de país mais importante do planeta. Alguns meses antes, em janeiro de 1969, quando Richard Nixon assumiu a presidência, os movimentos sociais pipocavam nas ruas contra a Guerra no Vietnã (1955-1975), que já havia vitimado milhares de pessoas. O governo norte-americano estava com a popularidade em baixa e também não era visto com bons olhos por boa parte da comunidade internacional, por ter invadido o país asiático e promover uma carnificina, sob o argumento de combate ao comunismo.

Bem distante desse ambiente, mas não tanto, o Brasil, naquele mesmo ano, após o decreto do AI-5 (em dezembro de 1968), ingressava no período mais violento da ditadura militar – levante autoritário arquitetado pelos Estados Unidos para conter uma suposta guinada comunista no país pelo governo de João Goulart e por governadores esquerdistas como Leonel Brizola (no Rio Grande do Sul, até 1963) e Miguel Arraes (em Pernambuco, deposto em abril de 1964). Na prática, a partir de 1º de abril de 1964, o Brasil passava a ser governado de mãos dadas com o governo norte-americano – que, para garantir o sucesso do Golpe no dia 31 de março, enviou uma frota de navios ao país, mas não precisou utilizá-la, pois não houve resistência – embora Brizola ainda tivesse nutrido a vontade de reunir revoltosos e partir para a luta armada. Jango não quis o embate.

Naquele 1969 em que Sam Peckinpah lançava o western Meu ódio será sua herança (cujo massacre no filme fazia uma referência alegórica à Guerra do Vietnã), Glauber Rocha exibia O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro. No filme de cangaço, Antonio das Mortes, personagem oriundo de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), segue a sua função de matador no Sertão. Por esse longa, o cineasta baiano recebeu o prêmio de Melhor Diretor no Festival de Cannes.

Cinquenta anos depois, dois outros cineastas nordestinos, os pernambucanos Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles – que, assim como Glauber, também concorreram à Palma de Ouro – saíram do evento com o Prêmio do Júri, devido a um outro título que traz elementos do cangaço, Bacurau. Novamente usando alegorias para abordar a nossa realidade. São essas tais alegorias que vêm inspirando incontáveis artigos e críticas em jornais e sites, além de animados debates em redes sociais. Grupos de WhatsApp vêm discutindo a obra nessas quatro semanas em que está em cartaz. Já são mais de 500 mil espectadores. Tudo isso transforma Bacurau em um fenômeno. Qual a explicação para isso?

No começo do filme, a transição do espaço sideral para a Terra não é feita sob a grandiloquência orquestral de Also sprach Zarathustra, mas com a belíssima Não-identificado, composição de Caetano Veloso lançada em 1969, no primeiro álbum solo de Gal Costa. A música cumpre no filme a função de um prefácio: “Eu vou fazer uma canção pra ela (a cidade), uma canção singela (“clara e direta”, como diria o crítico Inácio Araújo), brasileira (filme de cangaço), para lançar depois do Carnaval... (...) Minha paixão há de brilhar na noite / No céu de uma cidade do interior (a imaginária Bacurau)”. No espaço sideral do filme de Kleber e Juliano, aparece o satélite que, no desenrolar do enredo, passa a não mais identificar a cidade no serviço de mapeamento online, indicando que algo está errado e, ao mesmo tempo, simbolizando a invisibilidade de determinadas regiões e povos.

Mas a cidade existe e está lá. Passamos a conhecê-la a partir de um zoom que vai dar numa estrada do “Oeste de Pernambuco”, por onde transita um caminhão. No banco do passageiro do veículo está Teresa (Barbara Colen). Através de seu olhar, vemos boa parte dos acontecimentos, como o anúncio do procura-se Lunga (Silvero Pereira), vários caixões caídos na estrada, os cavalos que fogem de uma fazenda à noite e a água que jorra do caixão de Carmelita, vivida por Lia de Itamaracá, espécie de matriarca do lugar – sabemos disso pela voz dos outros personagens, já que ela aparece morta desde o início da trama. Em torno de sua morte, a cidade se reúne e é apresentada ao espectador. O cortejo fúnebre é envolto pela música Bichos da noite, interpretada por Sérgio Ricardo, em cuja letra sombria aparece o nome do pássaro que dá nome ao município: “São muitas horas da noite / São horas do bacurau”. O enterro de Carmelita começa o tom funesto que permeia o filme, alternado com um irresistível humor presente nos diálogos e no desenho de algumas cenas.

O sepultamento de Carmelita acontece no primeiro dos quatro dias da narrativa. O indicativo de que a rotina dos moradores será mesmo transformada é a aparição de um disco voador. O objeto, no cinema de ficção científica norte-americano, simboliza o invasor, que, na maior parte das narrativas, costuma ser combatido pelos Estados Unidos. Em Bacurau, o objeto parece perseguir o personagem Damiano, que está pilotando sua moto em uma estrada de terra, e logo desaparece no céu. Mas Damiano, sem alimentar histórias de discos voadores e ETs que permeiam algumas cidades do interior, sabe que se trata de um drone com uma câmera – observação/vigilância de outros povos é um traço norte-americano, Edward Snowden que o diga. Identificar o proprietário desse equipamento trará a resposta sobre os seres estranhos que chegarão a Bacurau.

Uma das possíveis vítimas desses invasores, Damiano, atento e forte, dá a primeira grande resposta bélica a eles. O personagem utiliza a arma mítica do tempo de Lampião, muito conhecida na cultura popular nordestina, o bacamarte. Na expectativa do confronto, essa mesma cultura funciona como um ensaio para o combate, a exemplo da roda de capoeira cujo berimbau vai sendo misturado ao sintetizador de Night, de John Carpenter – o cineasta norte-americano, influência dos dois diretores pernambucanos, é singelamente homenageado por eles na Escola Municipal João Carpinteiro, numa metalinguagem (escola de cinema).

Enquanto parte da comunidade está escondida na escola e no tipo de bunker construído no vilarejo (onde o alemão/americano Michael, o líder dos invasores, supremacistas brancos, interpretado por Udo Kier, será encarcerado/enterrado vivo), Damiano permanece obstinado na sua residência e está nu como os indígenas que receberam os primeiros invasores desta terra. Não à toa, um dos gringos coloca fogo na palha do teto – aldeias indígenas costumam ser queimadas como forma de afugentá-las. Morador de uma casa de barro, ele comporta-se como o vietcongue que se recusou a morrer pelas mãos dos soldados americanos. E coloca em prática o lema da cidade, estampado numa placa de trânsito: “Bacurau: Se for, vá na paz”.

Os invasores, no entanto, não sabem do alerta, pois não conhecem a língua dos invadidos – estes, para negociar a sobrevivência, costumam aprender a língua dos invasores e a usar as mesmas armas. Os invasores de Bacurau não levam em consideração um dos preceitos do livro A arte da Guerra: “Para vencer, deve conhecer perfeitamente a terra (a geografia, o terreno) e os homens (tanto a si mesmo quanto o inimigo)”. Eles não contam com a resistência de um povo, que, segundo Euclides da Cunha, “é, antes de tudo, um forte”.

Na melhor alegoria do filme, a população ameaçada usa as antigas armas americanas expostas no Museu Histórico de Bacurau. Um dia antes do confronto final, é oferecida uma visita à instituição aos dois motoqueiros sudestinos que trabalham como guias dos invasores (foram eles que plantaram o circuito que emudeceu os smartphones da cidade) e passaram pela comunidade para “assuntar” – buscar informações. Os "turistas" prestam o serviço de facilitar a permanência dos atiradores norte-americanos no Sertão, mas recusam o convite para conhecer a história (de resistência) do local, pois os costumes e a cultura do povo pobre não interessam a eles.

A aparição desses dois sudestinos lembra a violência quase cirúrgica e asséptica de Laranja mecânica (1972), de Stanley Kubrick, também utilizada em Funny Games (1997), de Michael Haneke. Uma violência que quebra os clichês do gênero. Imagine a cena de Psicose sem os elementos que a fizeram um clássico do suspense: a música, a montagem, a ambientação e um assassino aterrorizante. Os dois matadores têm rostos inofensivos, usam figurino branco (Funny games e Laranja mecânica) e colorido (Bacurau), se comportam de forma amigável. A violência da dupla acontece à luz do dia, sem trilha sonora para pontuar a emoção. Na vida real, não há trilha sonora para indicar o perigo.

O faroeste pernambucano também pode ser comparado, em parte, a Westworld. A premissa do filme de 1973 e da série da HBO, que estreou em 2016, pode não ter sido uma influência direta para os diretores. Mas, de maneira junguiana, há uma sincronicidade que pode ser estabelecida entre os caçadores de gente em Bacurau e os cowboys da série, que mescla ficção científica e western. Westworld é o parque de diversões onde os “adeptos da violência” extravasam suas tendências homicidas em um ambiente seguro que remonta o Velho Oeste – um dos períodos mais sangrentos da história norte-americana e que vitimou indígenas, posteriormente retratados de forma racista no auge do gênero cinematográfico, representados como vilões, a exemplo do clássico de John Ford Rastros de ódio. Na série, as vítimas são robôs que passam a desenvolver traumas a partir do desencadeamento da memória.

Sendo um filme brasileiro, nordestino e com gêneros híbridos (mistura faroeste, suspense, thriller, comédia, ficção científica), Bacurau vem conseguindo uma proeza: levar uma quantidade considerável de público ao cinema. São mais de 500 mil espectadores, nessas quatro semanas. Já é o filme pernambucano com a maior bilheteria da história, arrecadando R$ 6 milhões. Seu grande mérito é ser uma obra que dialoga com o contexto em que vivemos hoje no Brasil. A revista Cahiers du Cinema de setembro estampa a foto do cortejo fúnebre de Carmelita e em fontes amarelas quase grita “Le Brésil du Bolsonaro”.

Bacurau é e não é o Brasil de Bolsonaro. O filme terminou de ser rodado em maio de 2018, quando ainda era uma remota ameaça o então deputado federal do PSL-RJ ocupar a presidência da República. Mas a democracia brasileira já havia sido invadida anteriormente, em agosto de 2016. Poucos dias após Michel Temer assumir, reuniu-se com o presidente da Shell e o Congresso aprovava a Lei de José Serra, liberando a farra da extração de pré-sal (a maior descoberta de petróleo dos últimos 50 anos) para as multinacionais. Onde há petróleo, os Estados Unidos estão lá. E, para conseguirem o que querem, costumam invadir ou negociar com entreguistas locais. Não é à toa que o número eleitoral do prefeito de Bacurau Tony Júnior é o 150 (o derivativo municipal do 15 do MDB de Michel Temer, que, no Roda Viva do dia 16 deste mês, confirmou, em ato falho, o Golpe).

Assim como Temer, Tony Júnior também tem uma popularidade baixíssima. A cidade sabe que ele está apenas à procura de votos, quando tenta demonstrar uma eventual preocupação com a saúde e educação dos moradores. Parte dos remédios (entre eles ansiolíticos, que já são os remédios controlados mais vendidos no Brasil e, no futuro de Bacurau, foram promovidos a itens de cesta básica) e comidas entregues à população estão fora de validade e os livros são despejados por um caminhão como se fossem lixo. Mas Bacurau, mesmo incrustada numa terra cheia de coronelismo na política e conservadorismo no comportamento, é uma espécie de sociedade alternativa de Raul Seixas. A sexualidade é vivida sem tabus, há consumo coletivo de um psicotrópico e não existe fervor religioso, principalmente oriundo das igrejas neopentecostais.

Bacurau é uma cidade ameaçada – um dos elementos básicos do faroeste. No entanto, não há o duelo típico entre bandidos e heróis, como o xerife da cidade (Matar ou morrer, 1952) ou algum justiceiro (Era uma vez no Oeste, 1969). Mas emboscadas e cabeças cortadas, como no cangaço. Na TV que aparece ligada em uma das cenas, um programa nos moldes do Cidade Alerta noticia que “começam execuções públicas no Vale do Anhangabaú” – algo não tão delirante num país (des)governado por Bolsonaro (ideologicamente alinhado aos mais teocráticos governos islâmicos) e em que o governador do Rio de Janeiro orienta policiais a executarem pessoas nas favelas, vitimando jovens e crianças negras (Ágatha é o caso mais recente). Em uma das cenas de Bacurau, é reproduzido o assassinato de uma criança branca – provavelmente para estabelecer na plateia um choque de realidade. O atirador argumenta que matou porque achava que ela estivesse armada – assim como fazem os policiais que matam crianças e adolescentes negros nas favelas.

Por conta de todas essas questões abordadas no filme e pela mais pura falta de uma resposta eficaz ao rolo compressor do atual cenário político que passa por cima de direitos, instituições públicas, minorias, artistas, a esquerda abraçou Bacurau como uma obra para si. Como um conforto imaginário para sua angústia diante de um cenário político, social, econômico, ambiental aterrorizante. Se o filme não vai conseguir nos tirar deste buraco em que estamos, as redes sociais (o termômetro das discussões que circulam pelo país), ao menos, passaram a discutir outro tema além das barbaridades feitas ou ditas pelo ocupante do Palácio do Planalto. Bacurau seguirá sendo o filme do ano para uma bolha, formada por algumas milhares de pessoas que estampam a palavra resistência em seus perfis.

Coincidentemente, Bacurau e Era uma vez em... Hollywood, o novo filme de Tarantino, entraram em cartaz no mesmo período. Os fãs do filme pernambucano chegaram a entrar até em clima de competição de bilheteria. Ambos abordam o faroeste – gênero que incentivou, principalmente nos Estados Unidos, a paixão pelas armas de fogo. Ambos abordam violências promovidas por assassinos psicopatas. Bacurau projeta-se em um futuro próximo. Era uma vez... volta-se ao mítico ano de 1969, quando a atriz Sharon Tate, grávida de oito meses (e mais três pessoas) foi cruelmente morta numa chacina, em 9 de agosto – vinte dias após o mundo ter assistido ao homem dar um grande salto para a humanidade. Ambos os filmes reescreveram a história da violência e encontraram uma redenção, um destino alternativo, ao menos na ficção, para as vítimas desarmadas de sempre.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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