Mirante

Documentário em vertigem

TEXTO Débora Nascimento

26 de Junho de 2019

Frame do documentário 'Democracia em vertigem', de Petra Costa

Frame do documentário 'Democracia em vertigem', de Petra Costa

Foto Divulgação

No dia 29 de agosto de 2016, Dilma Rousseff foi ao infame interrogatório no Senado. Durante 13 horas, a então presidente do Brasil não se esquivou de responder qualquer uma das mais de 50 questões dos parlamentares. No documentário Democracia em vertigem, essa histórica audiência foi resumida a algumas perguntas incisivas dos senadores e, em seguida, à leitura de um breve discurso da governante, como se este tivesse sido a sua única resposta. Não foi informada a duração do evento e nem mencionada a postura firme da presidente, em sua última tentativa de salvar o mandato, encerrado precocemente, pelo mesmo Senado, dois dias depois daquele interrogatório. A narrativa leva o espectador desavisado a pensar que Dilma se esquivou. Esse é apenas um dos problemas do filme dirigido, roteirizado e produzido por Petra Costa, a mesma autora dos premiados Elena e Olmo e a Gaivota.

Lançado pela Netflix em 190 países, no dia 19 de junho, Democracia em vertigem vem sendo um dos assuntos mais comentados dos últimos dias (vantagem de estar na Netflix), gerando um comportamento semelhante ao provocado pela política brasileira, a chamada polarização. Nas redes sociais, está rendendo discussões acaloradas entre os que se sentem representados pela emocionante narrativa de Petra Costa, que, de fato, conseguiu traduzir em imagens e em palavras o sentimento de perplexidade, indignação, injustiça e desamparo dos que se sentiram atingidos pelo impeachment de Dilma e pela prisão de Lula. Curiosamente, a famosa polarização agora não refere-se aos que são pró-PT e Anti-PT, mas à esquerda. São seus próprios eleitores que estão no embate a respeito do filme.

Democracia em vertigem se propõe a narrar o curto período da democracia no país a partir da vida de sua diretora, que, com 35 anos, nasceu no fim da ditadura militar, numa família de classe média alta. Seu avô foi cofundador de uma das maiores empreiteiras do país e que participou da construção de Brasília, a Andrade Gutierrez, envolvida em esquemas de corrupção investigados pela operação Lava Jato. Sobre o avô, a diretora não informa quem foi, de onde veio e como ajudou a fundar a empresa, informações que, enfim, poderiam render uma história interessante dentro do documentário.

Petra narra, com voz de tom melancólico, a trajetória de seus pais, militantes de esquerda que foram presos durante a ditadura. Escaparam de um fim trágico provavelmente porque a prisão ocorreu antes de ser decretado o AI-5, em 13 de dezembro de 1968. Em um trecho do filme, a cineasta promove o encontro entre sua mãe e Dilma Rousseff. Ambas mineiras, estudaram no mesmo colégio, em épocas diferentes, e foram detidas quase no mesmo período.

Primeira espectadora do filme, a ex-presidente não gostou da forma como foi abordada a área econômica do seu governo. Mas não entrou em maiores detalhes. A diretora não explicou, por exemplo, como se deu a crise que levou ao número de 13 milhões de desempregados, mencionados no documentário. Quando a crise econômica mundial, estourada nos Estados Unidos em 2008, chegou ao Brasil em 2014, Dilma promoveu um pacote fiscal ainda mais generoso do que o de Lula na época do estouro. No entanto, quando quis fechar a torneira, o Congresso Nacional a boicotou. Dilma posteriormente disse, em entrevista, ter se arrependido da medida. Outros dos aspectos não abordados no filme são: a queda nos preços das commodities e o fato de a economia do país girar hoje mais em torno do setor financeiro do que no produtivo. Ou seja, os ricos preferem investir seu dinheiro do que abrir uma empresa e gerar empregos.

Uma das brechas na narrativa do documentário é a ausência de dados cruciais, como a informação de que, dois dias após o impeachment, o motivo do impeachment, as pedaladas fiscais, passou a ser liberado pelo Senado. Minúcias como essa são essenciais para ser entendida a tese do Golpe de Estado, tão refutada ou ignorada por boa parte da população brasileira. Se o filme não traz informações esclarecedoras como essa, ele está apenas fadado a falar para as mesmas pessoas de um único lado da polarização no Brasil, os eleitores da esquerda, e não para um público maior, que abrange a população brasileira e de mais 190 países.

Há certamente muitas pessoas que não sabem que o pré-sal foi determinante para o golpe – termo que abarca o impeachment de Dilma, a prisão de Lula, a retirada de direitos dos trabalhadores e a entrega do patrimônio do país, como a Petrobras, ao capital estrangeiro. Petra Costa apenas menciona o pré-sal e diz que sua descoberta por Lula mudou o rumo da história do país. Mas esse ponto acaba se perdendo no desenrolar do filme. Não é dito que após o impeachment, o congresso votou uma lei, de autoria de José Serra (que havia sido candidato rival de Dilma em 2010), acabando com o monopólio do Brasil na extração do pré-sal, e que Michel Temer, ao ocupar o cargo, reuniu-se com o presidente da Shell, hoje uma das multinacionais que abocanharam, em leilões a troco de banana, os melhores pontos de extração. Dilma e Lula não foram citados como os maiores defensores do petróleo para o Brasil e nem que o retorno desse lucro seria destinado para as áreas de educação e saúde.

Por outro lado, um dos melhores trunfos de Democracia em vertigem, além de suas belas imagens (como a filmagem aérea da construção de Brasília feita por sua avó) e edição esmerada, é o acesso exclusivo ao ambiente privado do PT, como o momento em que Dilma acompanha a votação de seu impeachment e os dias em que Lula esteve acampado no Sindicato dos Metalúrgicos, antes de definitivamente se entregar à Polícia Federal. Esse é um dos trechos emocionantes – a propósito, Petra aplicou a sua imensa sensibilidade e talento para editar e narrar de maneira poética todo o material histórico, usando, também no começo do filme, os registros da greve dos metalúrgicos em 1979, filmadas pelo cineasta Leon Hirszman para o documentário ABC da greve, que registra o evento de 40 anos atrás e o nascimento do mito Lula.

Tentando acompanhar a narrativa do pós-golpe, Democracia em vertigem destaca ainda um novo sujeito que desponta nesse processo, Jair Bolsonaro, que dá uma pequena entrevista. O então deputado federal mostra as fotos de todos os generais da ditadura numa parede de seu gabinete em Brasília e fala, com um sorriso no rosto: “O terror da esquerda”. O político é filhote de um período que ainda não foi muito bem explicado à população do país – boa parte dela acha, por exemplo, que no regime ditatorial não houve corrupção, crença decorrente da censura aos meios de comunicação.

A vitória do candidato do PSL é apresentada no filme como consequência da prisão de Lula e da decepção dos brasileiros com as notícias de corrupção no governo do PT. E que, segundo o roteiro, os manifestantes foram às ruas em 2013 investidos contra a corrupção e pela decepção com o governo. No entanto, muitos desses mesmos manifestantes eram tão somente eleitores da direita, que, cansados com todos os anos de mandato do PT, aproveitaram a onda dos protestos de 2013, que começou com o aumento da passagem de ônibus em São Paulo, e viram, na ocasião, a grande oportunidade de se livrarem do partido.

Nesse ponto, Democracia em vertigem, narrado sob o ponto de vista da esquerda, se torna um desserviço ao PT e à esquerda, quando afirma categoricamente que o Partido dos Trabalhadores se envolveu em esquemas de corrupção – algo que Dilma e Lula vêm negando. O filme também deixa de informar que, sem Lula nas eleições de 2018, a legenda teve um candidato promissor, o ex-ministro da educação Fernando Haddad, que foi vítima de um tsunami de fake news oriundo da campanha do seu oponente Bolsonaro. Não é mencionado o crescimento das igrejas neopentecostais (que se multiplicaram durante o governo Dilma, com a desoneração fiscal), cujo apoio foi fundamental – assim como a facada – para a virada que levou à vitória de Jair Bolsonaro.

Claro que o foco do filme não é Bolsonaro, como tudo parece ser hoje no país, mas a facada, fake ou não, foi o fator determinante para que o candidato saísse do ponto em que estava estacionado nas pesquisas, para ganhar a atenção do público e conseguir mais espaço na mídia, espaço esse que não teria no tempo curtíssimo de sua propaganda eleitoral. Outra questão que é apenas citada, mas não na dimensão de sua importância, é a manipulação da mídia, como a TV Globo, que nasceu com a ditadura militar e tem influenciado ou tentado influenciar os processos históricos do país.

A propósito, a não regulação da mídia não entrou no rol das poucas críticas destinadas ao PT. O já surrado pedido de autocrítica do partido, frequente em certos veículos de comunicação, ficou na voz de Gilberto Carvalho. O ex-ministro lembrou o afastamento do partido das classes populares, como se estas servissem apenas como base de apoio ao partido. Isso lembra a fatídica crítica de Mano Brown no comício de Haddad. "A comunicação é a alma. Se não está conseguindo falar a língua do povo, vai perder mesmo. Falar bem do PT para a torcida do PT é fácil. Tem uma multidão, que não está aqui, que deveria ser conquistada. Se nós somos o Partido dos Trabalhadores, o partido do povo tem que entender o que o povo quer. Se não sabe, volta para a base e vai procurar saber".

A reclamação do rapper pode ser destinada também ao documentário, que parece ter sido feito “para a torcida do PT” classe média branca. Todo o seu espírito demonstra ser sobre como se sente esse eleitor com o impeachment de Dilma e a prisão de Lula. Mas e a voz da periferia? Qual o impacto desses acontecimentos nos mais pobres? Uma faxineira do palácio, entrevistada aparentemente por sorte pela diretora, tece uma das melhores falas do documentário: no meio de seu depoimento, enquanto limpa a escada vermelha onde Lula e Dilma já foram fotografados, a funcionária diz que não há democracia no Brasil, que nunca houve.

Realmente. Não podemos vincular a crise da democracia apenas ao período pós-impeachment de Dilma e prisão de Lula. Não há democracia em um país onde o povo não pode protestar sem levar um cassetete na cabeça, bala de borracha no olho, spray de pimenta na cara. Não há democracia onde mais se mata ativistas, jovens negros, LGBTs, indígenas, onde empresas multinacionais mandam nos governos e nas leis do país. Não há democracia onde se encarcera em massa uma classe social e de forma injusta, a exemplo do catador negro Rafael Braga, único detido dos protestos de 2013, porque estava com uma garrafa de pinho sol vazia – a propósito, a campanha #LulaLivre deveria ser uma campanha maior, em prol de todas as pessoas que estão, neste exato momento, encarceradas no Brasil sem provas ou esperando ad infinitum, atrás das grades, o julgamento de seu processo judicial. Mas qual o nome dessa faxineira?

Ela não é creditada no filme e isso é bastante representativo de um país que invisibiliza seus trabalhadores pobres – os que mais sofrem com a falta de democracia, na realidade. A base da pirâmide está muito distante de ter uma fala considerada. Quantos nomes saídos do povo chegaram ao poder? Políticos como Lula e Marielle são alguns dos poucos exemplos. Ela foi assassinada brutalmente por milicianos (ligados à família Bolsonaro). Ele, preso no mês seguinte. Ele, como a própria diretora ressaltou, para poder ser eleito em 2002, teve que selar uma conciliação com empresários. Uma das consequências disso é que ainda temos um dos mais baixos salários-mínimos do mundo, que, segundo o Dieese deveria ser R$ 3,8 mil. Mas não chega a um terço disso. E, no final das contas, Lula acabou sendo preso após delações de empresários, que hoje estão soltos.

Ao apostar no tom emotivo em 1 hora e 53 minutos, o filme é mais um testemunho de como a realizadora se sentiu com a ruína do PT e a eleição de Bolsonaro do que propriamente um retrato fiel de todos os acontecimentos – o que, do outro lado da polarização, pode ser entendido como apenas uma amostra do “mimimi da esquerda”. E da forma desesperançosa como encerra, com a vitória de Bolsonaro e a prisão de Lula, apresentados como os principais fatos do desfecho, compondo um cenário sombrio, fica o entendimento de que o país está sem saída e sem rumo. Isso, na realidade, representa a visão de que a esquerda está centrada apenas na figura de Lula, personalismo que acabou sendo o maior mal dessa ala política. Ao impedir que outros nomes se destacassem, na ausência dele, a esquerda ficou encurralada.

Mesmo com a eleição de Bolsonaro e o que isso significa em retrocesso para o país, em 2018 também tivemos eleições importantes de membros da esquerda no Congresso, ganhamos nomes relevantes que se projetaram nacionalmente, como Fernando Haddad, Guilherme Boulos, Sônia Guajajara, Manuela D'Ávila, Jean Wyllys (mesmo autoexilado na Europa, devido às ameaças de morte que vinha recebendo). Há todo um núcleo de resistência, formado por estudantes secundaristas, universitários, professores, sindicatos, movimentos indígenas, MST, MTST.

Lançado no Festival de Sundance em janeiro, Democracia em vertigem chega agora ao público brasileiro num momento em que a tese do golpe ganha força novamente para a esquerda (boa parte da direita vai negar até o fim), com o vazamento das conversas entre o juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol. Petra Costa afirmou, em entrevista à Carta Capital, que, “Se eu soubesse que ia ter este vazamento (a série Vaza Jato, de reportagens do Intercept Brasil) não teria parado”. Esse é o risco de documentar um processo histórico enquanto ele ainda está em andamento.

Nesse contexto do vazamento, destacou-se o nome do jornalista Glenn Grenwald, do Intercept. O norte-americano ficou internacionalmente conhecido em 2013, quando divulgou os vazamentos do analista de sistemas Edward Snowden, funcionário terceirizado da National Security Agency (NSA), agência de espionagem do Departamento de Defesa do governo norte-americano. Segundo a denúncia de Snowden, o órgão não usava o recurso do grampo e da interceptação de mensagens apenas para prever ataques terroristas, mas para descobrir os bastidores da política de países estratégicos, como o Brasil, com o objetivo de interferir na economia e na política dessas nações.

Dois filmes necessários para entender essa história, e que têm a ver com o Golpe de Estado no Brasil, são o documentário vencedor do Oscar Citizen Four (2014), de Laura Poitras, e Snowden (2016), de Oliver Stone. Greenwald virou persona non grata para o governo norte-americano, embora tenha recebido diversos prêmios do jornalismo, e Edward Snowden, acusado de traição, provavelmente não poderá voltar ao seu país nunca mais. Há seis anos encontra-se distante da família e dos amigos, agora está exilado temporariamente na Rússia.

Outros dois filmes também são importantes para compreender o papel do jornalista e programador Julian Assange, fundador do Wikileaks, responsável por vazar documentos que expuseram corrupção, imperialismo e assassinatos: o documentário Risk (2017), de Laura Poitras, e o thriller O quinto poder (2013), com Benedict Cumberbatch. E, para se juntar a Democracia em vertigem, no registro do golpe, há mais duas produções: O processo (Maria Augusta Ramos, 2018) e Excelentíssimos (Douglas Duarte, 2018).

Para este ano, ainda está previsto o lançamento do documentário O país dos seis berlusconis (Pablo Guelli), sobre as seis famílias detentoras dos principais meios de comunicação no Brasil. E alguém precisa fazer urgentemente um documentário sobre a história do pré-sal e as suas implicações políticas e econômicas. Todas essas produções mencionadas, e mais Democracia em vertigem, são peças que parecem soltas, mas que podem formar o mosaico de uma narrativa maior sobre um país absolutamente entregue nas mãos da incerteza com relação a seu futuro.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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