Mirante

Do melhor ao pior Orson Welles

TEXTO Débora Nascimento

03 de Dezembro de 2018

Orson Welles ladeado pelos amigos e cineastas John Huston e Peter Bogdanovich, atores do filme

Orson Welles ladeado pelos amigos e cineastas John Huston e Peter Bogdanovich, atores do filme

Foto Reprodução

Às vésperas do Halloween de 1938, Orson Welles, um desconhecido ator de radionovela da CBS, fez uma “pegadinha” que mudaria o rumo de sua vida e da história do cinema. Nesse dia, o impetuoso jovem de 23 anos interpretou o roteiro que escrevera baseado em A guerra dos mundos (1897), de HG Wells. Ao narrar, como se fosse um noticiário, uma fictícia invasão extraterrestre aos EUA, a transmissão provocou pânico em milhões de pessoas. A comoção foi tão grande, que, no dia seguinte, foi parar nas capas dos jornais. A audiência e a publicidade decorrente renderam-lhe a fama de gênio e enfant terrible, o que fascinou Hollywood. Em 1940, assinava com a RKO um contrato de U$ 225 mil dólares. Com total liberdade criativa, filmou uma ideia tão bombástica quanto uma invasão alienígena: a manipulação promovida pelo magnata da “imprensa marrom” William Randolph Hearst, através de um personagem inspirado nele. Em 1941, aos 25 anos, tinha em mãos uma obra-prima, Cidadão Kane, e todo um futuro brilhante à sua espera.

O futuro, no entanto, não chegou tão brilhante quanto Orson Welles queria e merecia. Cidadão Kane, um filme inovador em vários aspectos (narrativa, fotografia, temática) e um marco do cinema, dirigido, roteirizado e protagonizado por ele, não foi um sucesso de bilheteria. Indicado em nove categorias do Oscar, venceu apenas uma: melhor roteiro, coescrito com o veterano Herman J. Mankiewicz. O que deveria ter sido uma bênção na sua carreira, acabou se tornando uma maldição, como ele dizia.

Além de levar William Randolph Hearst a repetidas tentativas de destruir a reputação do cineasta, Cidadão Kane, apontado como o melhor filme de todos os tempos, virou um parâmetro para cada nova proposta ou lançamento de Welles. Embora tenha realizado títulos relevantes, como Soberba, A marca da maldade, A dama de Shanghai e O processo, o diretor acabou perdendo a liberdade criativa e, pior, o interesse dos estúdios, pois seus filmes não rendiam bons lucros. E ele ainda ganhou fama de insubordinado.

Para conseguir se manter e ter algum dinheiro para investir nas suas produções, trabalhava como ator em filmes de outros realizadores. “Como diretor, por exemplo, eu me pago com meus trabalhos de ator. Uso meu próprio trabalho para subsidiar meu trabalho. Em outras palavras, sou louco. Mas não louco o suficiente para fingir ser livre”, afirmou, em discurso, na homenagem que recebeu do American Film Institute em 1975.

Sem dinheiro para cobrir os orçamentos e também por motivos diversos, deixou 11 trabalhos inacabados. Um deles era O outro lado do vento. Era. Em 2014, a produtora Royal Road Entertainment adquiriu os direitos do material: 1.083 rolos oriundos de oito anos de gravação: de 1971 a 1979. Em 2015, os produtores Filip Jan Rymsza, Frank Marshall e Jens Koethner Kaul, junto com o cineasta Peter Bogdanovich, criaram um crowdfunding para levantar 2 milhões de dólares com o intuito de finalizar o filme. Vieram contribuições de 2.859 apoiadores, incluindo diretores como J.J.Abrams, Clint Eastwood, Wes Anderson e Steven Soderbergh, mas foram arrecadados apenas 406 mil dólares. O objetivo só foi alcançado depois que a Netflix entrou na empreitada.

A missão de editar o material ficou a cargo de Bob Murawski. Responsável pela edição de sucessos comerciais como a primeira trilogia Homem-Aranha e Guerra ao Terror (2008), assumiu a tarefa de transformar 100 horas de filmagem em algo parecido com um filme. Para isso, baseou-se em algumas anotações de Welles e numa declaração que o cineasta deu à imprensa, a de que O outro lado do vento seria a junção de duas narrativas intercaladas.

Uma abordaria o último dia da vida do protagonista, um diretor de cinema em decadência, na sua festa aniversário. Essa teria uma cara de documentário. A segunda narrativa é o filme feito pelo personagem do cineasta. Esse filme, inacabado por falta de recursos (metalinguagem), é exibido na festa. A trama envolve um motoqueiro (Bob Random) que persegue (e é perseguido) por uma mulher misteriosa, interpretada pela croata Oja Kodar, atriz, corroteirista, codiretora e amante de Orson Welles. Algumas cenas já haviam sido, inclusive, editadas por ele, como a do sexo no carro, protagonizada por Random e Oja.

Essa iniciativa audaciosa de concluir o último longa de um deus do cinema desperta uma questão: mesmo com essas anotações e algumas cenas já editadas, alguém teria o direito de finalizar o trabalho de um cineasta sem a sua autorização? Orson Welles, que não admitia a interferência dos estúdios, gostaria que finalizassem uma obra sua? Ele próprio dizia que um filme é feito na sala de edição. E repete isso no documentário Serei amado quando morrer (2018), que acompanha o lançamento de “seu” novo filme na Netflix. O doc é, na prática, um making of, que, ao contrário de outros, deve ser visto primeiro, como uma espécie de guia.

Fora não ter sido finalizado com o acompanhamento do autor, um dos maiores entraves de O outro lado do vento está mesmo no material filmado. A maior parte dos diálogos não faz muito sentido e diversas cenas são desconexas. Welles trabalhou sem um roteiro pronto, dizia aos atores o que queria da cena e filmava a improvisação.

A melhor coisa do filme é a interpretação do protagonista Jake Hannaford, feita por John Huston, cineasta que, assim como Orson Welles, também lançou, em 1941, um grande título e concorrente ao Oscar, O falcão maltês/Relíquia macabra. Huston, que vivia atarefado com seus próprios longas, aceitou o desafio de encarnar esse personagem, pois seria uma forma de ajudar o amigo. Mas, um dia, em meio às gravações caóticas, saiu um pouco de sua complacência: “Sobre que raios é o filme?” Welles respondeu: “Sobre pessoas como eu e você, malditos cineastas”.

Outro trabalho voluntário foi o de Peter Bogdanovich, que entrou no elenco em 1974 para cobrir o buraco deixado pelo ator Rich Little, que abandonara as filmagens. Ex-crítico de cinema, Bogdanovich tinha virado cineasta e sua obra-prima, A última sessão de cinema (1971), fazia parte do cardápio da New Hollywood, turma de jovens cineastas que abrangia nomes como Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, George Lucas, Steven Spielberg e Brian De Palma.

Essa geração, que renovou o cinema norte-americano, acabou por sepultar a carreira de Orson Welles, não tanto pelo fato de ela trazer importantes mudanças conceituais e temáticas, mas porque convertia essas mudanças em bilheteria. Quando surgiram filmes como Tubarão (1975) e Star Wars (1977), estabelecendo a ideia de blockbuster, foi encerrada a esperança de Welles voltar a ter algum poder na indústria. Ao mesmo tempo em que recebia homenagens públicas como uma lenda viva de Hollywood, lutava para sobreviver no cinema alternativo e escapar do estigma de ícone da era de ouro: “Eu não ando pela estrada da memória. Eu falo sobre hoje e o futuro!”.

Sem verba, o cineasta seguia com as filmagens de O outro lado do vento contando com a boa vontade de amigos e admiradores, famosos ou desconhecidos, como o cinegrafista Gary Graver. O filme, a propósito, começou a ganhar força a partir do contato entre o cineasta e o cinegrafista.

No dia 3 de julho de 1970, Graver havia parado para tomar um café na Schwab's e abriu uma Variety. Na revista estava a informação: “Orson Welles visita amigos em San Francisco, diz que logo volta a filmar...” Largou o café e ligou para o Beverly Hills Hotel. “Quero falar com o Sr. Orson Welles, por favor.” A ligação foi transferida para o bangalô do hóspede. Atendeu um homem de voz grave e profunda que só poderia ser o próprio Orson Welles. Titubeante, o cinegrafista disse que gostaria de trabalhar com ele. Welles respondeu que precisava desligar, mas anotou o telefone do estranho.

Quando chegou em casa, Graver foi surpreendido pela esposa lhe informando que havia uma ligação pra ele naquele momento. "Venha ao hotel. Eu tenho que falar com você imediatamente!", falou Welles no seu modo contumaz: intenso. O cineasta considerava que aquela ligação era um sinal do destino. Trinta anos antes, um outro cinegrafista havia pedido para trabalhar com ele, Gregg Toland, que realizou mágicas na filmagem de Cidadão Kane. Welles eternizou sua gratidão ao pôr no mesmo frame os créditos de diretor e do diretor de fotografia, reconhecimento inédito no cinema.

Mas Graver não era Toland, um gênio da fotografia. Era apenas um cinegrafista bastante disposto e interessado em acertar. Havia trabalhado no Vietnã e sobrevivia filmando pornôs – alguns deles chegaram a ser inacreditavelmente editados por Orson Welles para que seu colaborador desocupasse a agenda o mais rápido possível e não atrasasse as filmagens de O outro lado do vento.

Já Orson Welles também não era o mesmo Orson Welles do início dos anos 1940. De um dos mais promissores cineastas de Hollywood, era agora um pária. Não tinha mais verbas. Só podia contar com amigos e fãs. Se essa aventura fílmica tivesse acontecido nos dias atuais, o simples anúncio de que precisaria de uma equipe, certamente levaria até ele uma romaria de auxiliares de filmagens, cinegrafistas, fotógrafos, editores, atores... Naquela época, era muito mais difícil e dispendioso fazer cinema. Hoje, os filmes são feitos até em celulares.

Para seguir com as filmagens de O outro lado do vento, nosso herói contou, em 1974, com o auxílio inusitado da produtora Les Films de l'Astrophore, sediada em Paris e dirigida por Mehdi Boushehri, cunhado do Xá do Irã. Quando, em 1979, os aiatolás derrubaram a monarquia autocrática, não só estabeleceram uma república islâmica teocrática sob o comando do aiatolá Khomeini, como dificultaram ainda mais a vida de Orson Welles. Sem mais dinheiro para continuar a produção, que tinha se estendido demais, a produtora confiscou o material na França e o autor não pode reavê-lo, pois não tinha como pagar a parte já investida. A justiça francesa determinou que o filme pertencia ao produtor e não ao diretor.

A ideia de Orson Welles em O outro lado do vento era captar o zeitgeist, como Blow up (1966), de Michelangelo Antonioni, a quem ele, inclusive, se referia como “um arquiteto de caixas vazias”. Há muitas referências ao cinema alternativo da época, à produção cinematográfica europeia, ao nonsense, à liberação sexual, com muito nudismo – a atriz croata Oja aparece despida em várias cenas. Mas todas essas referências parecem bem distantes e datadas em 2018.

Já o protagonista Jake Hannaford foi não somente inspirado em Welles (embora ele negue), mas em Ernest Hemingway. Em maio de 1937, um ano antes de tocar o terror nos Estados Unidos com a narração da invasão alienígena, Orson Welles chegava ao estúdio para gravar um texto sobre a Guerra Civil Espanhola, escrito por Hemingway. E, por acaso, o autor estava no estúdio. O jovem achou que seria apropriado alertá-lo sobre a necessidade de mudança de uma frase. Ultrajado pela ousadia do rapaz, Hemingway o chamou de “algum tipo de bicha”, ao que Welles respondeu no braço. Não demorou pra cada um se armar com uma cadeira. Depois de caírem no chão, caíram na gargalhada, e a briga terminou em uísque e numa amizade.

Vinte anos depois, o cineasta escreveria um roteiro sobre um escritor americano de meia-idade que vivia a sua decadência na Espanha e se tornou obcecado por um jovem toureiro – talvez fosse uma resposta para “algum tipo de bicha”. Em seu autoexílio (Welles também esteve autoexilado por 10 anos na Europa, antes de filmar O outro lado do vento), biógrafos, estudantes, críticos, o rodeavam. Depois que Hemingway se matou, em 2 de julho de 1961, Welles ambientou a história em Los Angeles e transformou o escritor em um cineasta. E toda a narrativa aconteceria em um único dia – 2 de julho – a data do aniversário e do último de vida do personagem, que se suicidaria.

Nos registros dos bastidores das filmagens, Orson Welles aparece muitas vezes sentado, revelando um semblante cansado, efeito dos muitos charutos cubanos tragados e da obesidade mórbida, que o levou a pesar 158 quilos. Sua compulsão por comida poderia ser uma válvula de escape para vazios afetivos, como a ausência dos pais. Sua mãe faleceu no dia em que ele completou 9 anos. Alcoólatra, seu pai morreu de tanto beber, como um suicídio, quando o filho tinha 15 anos. “Nós nascemos sozinhos, vivemos sozinhos, morremos sozinhos. Somente através de nosso amor e amizade podemos criar a ilusão, para o momento, que não estamos sozinhos”, falava. Muitas vezes, ele se trancava sozinho no quarto e não atendia ninguém.

A solidão permeou o primeiro e o último filme de Orson Welles. Costumeiramente cercados por bajuladores, os personagens Charles Foster Kane e Jake Hannaford morreram sós. Kane, Hannaford e seu criador aparentemente dispunham de tudo para serem felizes. Além de talento, reconhecimento, fama, Welles tinha esposa e filha, mas as abandonou. Sempre rodeado por admiradores, faleceu de um ataque cardíaco aos 70 anos, na madrugada de 10 de outubro de 1985, sozinho no bangalô do Beverly Hills Hotel. No dia anterior, havia participado do programa The Merv Griffin Show, fazendo o que mais detestava: falar sobre o passado. De manhã, foi encontrado morto na cama. Sobre sua barriga havia uma máquina de escrever.


 

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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