Mirante

Dar o braço a torcer

TEXTO Débora Nascimento

30 de Julho de 2021

Escadão Marielle Franco, em São Paulo

Escadão Marielle Franco, em São Paulo

Foto Zanone Fraissat/Folhapress

Uma das expressões populares que mais me intrigam no Brasil é: “Tenho que dar o braço a torcer”. Esse bordão é comumente repetido quando alguém se vê irremediavelmente convencido por outrem de alguma opinião contrária à sua, acerca de algo, alguém ou de algum tema. O dito popular emprega uma imagem representativa de dor (torcer o braço, ai!) e ainda sugere outra: a pessoa, ao se ver convencida daquilo que antes negava ou ignorava, oferece o próprio membro (o da direita?) a ser torcido. Tratando-se dos habitantes deste país, essa representação condiz com a mais pura realidade: mudar de opinião demonstra ser um processo muito difícil e doloroso para o brasileiro. Talvez seja a população menos afeita a modificar seu ponto de vista, o que implica, também, ser o tipo de cidadão que menos se interessa por ouvir argumentos alheios e tentar enxergar aspectos diferentes de uma mesma questão.

No Brasil, uma terra tropical cercada de opiniões rapidamente abalizadas e cristalizadas por todos os lados, mudar de ideia, parece significar, para muitos, fraqueza intelectual, perda no MMA das discussões, o adeus à honra e, por fim, transformar-se em um maria-vai-com-as-outras. Essa resistência leva a outro substantivo: intransigência, que deságua em outros, intolerância, conservadorismo e, por fim, autoritarismo.

Numa análise rápida, talvez deva partir daí a tendência de o brasileiro apoiar projetos autoritários de poder: pois estes evitam, proíbem e punem a ponderação, a divergência, a convivência com diferentes formas de pensar e se comportar. Além disso, pensar de outra forma dá muito trabalho ao cérebro. É melhor, para alguns, deixar o bichinho na dele, balançando numa rede (social?), tomando água de coco industrializada, fazendo as mesmas conexões entre os neurônios.

Mudar a perspectiva sobre alguma questão é o que tem feito a sociedade avançar em todos os seus aspectos: comportamentais, culturais, científicos, tecnológicos. Se o ser humano não tivesse dado por várias vezes o “braço a torcer”, ainda estaríamos na Idade da Pedra. Pensando bem, talvez isso não tivesse sido tão ruim assim, principalmente para o Planeta Terra, que estaria menos maltratado. E nós, provavelmente com menos estresses, problemas contemporâneos paradoxais e aparentemente insolúveis da sociedade moderna, como a convivência com pessoas que usam smartphone de última geração, mas que pensam e agem de maneira pior do que um homem das cavernas. E aqui caberia inserir a famosa frase de Jean-Paul Sartre, “O inferno são os outros”. A pandemia confirmou isso gritantemente. Pense apenas no exemplo frequente de um desconhecido bem atrás de você, numa fila do supermercado ou da farmácia, tirando a máscara para falar alto ao celular.

A mudança de opinião no Brasil talvez seja a chave de acesso para uma vida coletiva melhor ou, minimamente, a nossa chance de sobrevivência como nação. No entanto, parte do país prefere insistir no erro do que reconhecer que errou. Um dos maiores exemplos é o malabarismo digno do Cirque du Soleil que muitos eleitores ainda fazem para manter argumentos em apoio ao indefensável desgoverno Bolsonaro. Sob todos os aspectos e áreas, o mandato desse senhor repulsivo é uma gigantesca calamidade. Mas ainda há muitos que resistem em admitir que cometeram o maior de seus equívocos como cidadãos ao elegerem um candidato tão desqualificado e descompromissado com o país, com a vida e com o meio ambiente.

Parece existir um pudor principalmente em mudar de posicionamento político. As pessoas preferem se afastar da realidade, dos fatos, das evidências. Conheço eleitores bolsonaristas que, mal começaram a pipocar notícias sobre sua indisfarçável incompetência como chefe de Estado, deixaram deliberadamente de ver, ouvir e ler o noticiário, cancelaram assinaturas de jornais e revistas, apenas porque esses veículos de imprensa, outrora indispensáveis, quando batiam apenas em Lula e no PT, agora mostram minimamente os desmandos do governo Bolsonaro. Quando essas pessoas avistam um entregador de jornal, têm crises de urticária.

A mudança de opinião e de paradigmas fez, há bem pouco tempo no país, com que uma população historicamente oprimida percebesse que não se pode mais admitir que criminosos, na forma da lei civilizada, sejam homenageados com nomes em escolas, ruas, avenidas, prédios públicos, aeroportos e monumentos. Se governantes querem celebrar ditadores, assassinos, genocidas, torturadores, invasores e estupradores, então que paguem escultores com dinheiro de seu próprio bolso, coloquem estátuas deles nos jardins de suas casas e passem bem!

Em outras palavras, passamos muito tempo, como nação, acreditando na altivez, superioridade e grandeza de opressores, covardes, desprezíveis e impiedosos homens brancos, poderosos, heterossexuais e ricos que tiveram seus nomes eternizados em homenagens públicas, até que um bem-vindo revisionismo histórico e um maior acesso à informação nos trouxeram a consciência de que a opinião dos oprimidos deve ser levada em consideração na disputa dos enredos históricos. Num futuro, essa suposta “radicalização” que levou fogo ao monumento de Borba Gato, por exemplo, pode induzir o poder público a repensar suas celebrações com o dinheiro do contribuinte.

A propósito, por falar em futuro, o episódio da queima do bandeirante, na manifestação contra o desgoverno Bolsonaro, demonstrou a real preocupação que setores conservadores da sociedade têm ao defender aquilo que parece representá-los bem. Não se incomodam com os quase 600 mil mortos pela Covid-19, com o aumento de mortes por armas de fogo (liberadas pelo governo), assassinatos de indígenas, de negros, de LGBTQIA+, mas basta questionar homenagem a um herói branco, que logo ficam ouriçados.

Como vingança, picharam uma imagem da vereadora Marielle Franco com o nome do bandeirante e o número 666. Alguém explica? E ignoraram (ou talvez até comemoraram, sabe-se lá qual o nível de distorção e perversidade que atingiu esses reacionários) o incêndio da Cinemateca Brasileira, de tal foma que nem sei se deve ser descartada a possibilidade de o sinistro ter sido literalmente criminoso. Alguém ter tacado fogo com as próprias mãos, para vingar o monumento de Borba Gato, queimado uma semana antes.

Em tese, foi criminoso, na medida em que o prédio, com um material altamente inflamável, recebeu um solene descaso por parte do governo federal. Todos os especialistas alertaram, por mais de um ano, da possibilidade de ocorrer um incêndio. Quando nada foi feito, estava sendo concebido o crime contra a nossa memória, arte, cultura e história, e que simboliza o desprezo do bolsonarismo com essas áreas. O saldo está aí, perdas de arquivos raros numa área audiovisual que já é tão carente de registros.

Mas nada parece sensibilizar o apoiador de Bolsonaro. Por que insistimos nisso? Ele parece ignorar ou mesmo desdenhar a dimensão do estrago na Cinemateca Brasileira. Mas que tivesse a noção do que significa, pelo menos, o fogo na Amazônia, que compromete simplesmente a nossa existência como espécie – e aqui vem a vontade de acionar o CAPS LOCK. Nada atinge seu posicionamento em favor desse governo. Nem o orçamento secreto (#tratoraço), o descarado repasse bilionário (R$ 3 bilhões) a deputados federais que faz o mensalão, com seus agora míseros R$ 50 milhões, parecer uma brincadeira de jardim da infância da corrupção. Nada faz o bolsominion sair do seu cercadinho argumentativo baseado em memes, fake news e falácias.

Já mudei de opinião, algumas vezes. Por exemplo, em 2014, inicialmente fui contra o Movimento Ocupe Estelita. Mas, a grande diferença é que, antes de postar críticas aos quatro ventos, fui me informar sobre a intenção do grupo e do projeto Novo Recife. Enfim, entendi e passei a apoiar e a participar dos protestos por lá. Em 2017, fui contra a posse de Alexandre de Moraes (#nuncacritiquei) no STF, indicado pelo golpista Michel Temer. Porém, hoje, o ministro do Supremo surpreende como um dos mais combativos aos desmandos do governo Bolsonaro. E, por enquanto, dá um certo alívio saber que ele será o presidente do TSE durante as eleições de 2022.

Sinceramente, gostaria muito de ter estado enganada com relação à opinião que tinha de Jair Bolsonaro. Gostaria muito de estar errada com relação aos temores que tinha, em 2018, sobre o seu futuro mandato como presidente da República. Mas esse senhor conseguiu provar que eu e milhões de outros brasileiros estávamos mais do que certos em nossos receios. Ele alcançou um feito: superou as nossas piores expectativas.

Só um lembrete para os que pensam ou fingem pensar que Bolsonaro seria um democrata porque vive mudando de opinião. Ele o faz a depender da repercussão de alguma ação governamental que o beneficie de alguma maneira. Vive de factoides, para ganhar mais, lá à frente. O fundão eleitoral foi aprovado pelo Congresso (incluindo o voto de seus filhos) em quase R$ 6 bilhões. Houve uma péssima repercussão, obviamente. Ele, então, aparece como salvador dos cofres da pátria, promete aprovar “apenas” R$ 4 bilhões e todos lucram com o número que já previam. Ou seja, duas vezes o valor que, em 2018, gerou uma grita na população. A manobra foi bem ao estilo da Black Friday, “tudo pela metade do dobro do preço”. O gerente enlouqueceu! E seus eleitores compraram a ideia.

Para finalizar, como eu prefiro ser uma metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo, aqui vai uma nova possível mudança de opinião: realmente não sei mais se o impeachment de Bolsonaro seria a nossa melhor solução a curto prazo... Um editorial de Leandro Demori, do Intercept, me deixou com essa dúvida. Os militares estão envolvidos até o pescoço nos escândalos de corrupção descobertos pela CPI da Covid-19. O que esses homens fardados vão fazer ao assumirem de vez a presidência? Deixar os seus iguais serem julgados e detidos? Acabar com a nobre imagem das Forças Armadas? Não sei qual seria a nossa saída.

Em meio a essa angustiante questão existencial “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”, para concluir mesmo, deixo aos bolsonaristas um recado antigo do saudoso Antonio Abujamra: “A vida é sua, estrague-a como quiser”. Mas na medida em que você for bastante irresponsável no seu direito de votar, pode afetar a vida de milhões de pessoas e contribuir indiretamente com a morte de centenas de milhares de inocentes. Lavem as mãos o quanto quiserem, permanecerão sujas.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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