Mirante

Crimes reais como entretenimento

TEXTO Débora Nascimento

02 de Março de 2022

Ilustração Rafael Olinto

Dias atrás, vi um comercial de TV sobre um podcast da Globoplay e me chamou a atenção a empolgação das garotas-propaganda. A vibração delas, apresentadoras do tal programa, comumente não seria nada demais. Afinal de contas, vender um produto exige certa simpatia para conquistar o “consumidor”. Mas, qualquer pessoa de bom senso há de convir que não caberia sorrisos quando se está divulgando algo que envolve crimes brutais. O podcast em questão resgata a história de homicídios. O inadequado entusiasmo dessas moças representa algo bastante comum hoje em dia: sequestros, assassinatos, estupros e toda sorte de desgraças, desde que sejam alheias, se tornaram entretenimento. Para se ter uma ideia, o nome de um dos muitos podcasts recentes voltados para essa “cultura true crime” traduz bem esse espírito, Café com Crime. Ou seja, vamos falar de violência extrema, mas com finesse, enquanto você nos ouve comendo o seu croissant.

Essa onda de reavivar casos de violência na podosfera começou em outubro de 2014, quando foi lançado Serial, podcast de jornalismo investigativo que se tornou o primeiro grande sucesso mundial do formato. Em outras palavras, o primeiro produto bem-sucedido dessa nova mídia abordava um assassinato (ocorrido em 1999, em Baltimore, Maryland, EUA), demonstrando o interesse do público sobre o tema e revelando um filão a ser explorado nas plataformas de streaming. Desde então, vêm se multiplicando os podcasts sobre crimes violentos, seja para remontar casos não resolvidos ou relembrar os solucionados, como My Favorite Murder (a propósito, que nome infeliz é esse?!), Monster (sobre o Zodiac Killer), Criminal, In the Dark...

Recentemente, no Brasil, fizeram muito sucesso podcasts de não-ficção, como Praia dos Ossos (2020) e Caso Evandro (2018). O primeiro sobre o assassinato de Ângela Diniz, ocorrido em 1976, na Praia dos Ossos, em Búzios (RJ), e o segundo sobre o homicídio macabro do menino Evandro Ramos Caetano, em 1992, na cidade de Guaratuba, no litoral do Paraná. Sobre este último, pipocaram nas redes sociais comentários como “não consigo parar de ouvir”. Ambos tiveram o mérito de trazer material inédito para o público, fosse na forma de informações ou depoimentos.

Esses podcasts não apenas relembraram casos de homicídio apenas para entreter o ouvinte. Na realização do Caso Evandro, o escritor curitibano e professor de storytelling Ivan Mizanzuk teve acesso, em 2017, aos autos do processo da morte do garoto. Já as produtoras da Rádio Novelo (que também produz o Foro de Teresina), para fazer o Praia dos Ossos, entrevistaram mais de 60 pessoas a respeito da vida da socialite carioca. E foram além do jornalismo. Para a montagem dos oito episódios do podcast, convidaram roteiristas de cinema, com o intuito de trazer o tipo de narrativa que atrai a atenção do ouvinte. Buscaram inspiração no estilo de narrativa ficcional, empregando, por exemplo, uma edição bem-apurada com depoimentos que provocam emoções e efeitos sonoros que despertam a sensação de suspense e a curiosidade no ouvinte, que, em sua maioria, costuma ter idade entre 18 e 34 anos, segundo pesquisas das plataformas.

Ao conquistar espectadores, leitores e ouvintes, as histórias de true crime contribuem para que empresas apostem mais e mais nesse tipo de produto e consigam, com isso, aumentar, por tabela, o número de assinantes e anunciantes. Além de podcasts, as plataformas de streaming e os canais por assinatura têm investido em séries sobre histórias reais de violência, a exemplo de Making a murderer, Máfia dos tigres, Mindhunter, The act e American crime story.

Em meio a essa onda de produções true crime story, já li comentários em posts de notícia de que um determinado homicídio merecia virar série de TV. E a pessoa ainda completou: “Adoraria assistir”. Esse interesse por conhecer histórias reais e sangrentas tem a ver com algum desejo do ser humano em querer estar a par de histórias horrendas e/ou misteriosas, liberando alguma descarga de substância, como adrenalina. Deve partir daí o grande sucesso dos filmes de terror e dos programas policiais de TV e rádio.

Há, também, quem se interesse em discutir casos não solucionados de crimes, independentemente de qualquer série ou podcast. É o que fizeram pessoas inconformadas com a falta de empenho da polícia em investigar dezenas de estupros e assassinatos ocorridos na Califórnia entre 1973 e 1986. Décadas depois dos boletins de ocorrência, discutiam, em fóruns virtuais, sobre pistas e indícios do caso do Golden State Killer -- enquanto para os investigadores oficiais, essas ocorrências eram entendidas como casos isolados e não praticados por um serial killer. Integrante desse grupo online, a escritora Michelle MacNamara escreveu o livro I'll be gone in the dark, lançado em 2018, que acabou gerando a minissérie documental homônima na HBO, em 2020. Infelizmente, a autora faleceu em 2016, antes da descoberta do criminoso, em 2018. Há ainda, nos EUA, a convenção Crime Con, que reúne centenas de pessoas. Uma das atrações da programação é o Crowd Solve, em que participantes, ao lado de especialistas em criminologia, tentam desenvolver novas ideias e pistas de casos não resolvidos.

O problema não é chamar a atenção do espectador para conhecer ou se aprofundar em histórias tenebrosas. Não é de hoje que se informar sobre a desgraça alheia atrai as pessoas, seja para se compadecer, ajudar, se proteger de situações semelhantes, saber de falhas na investigação policial (como explicado na série Olhos que condenam) ou por puro entretenimento mesmo. Isso já rendeu incontáveis livros, filmes, documentários, séries, composições e agora podcasts.

A questão é que, se, por um lado, essa avalanche de produtos do gênero true crime ajuda a reacender o interesse público sobre crimes solucionados ou não, trazendo novas versões, provas, conexões, podendo provocar até a reabertura de casos não prescritos, demonstrar equívocos jurídicos e policiais; por outro lado, podem contribuir, com sua massificação e estetização, para banalizar a violência.

O ponto principal, em meio a essa onda de true crime story, talvez resida no fato de que a tragédia humana não deveria despertar interesse apenas quando vira motivo para comer pipoca diante da TV ou no cinema, ou para tomar café ouvindo podcast. A desgraça humana precisa chacoalhar as bases da sociedade enquanto o fato ainda estiver no presente, porque, só assim, as reações poderão transformar as estruturas sociais e evitar que mais casos se repitam.

De que adianta, por exemplo, que, daqui a algum tempo, seja lançado um podcast ou uma minissérie sobre o Caso Jonatas Santos? Seria necessária uma reação agora de toda a sociedade contra esse crime brutal, em que um garoto de 9 anos foi assassinado no lugar do pai, o líder rural Geovane da Silva Santos. Mais um homicídio de camponeses, mortes que ficam à parte da grande repercussão na imprensa e no circuito digital. Sete homens encapuzados invadiram, no dia 10 de fevereiro, a casa dos seus pais no Engenho Roncadorzinho, em Barreiros, a 110 km do Recife. O garoto e a mãe correram para se esconder debaixo da cama e o pai fugiu para o mato. Como vingança, atiraram no menino.

É certo que o caso Jonatas teve contra si o interesse do noticiário sobre a terrível inundação em Petrópolis e antes houve a grande comoção nacional a respeito do linchamento do imigrante congolês Moïse Kabagambe. Mas a morte do garoto foi tão chocante quanto e, mais ainda, por se tratar de uma criança totalmente indefesa. Tanto na imprensa quanto na internet, a repercussão ficou bem abaixo do comum. Talvez porque os fatos ocorridos em áreas urbanas despertam mais a atenção do que no meio rural ou simplesmente por uma razão: a ausência de imagem.

O ser humano, nesta época do império do audiovisual, precisa, mais do que nunca, da imagem para ser atingido em sua emoção e razão. O caso George Floyd muito provavelmente só angariou a atenção mundial porque houve o registro do assassinato e a viralização do vídeo feito por celular. A reação a ele contribuiu para que houvesse uma punição célere dos envolvidos.

A necessidade de ver para crer talvez explique também o quanto ainda há quem defenda ou minimize barbaridades como o nazismo, assassinatos, torturas... Quando vejo essas demonstrações de falta de empatia, penso na cena de Laranja mecânica, em que o protagonista é obrigado a assistir a cenas de violência ouvindo música erudita. Antes de relativizar ou encarar como entretenimento o sofrimento alheio, é preciso lembrar que sempre haverá uma lacuna nessas narrativas: o mais autêntico, real e profundo grito de dor.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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