Mirante

Caiu a máscara da ilusão

TEXTO Débora Nascimento

29 de Março de 2021

Foto Débora Nascimento

Naquele que seria o sábado de Carnaval de 2021, fiz algo que misturava curiosidade jornalística, saudosismo e talvez um pouco de masoquismo. Fui a alguns dos lugares que estariam abarrotados de pessoas sorridentes por todos os lados, se estivéssemos em plena normalidade. Esse passeio de carro cuja paisagem eram ruas quase fantasmagóricas, despidas do colorido da decoração, da circulação de foliões fantasiados, da alegria das músicas carnavalescas, sintetizou a representação imagética máxima dos efeitos da pandemia que segue, há mais de um ano, afetando a vida de milhões e, neste caso específico, o espírito festivo do brasileiro, de sua cultura e de seus artistas.

Para contribuir com a situação esquisita de não haver Carnaval e com o clima pesado da segunda onda da Covid-19, o céu estava nublado naquele dia. Logo de cara, foi estranho acordar, ligar a TV e não ver a tradicional cobertura do Galo da Madrugada, e não ouvir a gravação antiga da cantora Amelinha (“Acorda, Recife, acorda, que já é hora de estar de pé”) e as velhas perguntas dos repórteres, os conhecidos ângulos de câmeras, as tomadas aéreas e as mesmas entrevistas sobre a irreverência do folião pernambucano. Ao sair de casa de carro, foi preciso repetir para mim mesma que aquele era um sábado de Carnaval, pois mais parecia um feriado que nunca havia existido antes no calendário: o Dia do Não-Carnaval.

Fui direto ao lugar onde todo ano na voz de Alceu Valença “vai dar mais um milhão de pessoas no Galo da Madrugada”. O primeiro estranhamento foi passar pela ponte Princesa Isabel, olhar para a Ponte Duarte Coelho (da Avenida Conde da Boa Vista) e não ver o Galo Gigante, que todo ano reacende discussões se é feio ou bonito.

 

Um dos momentos emocionantes desse passeio de carro ocorreu na já normalmente esquisita Rua Imperial, lugar que parece um não-lugar, mesmo tendo seus imóveis divididos entre comércio e residência. Talvez a falta de área verde e calçadas largas sejam fatores que a caracterizem como inóspita. Dos quase dois quilômetros do logradouro, o momento em que as lágrimas vieram foi quando passei pelo lugar exato onde, sob um teto antigo, a família de meu marido e amigos costumam se encontrar há décadas. Olhei para o vão vazio e lembrei rapidamente da imagem de todos eles juntos. A sensação de estranheza foi pensar que estávamos trafegando por uma rua que, em um sábado de Carnaval, há mais de 40 anos, se transforma em um corredor de dezenas de trios elétricos cercados de foliões e comerciantes ambulantes.

 

Nos arredores do bairro de São José, alguns raros transeuntes circulavam com discretas roupas coloridas e aquele colar havaiano de flores de plástico pendurado no pescoço. Na Rua da Concórdia, uma mesa na calçada com seis pessoas bebendo fazia parecer que aqueles tinham sido os últimos a sair de uma festa ruim. Nessa hora, pensei que nem mesmo a imagem turística estereotipada do “país do futebol, samba e Carnaval” tínhamos mais neste ano. O desfalque desse rótulo folclórico soma-se agora ao tanto que já vem sendo retirado do povo brasileiro: direito à moradia, saúde, educação, emprego, transporte público de qualidade, arte, lazer.

A propósito, no retorno da avenida, a construção do Novo Recife, no Cais Estelita, mostra que, enquanto estamos em quarentena, as imobiliárias que mandam na cidade não param. Possivelmente, quando conseguirmos sair dessa crise sanitária, vamos encontrar o paredão de prédios contra o qual lutamos em meados dos anos 2010, mudando, para sempre, a paisagem, o conjunto arquitetônico do bairro de São José e trazendo os impactos ambientais previstos.

Saindo de lá, fui direto para Olinda. E como normalmente acontece, ao adentrar na avenida que leva à cidade-irmã, começou a tocar, na minha cabeça, o Hino do Elefante: “Ao som dos clarins de momo, o povo aclama com todo ardor...”. Ao chegar no Varadouro, a música já foi diminuindo até a Praça da Sé. Na Cidade Alta, havia uma circulação maior de pessoas do que no Bairro de Santo Antonio e São José. Os transeuntes pareciam estar em busca de algumas migalhas do clima carnavalesco olindense. Mas foi tristemente surreal caminhar, nesse contexto melancólico, por aquele cenário que já abrigou tantas alegrias, encontros, histórias. Após essas duas horas de passeio, voltei para casa, sem o conhecido cansaço corporal e auditivo da folia.

Não tive ânimo para apreciar as lives de Carnaval promovidas por prefeituras ou por produtores. Na sexta-feira à noite, já havia procurado no YouTube algum vídeo do saudoso Naná Vasconcelos na abertura do Carnaval do Recife. Acessei um deles, que estava em ótima qualidade. No palco grandioso, todo iluminado e colorido do Marco Zero, o percussionista começava a reger com as baquetas, como um rei, todas as nações de maracatu de baque virado. A multidão na expectativa do início da festa. Durante 16 anos, esse espetáculo tão vibrante fez parecer que duraria para sempre. Nos primeiros segundos, me veio novamente o sentimento de que ele nunca mais se repetiria da mesma forma. Parei o vídeo e comecei a chorar. Por Naná, pela cultura popular, pelo Brasil, pelo fracasso constante da ideia de um país melhor.

No sábado, ao final do passeio por Recife e Olinda, todas as boas lembranças carnavalescas, em meio à realidade assustadora, já me pareciam muito distantes. O mais apropriado era esquecer de vez que aqueles seriam dias de Carnaval. Evitei o Instagram. As postagens das pessoas fantasiadas em carnavais anteriores já me pareciam uma mistura de consolo sabotador, saudosismo inconveniente e masoquismo fantasiado de memória. Era melhor desapegar. Lembrei, então, de uma música carnavalesca que eu detesto por ter uma atmosfera deprimente e não condizente com o clima carnavalesco. É aquela Turbilhão, de Moacyr Franco, que começa de forma bem empostada: “A nossa vida é um Carnaval / A gente brinca escondendo a dor”. Uma frase específica dessa letra encaixou-se perfeitamente naquele dia: Caiu a máscara da ilusão.

“Eu vejo a barra do dia surgindo
Pedindo pra gente cantar
Tô me guardando pra quando o Carnaval chegar
Eu tenho tanta alegria, adiada
Abafada, quem dera gritar
Tô me guardando pra quando o Carnaval chegar”
(Quando o Carnaval chegar, Chico Buarque)

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