Mirante

BBB, tão editado quanto a vida real

TEXTO Débora Nascimento

29 de Abril de 2021

Juliette Freire e Gil do Vigor tiram selfie no BBB21

Juliette Freire e Gil do Vigor tiram selfie no BBB21

Foto Reprodução

“Como são admiráveis as pessoas que nós não conhecemos bem”, escreveu Millôr Fernandes em uma das incontáveis frases que tornaram o Filósofo do Méier uma das mentes mais brilhantes do país. O jornalista, escritor, tradutor, desenhista, dramaturgo, poeta, humorista e gênio tinha e tem muitos fãs. Dentre eles, eu. Na época de estudante de Jornalismo, nos anos 1990, eu mantinha duas pastas com recortes das produções dele na imprensa. Quando saiu A Bíblia do Caos, como garantia contra perdas ou possíveis empréstimos nunca retornados, comprei dois exemplares: a edição normal e a “de bolso”, que eu tratava como livros sagrados.

Mas, seguindo a lógica da frase que abre este texto, minha admiração por Millôr sofreu um abalo. Isso ocorreu depois que assisti, em 2018, ao documentário A extraordinária vida de Tarso de Castro. O jornalista, falecido há quase 30 anos (em 20 de maio de 1991), era um nome bem menos badalado do que o de Millôr. Mas foi um dos fundadores de O Pasquim e a pessoa que levou à frente a ideia do mítico tabloide do Rio de Janeiro. Tarso recrutou o famoso dream team do jornal. Millôr, inclusive, resistiu a participar do projeto, porque considerava que seria um fiasco e que poderia acabar com todo mundo detido, por conta da ditadura militar. O que, de fato, aconteceu, mas, por sorte, ele e Henfil escaparam da prisão.

Contrariando a expectativa pessimista, o jornal vingou e entrou para a história do jornalismo e do humor nacional. E aqui insere-se a decepção que tive com Millôr Fernandes. Descobri, através do documentário, que ele foi o principal articulador da saída de Tarso de Castro da equipe. O jornal não estava em boas condições financeiras. E havia a suspeita de que Tarso, que era alcoólatra, estivesse desviando dinheiro para beber. Expulso, o jornalista encampou mais algumas tentativas de periódicos alternativos, que não duraram muito.

No documentário, lembraram a impressão de que Tarso tinha daquele que virou seu maior inimigo. Para ele, Millôr, na realidade, tinha inveja, porque Tarso era muito querido nos meios jornalístico e artístico, sendo amigo de figuras como Tom Jobim, Caetano e Chico Buarque, e conquistou um razoável número de algumas das mulheres mais cobiçadas do Rio de Janeiro, e até estrangeiras, como a atriz norte-americana Candice Bergen, que ficou apaixonada pelo jornalista, ao ponto de ligar, de Hollywood, incessantemente para sua residência.

Trago aqui a lembrança dessa frase de Millôr, para fazer um paralelo com o contexto em que boa parcela dos telespectadores brasileiros está envolvida na reta final do Big Brother Brasil 21. Essa edição do reality show exibiu polêmicas que movimentaram as redes sociais e provocaram discussões sobre “ativismo tóxico”, devido ao comportamento de participantes, como a rapper Karol Conká, que foi eliminada com rejeição recorde da competição em fevereiro (99,17%) e agora ganhou documentário da TV Globo (A vida depois do tombo, que estreia nesta quinta, 29/04, no GloboPlay) sobre o período pós-eliminação. Em um dos trechos, Karol, chorando, assiste a diversos momentos em que fez jus ao apelido de “cobra” pelos telespectadores. A situação lembra a famosa cena de Laranja Mecânica, em que o protagonista delinquente Alex é obrigado a ver cenas de violência, ouvindo música clássica.

Fazendo um retrospecto, Karol foi indicada ao paredão pela participante Sarah Andrade, que, por suas atitudes até então sensatas, levou o ator e humorista João Vicente, filho único de Tarso de Castro, a honrar a herança genética galanteadora do pai e fazer declarações apaixonadas no Twitter. Quando a sister, apontada como ótima jogadora e com chances de se tornar favorita ao prêmio, revelou, no programa, que era seguidora de Bolsonaro e que havia participado de várias festas em meio à pandemia, João logo tuitou “Acabou o amor”. Seus seguidores entenderam do que se tratava.

Isso me lembrou da frase acima de Millôr, que poderia cair tão bem na lógica do BBB – um programa televisivo que acompanha por 24 horas, durante meses de confinamento, a vida de diferentes pessoas que não se conhecem. O objetivo do reality, que registra todos os comportamentos dos participantes, é revelar qualidades e defeitos, levando o público a descartar aqueles que o decepcionem e eleger como campeão aquele que mais o agradou. Como já disse aqui, em outro texto para esta coluna, só assisti à primeira edição do Big Brother e agora essa, por conta da repercussão na imprensa e nas redes sociais das atitudes deploráveis de Karol Conká e do chamado Gabinete do Ódio, grupo que a cercava e apoiava no jogo.

Depois, ao ver vídeos dessa edição no Instagram e Twitter, passei a acompanhar o BBB21 por causa do interesse despertado pelos participantes mais carismáticos, a advogada e maquiadora (isso parece coisa da antiga TV Pirata) paraibana Juliette Freire e o economista e professor de matemática pernambucano Gilberto Nogueira (morador do Janga), responsáveis pelos momentos mais interessantes e cômicos do reality.

Para quem ainda não sabe, Juliette, favorita a levar o prêmio de R$ 1,5 milhão, é tão carismática que já acumula muitos feitos. Foi, em menos de três meses, de 3 mil para 22 milhões de seguidores no Instagram (para se ter uma ideia, o influencer Felipe Neto tem 13 milhões na rede social). Além de aumentar a projeção de artistas e bandas como Francisco, El Hombre, a paraibana, que vive cantando no reality show, numa edição cheia de cantores (Pocah, Karol Conká, Projota, Fiuk e Rodolffo), conseguiu colocar Deus me proteja, de Chico César e Dominguinhos, lançada em 2008, em primeiro lugar na lista do Spotify das 50 músicas que viralizaram no Brasil.

Tudo o que ela usa, esgota rapidamente nas lojas e nos sites, seja batom, roupa, ovo de páscoa, o smartfone da prova do líder que finalmente venceu (levando telespectadores de várias cidades brasileiras a gritarem como se fosse um gol da Seleção). Uma foto sua postada, em março, no Instagram bateu recorde mundial de mais curtida em menos tempo (atingindo 1 milhão de curtidas e 100 mil comentários em 6 minutos), igualando-se à marca atingida pela cantora Billie Eilish, dias antes. E o engajamento no seu perfil na rede social supera o de artistas como Ivete Sangalo, Anitta e Beyoncé, e de jogadores como Neymar e Cristiano Ronaldo, que tem o IG mais seguido no mundo, com 273 milhões.

Os brasileiros fazem diversas bonecas inspiradas no biótipo dela, festas temáticas com as imagens da paraibana e símbolos nordestinos. Seu rosto estampa tatuagens, desenhos, telas, murais... A frota de ônibus de João Pessoa mudou o letreiro para “Somos Juliette campeã”. Celebridades e artistas a admiram, diversos cantores a convidaram para gravar canções em dueto. Carlinhos Brown é um dos compositores que criaram músicas especialmente para ela. A comediante Dani Calabresa afirmou que a paraibana e Ivete Sangalo são as “donas do Brasil”. Adeus, Regina Duarte. Juliette é a nova namoradinha do Brasil.

Juliette vem cumprindo no BBB o que se chama de a jornada do herói. Vítima de xenofobia e bullying, no início da disputa, pensou em desistir, mas foi convencida pelo ator e poeta Lucas Penteado a seguir – isso ocorreu antes de ele mesmo abdicar de sua participação por causa do bullying que sofria de Karol Conká e da psicóloga Lumena Aleluia, principalmente após o beijo que ele e o Gilberto Nogueira deram em uma festa realizada no jogo. A paraibana, que já é definitivamente o maior fenômeno da TV e da Internet brasileiras neste ano (alguém pode superar?), conseguiu dar a famosa “volta por cima” e agora está dentre os finalistas com a provável chance de vencer o reality.

Segundo informações publicadas na imprensa, a Globo planeja contratá-la e criar um programa especialmente para ela apresentar. É um conto de fadas contemporâneo, que demonstra o poder que as redes sociais têm hoje em dia. Juliette teve uma infância e adolescência com poucos recursos financeiros dos pais, virou advogada, mas sobrevive como maquiadora (com a crise gerada pela pandemia chegou a receber auxílio emergencial) e agora provavelmente será a nova milionária do país –- acrescentado pelo fato de marcas estarem na fila para contratá-la como garota propaganda. Mas seus planos podem ser abalados pelo furacão Gilberto Nogueira (Gil do Vigor, muito querido pelo público), com quem manteve uma amizade conturbada dentro da competição.

Gil participou de momentos marcantes no BBB21, como ter indicado ao paredão o cantor sertanejo Rodolffo, após este dizer que queria levar o cantor Fiuk (que usava um vestido para uma festa) para as boates de Goiânia, só para ver a reação dos homens de lá. O filho de Fábio Jr ficou afetado com o comentário e Gil considerou que se tratava de homofobia, que não deveria passar impune no programa exibido para todo o país. O pernambucano, conhecido pelas “cachorradas” (um termo amplo que pode abranger surtos, berros, discussões, paranoias, dancinhas ou tietagem no show de Pabllo Vittar em uma das festas recentes), passou um terço da competição falando mal de Juliette, mas hoje fizeram as pazes – e até La Belle de Jour, de Alceu Valença, tocada em sua festa LGBT do arco-íris, ajudou nesse período de reconciliação. Mas isso não acalmou o ânimo das duas torcidas que, nas rede sociais, se tratam como rivais.

E aqui entra a questão da edição. A inclusão, exclusão ou sequência de acontecimentos pode revelar ou ocultar qualidades e defeitos, tornando pessoas admiráveis, como Gil, não tão admiráveis assim. O responsável pela direção do programa, Boninho, filho de Boni, famoso diretor da TV Globo, vem fazendo jus à fama do pai, que manipulou o histórico debate presidencial de 1989 entre Lula e Collor. O público que assiste ao pay-per-view do reality show, que dá acesso em tempo real a todos os cômodos da casa, acusa Boninho, desde o começo dessa edição, de esconder, na edição da TV aberta, alguns fatos essenciais para a opinião do público, como o mau comportamento de Karol Conká.

Muitos telespectadores, por exemplo, consideram Juliette chata, porque a veem repreender Gil, mas não sabem que o pernambucano, semanas antes, havia desferido golpes baixos contra a paraibana. Falando mal dela para os outros participantes, insinuou que ela era “vetezeira” (no léxico dos participantes, “fazer videotape” significa criar uma situação para forçar o seu aparecimento na edição do programa e despertar atenção e empatia no público). Em uma acusação mais grave, chegou ao cúmulo de insinuar que ela mencionava a irmã, que havia morrido subitamente anos atrás de aneurisma, para “fazer VT” e que seu “acolhimento” a outros participantes também teria segundas intenções. Juliette obviamente só saberá dos detalhes bizarros desses bastidores quando sair do confinamento.

Nesse contexto, entra a grande questão. Gil do Vigor, após escapar de vários paredões, está na reta final do BBB21 pela força de seu carisma e de suas irresistíveis “cachorradas”, recebidas pelo público como puro entretenimento, pois ele é extremamente engraçado. Porém, alguém que fez uma calúnia tão afrontosa merece chegar à final ou mesmo vencer? O reality, de fato, revela as qualidades e os defeitos dos participantes? Mesmo no pay-per-view, os telespectadores não conseguem acompanhar tudo o que acontece em todos os cômodos da casa. Quando um espectador escolhe um espaço, uma situação, está deixando de ver outra, que talvez fosse decisiva para considerar se alguém mereceria ganhar o prêmio, que, na realidade, acaba sendo uma premiação pelo bom comportamento no jogo.

Outra questão permanece: Juliette. Embora milhões de brasileiros a adorem, dentro da casa não era a mais querida dos participantes e não era vista como favorita a vencer o prêmio, ou sequer chegar à final. Seria isso demonstração de inveja, xenofobia ou cegueira dos demais integrantes? No ranking dos mais queridos pelos próprios jogadores do reality, ela está em último lugar. Alguns internautas chegaram a comentar em posts: “Deve ser difícil conviver com ela”. Será? Apesar de engraçada, é muito tagarela, comete “sincericídios” e fala muito de si, o que lhe rendeu o apelido de “euliette”, termo divulgado “por acidente” pelo Twitter do ex-BBB20 Babu Santana (ator que interpretou Tim Maia na cinebiografia do cantor, em 2014).

Um dos motivos sobre o porquê de seu Instagram ter disparado em relação aos demais participantes da edição 21 é porque a equipe de administradores fez diversas compilações com seus melhores momentos, os mais cômicos. “Isso a Globo não mostra” era um comentário recorrente. Boninho, que até há pouco tempo não a seguia, chegou a proibir postagens com conteúdo do BBB. Os administradores dos IGs dos participantes informaram à imprensa que retiraram o material seguindo ordens superiores. Mas que a direção havia voltado atrás. A equipe dela, talvez com receio de problemas com direitos autorais de transmissão e de ser “derrubada” pelo Instagram, diminuiu a reprodução de imagens do programa. Isso contribui com a opinião de muitos internautas, de que Boninho não gostaria de vê-la campeã do reality.

Talvez seja uma teoria conspiratória minha, mas uma influenciadora nata, inteligente e articulada como Juliette Freire, que, em 2018 estava fazendo campanha de vira-voto para Fernando Haddad, pode se tornar uma presença de peso e “perigosa” nas redes sociais. Por possuir uma enorme capacidade de influenciar a opinião pública, se ela, ao sair da casa, passar a postar posicionamentos sobre questões atuais e políticas, como fez e faz o youtuber Felipe Neto, pode se transformar numa influencer talvez até mais forte que o carioca, pois teria apelo nas camadas sociais mais populosas, especialmente no Nordeste. O ano de 2022 está chegando. E o candidato que o pai de Boninho sabotou está no páreo novamente.

Os paredões desse BBB21 comprovaram que quem fez cara feia pra ela ou atrapalhou sua trajetória nessa edição, saiu. Apenas Gil, Fiuk e Arthur sobreviveram, porque ela os perdoou. De qualquer forma, o BBB permanece sendo tão editado quanto a vida do lado de fora, confirmando a teoria de Millôr. Talvez o que falte para Bolsonaro cair no paredão do impeachment seja falar mal de Juliette, ou que seus eleitores estejam apenas abertos a dar uma mínima espiada no que acontece na Casa de Vidro, sem filtros ou edições do WhatsApp, que são muito piores do que qualquer manipulação já feita por Boni ou Boninho.

 

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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