Mirante

Álcool gel na dor alheia

TEXTO Débora Nascimento

24 de Março de 2020

"Não somos heróis, somos profissionais e, acima de tudo, pessoas", diz a legenda da imagem no Instagram do enfermeiro e fotógrafo

Foto Paolo Miranda

No sábado passado, encaminhei um vídeo no WhatsApp. Era uma reportagem da Sky News feita em uma emergência da Itália. A matéria mostrava os médicos correndo de um lado para o outro, tentando dar conta de muitos pacientes com insuficiência respiratória, a maior parte deles idosos. O repórter falou sobre a enorme quantidade de doentes que chegava ininterruptamente e a dificuldade que os profissionais de saúde italianos estão enfrentando para vencer seus maiores desafios cotidianos: o cansaço e a tristeza. Pois centenas de pessoas no país estão morrendo diariamente das complicações do novo coronavírus, chegando ao número de 6 mil mortos em um mês.

Um momento que se sobressai na reportagem é quando o jornalista informa que os médicos e enfermeiros pediram que o vídeo fosse exibido em vários países, para que as pessoas soubessem o que estava realmente acontecendo na Itália e se prevenissem. Vi esse vídeo primeiramente na Globo News, no dia 20 (sexta-feira), quando, ao final da exibição, uma especialista brasileira disse que não tinha a menor dúvida de que o Brasil passaria pela mesma situação assustadora da Itália. A previsão é de que o caos comece a se instalar na saúde privada e pública a partir de abril, quando crescerá o número de infectados com complicações respiratórias.

Diante desse cenário futuro sombrio, resolvi enviar o vídeo para alguns contatos, atendendo ao pedido dos profissionais de saúde italianos. Mas questionei antes a um dos meus contatos sobre encaminhar também para duas pessoas específicas que estão no grupo de risco. Meu receio era o de que as imagens as deprimissem e/ou provocassem ansiedade. Ele concordou e achou melhor que não fosse enviado. Depois fiquei pensando sobre isso: o enfrentamento parcial da realidade. Tenho lido alguns relatos de pessoas que já estão evitando o noticiário e não querem mais ver esse tipo de conteúdo.

Isso me fez lembrar de um documentário que vi há cinco anos, Fugindo do Estado Islâmico. Em 2014, o grupo terrorista invadiu o norte do Iraque e massacrou a população Yazidi. Mataram cinco mil homens, entre idosos, jovens e meninos, e raptaram 7 mil mulheres e meninas. A intenção era transformá-las em escravas sexuais. Nesse comércio de gente realizado por esses bandidos, as loiras, de olhos azuis, verdes, virgens, meninas, eram vendidas por um valor maior. Narrado pela atriz Samantha Morton, o filme conta o terror sofrido por essas vítimas. O filme foi feito a partir dos depoimentos das que conseguiram ser resgatadas ou “compradas” de volta por seus parentes sobreviventes do massacre na terra natal.

Assistir a esse filme foi angustiante pra mim. Muito triste ver o sofrimento daquelas mulheres. Em certo momento, uma das resgatadas tem um ataque de pânico já em casa, lembrando das coisas que passou e testemunhou. Durante a cena, meu coração acelerava. Comecei também a sentir que estava com a respiração pesada, pensei em desistir de ver o resto. Mas refleti: se aquelas mulheres passaram por todo aquele horror, eu, no conforto de meu lar, teria que encontrar fôlego para ver o vídeo até o fim. E vi. Depois, fiz uma pesquisa na hashtag #SaveYazidiWomen para saber sobre a situação atual delas, afinal o filme tinha sido feito meses antes, e descobri o seguinte: mesmo com relatos terríveis, as piores histórias não foram narradas.

Em um post num Instagram, descobri dois acontecimentos inacreditáveis de tão cruéis. E me arrependi de saber da existência. Passei um mês com esses horrores na minha cabeça, que me lembraram da leitura de uma reportagem sobre a violência contra as mulheres na guerra da Bósnia, na década de 1990. Até hoje, não esqueço de um episódio específico de extrema crueldade e também do olhar das mulheres, vítimas, olhando para a câmera com uma profunda tristeza estampada nos olhos. Depois que o sentimento de pena e raiva passou em mim, ficou a necessária informação e a certeza de que precisamos vencer o medo de ficarmos desolados por saber da dor do outro.

Por conta do documentário sobre as mulheres yazidis, fui procurar saber o que as autoridades estavam fazendo com relação a isso. E descobri um vídeo de Angelina Jolie, em que a então embaixadora da Unicef fez um discurso no Conselho de Segurança da ONU cobrando uma resposta dos países com relação a essa situação e a dos refugiados sírios. Sua fala transcendeu qualquer noticiário. Suas palavras foram mais enfáticas, pois ela havia viajado a alguns países e conversado pessoalmente com vítimas desses conflitos.

Tudo isso me fez pensar que a maioria dos relatos jornalísticos de casos de violência e de sofrimentos por diversos tipos de tragédias decide ir até um certo ponto em que o público suporte a informação. Mais um exemplo é o documentário The cave, um dos indicados ao Oscar deste ano, e que registra os bastidores de um hospital num subterrâneo na Síria. O diretor Feras Fayyad, em entrevista à Folha de São Paulo, em fevereiro, revelou que cortou as cenas mais fortes. Poupar o espectador/leitor de detalhes atrozes seria uma estratégia para não afugentá-lo. Isso acontece muito no cinema. Em incontáveis filmes, quando os personagens perdem seus entes queridos, a interpretação faz parecer que os personagens esqueceram o celular no metrô. Baixam a cabeça, franzem a testa. Cai uma lágrima ou outra. Quase ninguém dá escândalo, berra, se joga no chão, desmaia, arranca os cabelos.

Num trecho do Roman Polanski: Uma memória cinematográfica (2011), o cineasta recorda que, uma vez, o pai chorou bastante na frente dele e então explicou. Chorava por conta de uma música que tocava em um hotel, onde estavam hospedados. Era a mesma música que tocou em um dia, no campo de concentração onde esteve prisioneiro, quando os nazistas levaram as crianças. Apenas o pai de Polanski e um outro ficaram de pé, porque seus filhos não estavam ali. Centenas caíram no chão, gritando, arrancando os cabelos, o mato. Mas não lembro de ter visto essa cena em O pianista (2002). Até nos filmes sobre o Holocausto, as cenas costumam ser assépticas, bem enquadradas. O sofrimento, no cinema, costuma não ter coriza. Segundo Nelson Rodrigues, “a grande dor não se assoa”.

Mas qual a importância de ver, ouvir e saber da cruel realidade do mundo? Acho que a resposta seria: é a única forma de termos a real dimensão do sofrimento do outro, para não repetirmos os erros históricos, melhorarmos como seres humanos e transformarmos o mundo. Em 1955, Emmett Louis Till, um garoto negro de 13 anos, da relativamente dessegregada Chicago, assobiou para uma mulher branca durante uma viagem ao Mississipi. A “insultada” contou para o marido, que reuniu outros dois homens e mataram o jovem numa surra covarde. A mãe, ao ver o corpo do filho, foi orientada a fechar o caixão durante o velório, mas decidiu que todos ali veriam o que ela foi obrigada a ver: o rosto dele desfigurado. Cada pessoa que passava chocava-se, chorava, indignava-se. Esse gesto corajoso e doloroso daquela mãe foi um marco importante para o movimento de luta pela igualdade de direitos civis dos negros. Por isso, mais narrações de histórias de injustiça, crueldade e descaso deveriam ser divulgadas para não permitir que as vítimas virem somente um número, sem foto, sem nome, sem história. E é o que deveria acontecer com a cobertura do novo coronavírus.

No que se refere à pandemia, o Brasil demorou a ter noção da gravidade, porque, em dezembro e janeiro, parecia algo distante, um problema “lá” dos chineses, um vírus, feito o da SARS em 2002, mas que iria se resolver por “lá”. Depois, o novo coronavírus se transformou em um problema dos italianos, então passou a ganhar mais destaque no noticiário. O Brasil ainda estava distanciado do problema do outro, porque achava que ele não iria afetá-lo. Mas o furacão estava se aproximando. E a hora de desviar a rota já era tarde. Numa imensa coincidência (?), o primeiro caso confirmado no país só foi divulgado na Quarta-feira de Cinzas (26 de fevereiro).

Ao ignorar o perigo do vírus, o governo federal não promoveu ações preventivas, como vigilância rigorosa dos aeroportos. Turistas chegaram da Itália e trouxeram “na bagagem” o vírus. Um casal de italianos chegou ao ponto de voltar ao Recife e levar o filho para a escola. A criança apareceu com sintomas de gripe. Por sorte, não era coronavírus. Mas poderia ter sido. O restante dos pais da escola ficaram em pânico. Se os outros passageiros, que vieram da Itália e trouxeram o vírus para cá, carregassem drogas na mala, seriam menos letais. E a “vigilância” teria sido mais cuidadosa.

Mais uma vez o país errou, ao levar em consideração como casos suspeitos somente aqueles que apresentavam sintomas, que tinham voltado de viagem ou que tiveram contato com alguém que viajou para os lugares afetados. Se as autoridades tivessem prestado mais atenção ao que acontecia nesses outros países, saberiam que esse protocolo dataria em menos de 24 horas. O novo coronavírus, como aprendemos, é extremamente contagioso e traiçoeiro, pois os sintomas podem parecer um resfriado, uma gripe ou mesmo não haver sintomas, e esses portadores passam a transmitir a pessoas do grupo de risco (idosos, cardíacos, diabéticos, asmáticos, fumantes, indivíduos com pressão alta e histórico de tuberculose).

Neste momento, o Brasil começa a pagar o preço por não ter buscado mais informação antes ou mesmo agora. Especialistas já começam a prever uma calamidade, principalmente nas áreas mais pobres, como favelas, onde os moradores não têm água encanada, uma boa nutrição, álcool gel e a simples possibilidade de fazer um confinamento, pois dividem habitações minúsculas com diversos parentes. O país pagará o preço pela desigualdade social, outra prova gritante de sua falta de empatia. Mais um exemplo dela é o comportamento de parte do empresariado brasileiro, que vem considerando a quarentena não como um dever cívico, mas como um prêmio, um favor aos empregados. Não é à toa que o bolsonarista Junior Dunski, dono do restaurante Madero, não teve o menor pudor ao afirmar, em vídeo, que o país não deveria parar por conta de "5 ou 7 mil pessoas que vão morrer". Pagaremos o preço pela falta de empatia de 54 milhões que, assim como ele, ignorando as demandas de indígenas, LGBTs, negros, sem-teto, ambientalistas, universitários, pesquisadores, elegeram esse presidente, representante-mor da insensibilidade.

Uma prova é ter destinado apenas 3% do novo orçamento do Bolsa Família ao Nordeste, como uma retaliação, por ter perdido a eleição na região, em 2018. Como descendente de italianos, ele ignora e agride o sofrimento daqueles da origem de sua família, ao chamar o COVID-19 de “gripezinha”. Até hoje, morreram mais de 6 mil pessoas naquele país. Nesta semana, para tentar melhorar a sua péssima imagem internacional, enviou à Itália 2,4 milhões de máscaras e respiradores. Mas, no Brasil, não pratica a mesma solidariedade. Ao voltar dos EUA, onde sua comitiva retornou com 23 integrantes infectados, convocou manifestações nas ruas em seu favor e apertou a mão de eleitores, mesmo sabendo que ele poderia ser um transmissor e que deveria estar em quarentena, como estão todos os brasileiros conscientes (e que podem estar em casa). A pandemia só está começando por aqui, mas promete expor todas as mazelas do país. E uma delas é passar álcool gel na dor alheia. Para não se contaminar. 

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

 

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