Mirante

A regra é clara!

TEXTO Débora Nascimento

03 de Julho de 2018

Futebol feminino na França, em 1923

Futebol feminino na França, em 1923

FOTO Reprodução

Uma simpática russa está na rua do seu país, quando é abordada por entusiasmados torcedores brasileiros. Eles a cercam. E a estimulam a dizer a expressão que repetem sorridentes. No vídeo, ela tenta pronunciar as palavras. Sorri como quem não entende as palavras da língua estrangeira. Por trás da brincadeira aparentemente inofensiva, eles se referiam à imaginada cor de seu órgão genital. Festejam como se tivessem encontrado um pote de ouro, numa demonstração de misoginia e racismo. Algumas horas depois, o vídeo que registra esse episódio vaza para o mundo.

Com a repercussão, esses torcedores puseram a culpa no álibi preferido de muitos machistas, a bebida. Um deles ousou afirmar a um jornal que a moça sabia do conteúdo, embora o semblante dela no vídeo comprove o contrário. Com seu rosto divulgado na internet, a mulher teve seus perfis na internet invadidos por compatriotas que, em vez de prestar solidariedade, a responsabilizaram por ter sido vítima da pegadinha maldosa – algo recorrente às vítimas de assédio ou violência sexual. Em poucos minutos, esses “pais de família” brasileiros transformaram em um inferno a vida dessa mulher que já vive numa Rússia marcada pelo machismo e pela homofobia. Acuada, ela saiu das redes sociais.

Se, por um lado, o vídeo provocou ultraje por mostrar a baixeza de um grupo de homens endinheirados se aproveitando da ingenuidade e da boa vontade de uma mulher, por outro, o registro acabou contribuindo para quebrar os tradicionais argumentos daqueles que nunca apoiam as vítimas dos crimes sexuais: “Ela vestia roupa curta em lugar e horário inapropriados”. A russa estava numa rua movimentada, trajava um comportado blazer e demonstrava estar sóbria. Parecia, na realidade, que havia saído de um expediente num escritório.

O episódio, que não foi isolado, apenas escancarou o machismo que ronda a sociedade brasileira e, especificamente, o futebol desde a sua popularização como um esporte de homens para homens. Escancarou porque era gritante. No entanto, há formas mais sutis, como a narração de Luiz Carlos Jr, do SportTV. Durante a partida entre Irã e Espanha, no dia 20 de junho, disse, como se fosse uma atração à parte: “Daqui a pouco, vamos mostrar pra você algumas mulheres bonitas e produzidas que estão na arquibancada”. Um grupo de iranianas tivera ali a oportunidade de ver, pela primeira vez, um jogo de futebol num estádio.

Não à toa o machismo está presente nas propagandas de cerveja nos estádios e bares, estampando mulheres como objetos sexuais, aparecendo como produtos e não como torcedoras. Para muitos ainda é difícil aceitar que há mulheres que realmente gostam de futebol. Para esses, as que vão ao campo são Marias Chuteiras.

A cultura futebolística como um campo masculino é alimentada logo cedo. Enquanto os meninos são presenteados com bolas, as meninas ganham apenas bonecas. As aulas de futsal são estimuladas para os garotos. As raras professoras da modalidade sofrem preconceito. Há pais, inclusive, que desistem de matricular seus filhos quando sabem que serão ensinados por uma mulher.

Na vitória do Brasil sobre o México, no último dia 2 de julho, o treinador da equipe perdedora Juan Carlos Osorio, ao criticar Neymar, soltou uma frase que representa bem o pensamento de muitos torcedores, jogadores, técnicos e dirigentes: “Este era para ser um esporte forte, um esporte de homens”.

Mesmo com o sucesso de Marta, que, em 2015, superou Pelé em gols com a camisa da Seleção Brasileira, o futebol feminino ainda está distante de receber o mesmo incentivo que o masculino, o que impacta diretamente na formação e no profissionalismo. Se Pelé foi importante para romper com o preconceito racial dentro dos times, Marta vem sendo uma referência para uma possível revolução dentro do esporte. Mas que anda a passos lentos. Porque, assim como em outras áreas, o futebol foi um ambiente onde as mulheres chegaram bem depois dos homens, por força da própria sociedade machista. Durante muito tempo, foram, inclusive, proibidas de praticá-lo.

Um decreto de 1941, assinado por Getúlio Vargas assinalava: “Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país.” A revogação só aconteceu em 1979, a regulamentação da modalidade em 1983 e a primeira Copa do Mundo de Futebol Feminino em 1991.

Os jogos não recebem atenção da mídia, o que interfere no interesse do público, dos anunciantes e patrocinadores. A diferença de tratamento é espantosa: o campeão masculino do Campeonato Brasileiro de Futebol, em 2017, recebeu R$ 18 milhões, e o feminino apenas R$ 120 mil. Lembrando que a coordenação de futebol feminino da Confederação Brasileira de Futebol está a cargo de um... homem, Marco Aurélio Cunha.

O sexismo no futebol brasileiro não atinge apenas as jogadoras, mas também fisioterapeutas, repórteres esportivas, árbitras. Em abril de 2016, durante um jogo numa pequena cidade do Rio Grande do Sul, um dirigente de um dos times estava bastante exaltado e reclamando com o trio de arbitragem, formado por três homens. No começo do segundo tempo, ele acabou sendo expulso de campo. Quando passava pela quarta árbitra da partida, Andressa Hartmann, então com 23 anos, vociferou: “Foi tu que mandou ele me expulsar, sua cadela!” Alterado, foi contido por um outro árbitro. Em julho de 2017, a juíza de futebol ganhou o processo judicial por danos morais. A propósito, cadê as árbitras na Copa do Mundo?

O pior é que não dá para alegar que apenas o futebol é marcado fortemente pela presença masculina. Em diversas outras áreas, ainda é difícil à mulher impor o seu talento. Há preconceito contra médicas, cabeleireiras, cineastas... Já os homens, quando ocupam o campo em que antes era majoritariamente feminino, como a cozinha e a costura, ganham um status melhor, são chamados de chefs e estilistas.

Para tentar aplacar o machismo no futebol, a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol), CBF e Fifa estabeleceram uma nova regulamentação, exigindo que os times participantes da Libertadores e Copa Sul-Americana mantenham equipes femininas. Na Argentina, cuja Câmara dos Deputados aprovou, no dia 14 de junho, a descriminalização do aborto, times como o Boca Juniors, River Plate, San Lorenzo e Estudiantes têm times de mulheres. No Uruguai, com Peñarol e Nacional, e Colômbia, com o Atlético Medellín.

No Brasil, dos 20 clubes da Série A do Campeonato Brasileiro apenas oito estão de acordo com essa nova regra, que entra em vigor em 2019: América-MG, Flamengo, Grêmio, Internacional, Santos, Sport, Vitória e Corinthians. Este último, pioneiro com a Democracia Corinthiana, conta com o Movimento Toda Poderosa Corinthiana. O coletivo feminino defende a igualdade de gênero no futebol e na sociedade. Em São Paulo, há ainda o grupo com integrantes de várias torcidas, Mulheres de Arquibancada – Resistência e Empoderamento. No Recife, o Movimento Coralinas, das Torcedoras do Santa Cruz, defende o direito de torcer e de não serem xingadas por isso.

Algumas vezes é difícil enxergar e apontar atitudes machistas de homens e mulheres. Porque podem residir nas sutilezas. Mas basta dar uma passeio pelas áreas de comentários de notícias sobre os relatos de episódios machistas e misóginos no futebol para saber que ainda há um longo caminho a percorrer para uma igualdade de direitos entre os gêneros. Muitos não compreendem que um discurso pode fortalecer uma ação. Muitos não conseguem realmente discernir um elogio de um assédio. Mas, se eles entendem mesmo de futebol, talvez entendam essa: se você tiver avançado na área da mulher e ela não te der bola, você está impedido.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

 

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