Desenho de José Cláudio, 2023
Imagem José Cláudio
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Menininha de uns três anos, gordinha, vestida de baiana, correndo pra lá e pra cá, esbarrando nas pernas dos adultos, nas minhas, eu sem compreender. Alguém, vendo meu embaraço, falou alto para que eu ouvisse: “Carnevale”! Era bem no centro de Roma, numa galeriazinha que nos abrigava do sol ou da chuva enquanto esperávamos ônibus na Piazza Colonna (praça coluna), porque tinha uma coluna em cuja superfície subia ao redor em espiral, em baixo-relevo, a história de um imperador (Marco Aurélio?), ou do Império Romano, não lembro mais. Roma, 1958. Não sou bom de datas, mas essa é fácil de lembrar porque da minha primeira viagem ao exterior, à Itália: fiz duas àquele país; a segunda, 20 anos depois, casado.
Não fosse aquela italianinha de vestido amarelo, cheia de bijuterias, jamais me lembraria ter passado um Carnaval em Roma. Não houve outro vestígio. Veneza, sim, tem Carnaval famoso. Estive na cidade várias vezes, nenhuma em época de Carnaval. Aliás, o termo em português, vi no Aurélio, vem do italiano carnevale.
Na Bahia, quando eu estava por lá, não havia Carnaval. Falava-se, não sei qual dia, no desfile de cavaleiros. Na Av. Sete e Rua Chile, as famílias botavam cadeiras nas calçadas. Esperei até meia-noite, não passou nada. Falava-se, isso sim, no Clube Vassourinhas que fizera uma apresentação em Salvador. Foi tanta gente que a orquestra ficou metade na cidade baixa e metade na cidade alta. Esse foi o embrião do atual Carnaval de Salvador, que começou com frevo num trio elétrico. Trio elétrico, diga-se, que já existia aqui no Recife, chamado de “o carro da Coca-Cola”.
São Paulo também não. Estou falando da década de 1950. Pelo menos que saísse na rua. Costumavam aproveitar prédios em construção para fazer bailes a preços módicos, tocando disco. Ouvia falar de escolas de samba, mas não de desfile.
E nisso se resume meu currículo carnavalesco extra Pernambuco.
Mas teve o rádio que entrou pelo meio. E a loja, que já existia desde que nasci. Dois elementos de mudança. E mais outro: o exílio, em 1943, para estudar no Colégio Marista, interno, no Recife.
Enquanto escrevo (15h, sábado, 11/fev/2023), a televisão diz que 170 blocos ocuparão as ruas de São Paulo.
Onde nasci e me criei, Ipojuca (PE), tudo de festa acontecia primeiro na loja do meu pai, Amaro Joaquim da Silva. No São João, por exemplo, eram os fogos, as pistolas, de vários tiros, peido-de-véia, estrelinha, vulcão, traque de massa ou de sala, buscapé, diabinho, os nomes mudam em cada lugar, bomba, também chamada bomba-cordão, ou bomba de pavio, bomba “istravaliana” (transvaliana), que foi proibida, e outros fogos que a cada ano iam inventando.
O mesmo pelo Carnaval. Chegavam enormes sacos de confete e serpentina. Mas a grande expectativa eram as lança-perfumes, de vidro ou de metal. Se você quisesse chamar atenção de uma moça, lançava-lhe um jato de lança-perfume. Os homens molhavam a ombreira do paletó para as moças, ao dançar, tomarem porre.
Os primeiros rádios de Ipojuca foram de meu pai e Seu Virgílio, amigos de longa data. Meu pai botou uma loja e Seu Virgílio, um hotel. Isso na parte de baixo da cidade. Lá para cima, quem sabe, possuíam rádio, Seu Barreto, o coletor Seu Zezinho Wanderley e os frades, todos alemães, do convento. Durante a Segunda Guerra, inventaram que esses frades se comunicavam com os submarinos nazistas.
Por falar nisso, a Segunda Guerra, em Ipojuca, durou menos de um dia. Passou na frente da loja, aí pelo meio da tarde, quando o sol esfriou, o pessoal da orquestra do Maestro José Marinho com uma faixa, de um lado a outro da rua, onde se lia: “VIVA O BRASIL MORRA O EIXO”. De armas, apenas os dois paus que sustentavam a faixa. Como Ipojuca só tinha praticamente uma rua, a passeata continuou ladeira acima até o pátio do convento. Com a algazarra, Frei Euzébio botou a cabeça de fora, mandou todo mundo para casa e a guerra acabou.
Em Sirinhaém, avistaram submarinos na Ilha de Santo Aleixo. Um estudante de Direito, que eu até conheci, me contou. Ele dava plantão substituindo a telegrafista de noite e lhe coube avisar ao Recife a ocorrência. Logo ouviram-se roncos de aviões. Nada além disso.
O fato é que, com a vinda do rádio, a música se popularizou. O de lá de casa era de bateria. Papai, quando ia ao Recife fazer compras e pagamentos, às quintas-feiras, levava uma bateria dessas de carro, pesadíssimas, para carregar. Eram duas, uma ficava no rádio e outra vinha carregar e só voltava na quinta-feira seguinte. Papai só ligava o rádio ao meio-dia para ouvir o noticiário e, principalmente, a crônica de Waldemar de Oliveira, em casa, na hora do almoço. A loja era pegada com a casa, mas em casas separadas. Sempre dava para ouvir algum programa de música. A cantora preferida de mamãe era Maria Celeste. Eu a acompanhava o gosto.
Antes do Carnaval, a PRA-8 lançava os destaques do Rio de Janeiro, sambas e marchinhas, e daqui, frevo principalmente. Devia haver o incremento das fábricas de disco. Na minha casa nunca teve vitrola. Em Pernambuco, não havia fábrica de disco. Meu pai detestava tudo o que não fosse o trabalho. A Rozenblit veio muito tempo depois. No Colégio Marista, de música, somente o orfeão dos internos que cantava nas missas diárias, e a serafina tocada uma época pelo Irmão Basílio, português, professor de Português. De modo que, Carnaval, só conheci mesmo o de Ipojuca. O clube de frevo do Maestro José Marinho, a Lira Ipojucana, de cores verde e branco, o maracatu de Eugênio, que era marceneiro, o Zé Pereira na noite de sábado, o pastoril dos homens, que entrava no salão da loja pedindo dinheiro, e alguma la ursa. Eu não saía na rua com medo das máscaras, que andavam com uma tabica para dar na gente.
O Carnaval do Recife, comecei a encarar depois de adulto, já com a ideia de pintar. Tinha de conhecer de dentro, caindo no passo, acompanhando troça, caboclinho, maracatu, tudo o que aparecesse. E assim continuei fazendo enquanto as pernas aguentaram. Ultimamente, ainda ficava na casa em que Mané, meu filho, morava, na Henrique Dias, vendo de perto Olinda passar.
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