Matéria Corrida

Seu Gervásio

TEXTO José Cláudio

04 de Abril de 2022

Retrato de Seu Gervásio pintado pelo seu filho Wellington Virgolino. Óleo sobre tela, 81x65cm,1956

Retrato de Seu Gervásio pintado pelo seu filho Wellington Virgolino. Óleo sobre tela, 81x65cm,1956

Ilustração Reprodução

Logo quando a gente casou, ou pouco antes, fizemos uma visita a Virgolino, antigo colega do Atelier Coletivo, que a gente chamava Wellington, seu primeiro nome, e alguns, Letinho, casado com Marinete. Moravam num apartamentinho térreo no final de Boa Viagem, um lugar ainda calmo, de se botar cadeira na calçada, como cidade do interior. Na frente do apartamento, um larguinho ajardinado distanciava-nos de qualquer barulho. Nem eu mesmo acredito, tanto que não saberia localizar. Devem ter construído no lugar. Leonice, minha mulher, não lembra. Acha que era na Encruzilhada. De fato Wellington sempre morou em redor do Mercado da Encruzilhada. Fomos convidá-lo, segundo Leonice, para padrinho do nosso casamento. Convidá-los, aliás, ele e Marinete. Já lá vão mais de sessenta anos.

Logo no começo falei no Atelier Coletivo. Há poucos dias a crítica Aracy Amaral me ligou perguntando sobre um Atelier Coletivo de data posterior. É que Giuseppe Baccaro criou um segundo Atelier Coletivo em Olinda incluindo nomes do anterior, como o de Samico, Guita e o meu.

Fiquei a maior parte da tarde conversando com Seu Gervásio, pai dos artistas Wellington Virgolino e Wilton de Souza. Seu Gervásio era um homem de boa compleição. Já aposentado. A vida toda marinheiro da marinha mercante. “Taí uma profissão que eu não queria”, eu disse a ele. “Não sei nadar”. E ele: “Pois eu fui marinheiro a vida toda, me salvei e salvei muita gente porque não sabia nadar”. Foi torpedeado duas vezes durante a Segunda Guerra, e houve ainda outros episódios que não consigo lembrar.

Como não sabia nadar, seu escaler era tratado com todo cuidado. Não faltava nada. Ele estava na cozinha, como sempre fazia, tirando alguma brincadeira com o cozinheiro, ambos veteranos. Abriu o forno para ver se havia algum petisco, o cozinheiro lhe dando gritos, expulsando-o, enquanto alguma coisa que estava no forno, uma panelona de batatas, se não me engano, voou para cima dele. Havia algo errado, os objetos caindo das prateleiras, o chão se inclinando: o navio tinha sido torpedeado, estava partindo-se ao meio transversalmente. O cozinheiro ainda pegou um grande saco e saiu jogando dentro tudo que pudesse ser necessário e saíram disparados para passarem para o outro lado, da popa ou da proa, não sei, onde estavam os escalares. O comandante já estava lá. Desceram o escaler para a água. Ainda viram através das vigias o dormitório aceso e os marinheiros dormindo enquanto o navio afundava. 

Trataram de afastar o escaler. Era de noite. Chovia. O cozinheiro enfiou-se num compartimento coberto na proa. Tinha foguete. O cozinheiro lembrou-se de ter jogado no saco um pacote de fósforos. Conseguiu achá-lo mas quase todas as caixas molhadas. Algum palito que chegava acender apagava-se. Então o cozinheiro começou a arrancar o papel que forrava as paredes desse compartimento da proa e conseguiu fazer uma tocha. Seu Gervásio, equilibrado na borda do escaler, acendeu o foguete. O açoite foi tão grande que Seu Gervásio foi jogado no mar. Os marinheiros pularam n’água e o trouxeram de volta ao escaler.

Tudo resolvido. Qual nada. O dia amanheceu e assim outros dias se sucediam sem sinal de socorro. Todos os outros escalares foram achados, menos o de Gervásio. Quando finalmente encontraram o escaler, Gervásio estava desacordado. No porto de Marselha deitaram-no e enquanto lhe davam lapadas com um sarrafo, uma tira de madeira de caixote, na sola dos pés, outro lhe gritava no ouvido: “Gervásio!” E assim foi reanimado. 

Doutra feita o submarino levantou ao lado do navio. Da capota do submarino um marinheiro alemão, falando em espanhol, num porta voz, avisou que o navio ia ser afundado e todos passassem para o submarino. Assim fizeram. Ninguém chegou a ver o navio afundando. Foram levados para a África e ali deixados. Menos o comandante, que ficou com os alemães e nunca mais foi visto.

Infelizmente só fixei essas duas histórias. Outra aconteceu no Rio Grande do Norte, um balde caiu no mar, mas não lembro de mais nada. Ai que vontade de conversar com Seu Gervásio e saber do resto das histórias!

Quando o Atelier Coletivo se mudou da Rua da Soledade para a Rua Velha, onde Seu Gervásio e família moravam, Wellington, que trabalhava na Mala Real Inglesa, costumava passar a noite pintando. Não sei como aguentava. Eu também, quando trabalhava na Sudene, fazia isso. Uma vez ou outra quando morava em Rio Doce. Wellington fumava muito. Acho que foi isso que o matou. A primeira providência, ao chegar ao atelier, era acender um barbante que queimava a noite toda, pendurado num prego na parede, com medo de faltar fósforo. Quando ele baixou ao hospital, eu e Samico fomos visitá-lo. Sua filha, que nos recebeu, disse que não podia receber visitas. Dias depois, morreu. Essa morte nos pegou de surpresa. Até então pensávamos que éramos imortais. Como todos nós até a chegada da maldita.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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