Matéria Corrida

Quadro tirado de um sonho

TEXTO José Cláudio

08 de Junho de 2022

'Quadro tirado de um sonho'. José Cláudio. 1967-1968, 122 x 275 cm

'Quadro tirado de um sonho'. José Cláudio. 1967-1968, 122 x 275 cm

Imagem Reprodução

Num dos meus recomeços, sonhei a vista que fixei neste quadro. Nunca fui propenso a arte onírica e nem sei se ainda pensava em pintar àquela altura, depois de tantos anos sem pegar no pincel. Quando deixei de estudar, largando a Faculdade de Direito do Recife aí pelo ano 1951 e troquei o estudo pelos quadros no Atelier Coletivo, leia-se Abelardo da Hora, um belo dia resolvi dar uma volta no mundo para ver de perto o que se fazia lá fora. A convite de Raimundo Oliveira, me ofereci para calunga de caminhão e assim cheguei a Feira de Santana. De lá, Raimundo me levou a Salvador, onde ocorria um surto de murais. Fiquei trabalhando na preparação de uma parede de 22m de largura e uns 10m de altura, para Mário Cravo, no Centro Carneiro Ribeiro. Depois, ajudante de Carybé numa pintura do mesmo tamanho na extremidade oposta do prédio. Trabalhei ainda com Jenner Augusto e continuei com Carybé. Numa ocasião em que estava tomando conta da casa de Carybé, que a esposa de Carybé, Dna. Nancy, tinha ido para a Argentina de onde ela era, e Carybé para São Paulo, chegou Arnaldo Pedroso d’Horta e família, esposa Dna. Rachel e os filhos Luís e Vera. Na despedida Arnaldo disse: “Caso vá a São Paulo me procure”. Assim fiz, com Carybé. Minha primeira viagem aérea. Jânio Quadros estendeu a 2ª Bienal para participar dos festejos do 4º Centenário. Eu fui ficando, hospedado no Km 33 da Sorocabana, na casa do meu tio Manoel, daí o nome do meu filho. Na Bienal seguinte tirei um prêmio e fiquei melhor conhecido. Fiz exposições de desenhos no clubinho, vendi tudo, tirei o Prêmio Leirner da melhor exposição do ano, junto com Fernando Lemos. Ganhei bolsa da Fundação Rotelini, passei um ano em Roma escapando pelo resto da Europa. Em Louvain, Mme. Morrin, que gostava de pintura, dona de uma casa que hospedava estudantes, me deu um pacote de dinheiro e pude conhecer melhor a Bélgica, onde estava havendo a Expo58, com a maior exposição de Bosh, 50 Anos de Pintura Belga, 50 Anos de Pintura Moderna, Retrospectiva de Salvador Dalí. Fui à Holanda, à Alemanha, à Áustria, Suíça, voltei a Paris, onde Sérvulo Esmeraldo arranjara para tomar conta de casas de brasileiros, Espanha e Portugal. Já se vê que não tinha condições de pintar. 

Quando voltei ao Recife, era só desenhista. Aí, alguns anos depois, casado, morando em Olinda, trabalhando de ajudante de desenhista na Sudene, me veio este sonho. Todos esses anos durou a influência de Carybé e Arnaldo Pedroso d’Horta, extraordinários desenhistas, ainda estudei com o gravador Lívio Abramo, além de desenho ter grande prestígio no Brasil nessa época. 

Essa lengalenga toda nada mais do que para dar ideia da impossibilidade de pintar, a começar por um lugar para deixar cavalete, telas ou prepará-las, os mil apetrechos, tintas, espátulas, terebentina, sei mais o que, mas deixemos, para não virar nova lengalenga. 

Eis senão quando me veio, morando na Rua do Bonfim, em Olinda, lugar meu pois, embora alugado, tive esse sonho. Deslumbrado, fui logo preparando tela, ambiciosamente: a maior tela que me metera a pintar, o maior tamanho de eucatex que encontrei. 

Dei-lhe umas três ou quatro demãos de preparação e mandei brasa, pintando sem parar as poucas horas de que dispunha: no quadro tem duas datas, mas, na minha cabeça, não me lembro de tempo nenhum. Diria que foi imediatamente, de uma sentada, como se pintando do natural. Sem me lembrar de pintor nenhum. De quadro nenhum. Não me pergunte, que não sei, o que é, o que significa. 

Daquele dia em diante não parei de pintar. E quadros que nenhuma ligação têm com este. Nem me preocupa, mesmo sendo o autor, qual o enredo da história, se é que há alguma. Mesmo ficcional, como na maioria dos casos. 

Há uma pintura de Tiziano que sempre me leva a esse tipo de interrogação: A Vênus de Urbino. O quadro é dividido ao meio por uma linha vertical, formando, do lado direito de quem vai, como explicava sempre a avó de Paulo Vanzolini, um novo quadro, com vida própria, mais complexo até do que o da cena principal, da Vênus deitada. Nesse segundo quadro, uma figura feminina, ajoelhada, vestida com aquele vestido da época que ia até o chão, olha para dentro de um baú, enquanto outra mulher em trajes nobres a observa, com um braço estendido à tampa do baú entreaberto, cena que faz com que nos perguntemos sobre o conteúdo desse baú. Que segredo une essas três mulheres; uma nua, a Vênus, e as duas outras olhando o baú. Talvez somente pegando roupas, mas seria explicação muito prosaica. Ia escrever: “Freud explica”. Mas talvez nem precise de Freud. Apenas alguém mais bem informado. Também no meu quadro existe a desproporção entre as mulheres e as torres da igreja. 

É melhor deixar mesmo para Freud.

A Vênus de Urbino. Tiziano. 1538, 119 x 165 cm. Imagem: Reprodução

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