Matéria Corrida

Pensando já morto

TEXTO José Cláudio

08 de Abril de 2019

Pintura lúdica. Japão, século XVII

Pintura lúdica. Japão, século XVII

Imagem Reprodução

O escritor cubano Cabrera Infante (Três tristes tigres, Havana para um infante defunto), brigado com Fidel e morando em Londres, disse que para ele o difícil era descobrir o título, passando até dois anos para encontrá-lo: depois disso, o livro saía fácil. Bem: o título desta croniqueta já encontrei, tirado do romance Chuva branca, do amazonense Paulo Jacob: “Mas eu aqui, pensando já morto, capaz de errar” (Paulo Herban Maciel Jacob, Gráfica Record Editora, 1968, p. 163).

É que, depois de altas lucubrações filosóficas, cheguei à conclusão de que devemos viver como se já tivéssemos morrido há muito tempo. Há séculos. Porque aí, todas as pendências teriam caído no esquecimento. Ou sido prescritas. Ou desconhecimento absoluto. Como naquele poema de Manuel Bandeira em que ao se deparar com um nome numa lápide se perguntasse: “Quem foi?”

Só na velhice, na minha decantada velhice, a que me refiro em todo artigo, quem sabe em busca de condescendência, só na velhice, quando as pernas começam a fraquejar, tais pensamentos estapafúrdios vêm à tona, como se a mente estivesse mais ligada aos membros inferiores do que ao cérebro. Assim como, no tempo de Santo Agostinho, a origem da atividade sexual era atribuída aos rins, por que não poderia a atividade mental nascer da batata da perna?

Quando ginasiano, no Colégio Marista, os irmãos maristas nos aconselhavam a ler a Imitação de Cristo (Venerável Tomás de Kempis, Kempen, diocese de Colônia, Alemanha, 1380- Zwolle, Holanda, 1471), livro que ficou por aí embolando durante décadas até que peguei para ler e virou livro de cabeceira, sem nada de leitura religiosa, apesar da minha queda pela patrística e biografias de santos. Só um cacoete. Mas lembro que, ainda interno no Marista, aí pelos 14 anos de idade, pedi ao Irmão Eugênio explicar melhor a frase “Sempre que estive entre os homens, menos homem voltei” (Sêneca, Epist. 7, Imitação, Livro I, 20). O Irmão Eugênio pacientemente me atendeu: “Você vai a uma reunião social, cumprimenta uma pessoa de que não gosta dizendo ‘Muito prazer’, e assim vai-se habituando a ser hipócrita”. Deu outros exemplos. Mas o próprio parágrafo do Imitação de Cristo onde consta essa citação de Sêneca recomenda “que se afaste da turba, com Jesus”.

Acho que a minha ideia genial de que devemos viver como se tivéssemos morrido há muito tempo vem muito desse trecho, Livro I, 11: “Se estivéssemos perfeitamente mortos a nós mesmos e interiormente desimpedidos, poderíamos criar gosto pelas coisas divinas e algo experimentar das doçuras da celeste contemplação. O que principalmente e mais nos impede é o não estarmos ainda livres das nossas paixões e concupiscências, nem nos esforçarmos por trilhar o caminho perfeito dos santos”. O básico pois, condição primeira, é estarmos “perfeitamente mortos”. “Mui depressa chegará teu fim neste mundo” (Livro I, 23). “Mais depressa do que pensas te esquecerão os homens” (idem).

Com frequência vemos referências à irrealidade do mundo. “A vida é ilusão.” “A vida é sonho.” No cap. III do Buda diz Jorge Luís Borges: “O monge chinês Hsuang Tsang visitou suas ruinas [da cidade de Kapilavastu] em princípios do século VII e, ao regressar, introduziu no Celeste Império o idealismo ou a negação da realidade do mundo externo”. E no cap. IX, O budismo na China: “Quando no ano 526 o patriarca Bodhidharma chegou à China, o imperador jactou-se dos numerosos mosteiros que havia fundado e da quantidade crescente de monges. Bodhidharma lhe disse que tais coisas pertenciam ao mundo das aparências e que ele não havia ganhado nenhum mérito, retirando-se em seguida para meditar”. Noutra versão, o imperador é tomado de indignação ao ouvir a dura resposta do monge e chega a duvidar da identidade do indivíduo que lhe está diante, temendo terem-lhe trazido um impostor e lhe pergunta se ele era mesmo Bodhidharma, ao que este confessa não fazer a menor ideia.

Segundo Borges, cap. XI, O budismo Zen, a aniquilação do Eu é justamente uma das afinidades entre a mística cristã ou islâmica com o budismo, e enumera: a) o desdém pelos esquemas racionais, que são meros meios; ninguém supõe que os muitos volumes da Suma Teológica equivalham em si à experiência da verdade; b) a percepção intuitiva, alheia àquela que pode proporcionar os sentidos; c) o conhecimento absoluto, que nos dá uma certeza cabal, irrefutável pelo exercício da lógica; quem o possui, pode prescindir de premissas e de conclusões. Uma vez dono da verdade o místico percebe que a oposição dos contrários se integra de algum modo em uma realidade superior; portanto, também está mais além dos valores da moral corrente. Quando Santo Agostinho escreve Ama e faz o que quiseres, quis por certo dizer que o homem que chegou ao amor divino é incapaz de uma ação má. d) A aniquilação do Eu. Nossa vida passada é absorvida pelo Todo; a paz e o alívio são a recompensa imediata; e) a visão do múltiplo universo transformado em uma unidade; f) uma sensação de felicidade intensa.”

Para evitar engano devo prevenir que essa ideia de viver como se já tivesse morrido não tem nenhuma relação com suicídio, desistir de viver ou coisa que o valha. Tem relação, isto sim, com a eliminação do sofrimento. “Sofrimento não serve para nada”, já dizia Voltaire. Nem inflingido por outros nem por nós próprios não importa a quem. Usei a frase num quadro de bem vinte anos atrás exposto numa exposição do Museu de Arte do Rio, Pernambuco Experimental, se não me engano, feita por Paulo Herkenhoff e Clarissa Diniz.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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