Matéria Corrida

Parcerias

TEXTO José Cláudio

05 de Julho de 2022

Tiziano. 'A deposição', 3,51 x 3,89 m, 1553, Galeria da Academia, Veneza

Tiziano. 'A deposição', 3,51 x 3,89 m, 1553, Galeria da Academia, Veneza

Pintura Reprodução

Outro dia citei aqui um anjo pintado por Leonardo da Vinci no quadro de Verrocchio O batismo de Cristo (1,77 x 1,51 m, Galeria dos Ofícios, Florença), podendo-se observar o esfumado do anjo de Leonardo ante a nitidez da figura ao lado (Pinacoteca de los genios, 98). Era comum esse tipo de aprendizagem ou parceria, que não deixa de ser. A deposição, de Tiziano (3,51 x 3,89 m, Galeria da Academia, Veneza) foi “presumivelmente completada por Palma, o Jovem” (Pinacoteca de los genios, 20). Em Viena, no Kunsthistorisches Museum, há uma série de quadros grandes, com os respectivos estudos em tamanho menor ao lado, estes pintados por Rubens e os outros maiores copiados pelos pintores que trabalhavam no atelier de Rubens. Belos tempos. Os atelieres eram grandes oficinas. Enfim, havia diversos tipos de parcerias. E também não se dava tanta importância à originalidade dos quadros. Encomendavam-se cópias do mesmo quadro ao mesmo pintor ou a outros. Se a pessoa gostava de um quadro de Tiziano, por exemplo, encomendava o mesmo quadro a ele próprio Tiziano ou a outro que tivesse competência para realizá-lo, a um preço de iniciante, um preço mais em conta, é de supor. Tenho várias fotos do mesmo quadro pintado por Tiziano. É uma mulher nua deitada e um rapaz tocando órgão: um dos quadros foi considerado imoral porque o olhar do tocador de órgão se dirige ao baixo ventre do modelo. Está em Berlim. Também já vi uma história da arte que estampava duas Monas Lisas, achando o autor que a segunda era tão digna de entrar na seleção quanto a primeira. 

O pintor Ismael Nery subiu ao estrelato aqui no Brasil pela atitude de um comprador que resolveu adquirir um seu quadro por um valor acima do preço de mercado e, imediatamente, quem tinha quadro do pintor seguiu a cotação. Sei até o nome dele: Domingos Giobbi, ou Giobi. Nunca consegui ouvir bem essas consoantes dobradas em italiano, se é que é nome italiano. Uma colega da Academia de Belas Artes de Roma passou o ano me ensinando a dizer seu nome, Anna, com dois enes, porque eu dizia Ana, e soava ano (ânus). 

Picasso nos revelou, a nós do século 20, pintores mais antigos, como Velázquez, David, Delacroix, Manet e alguns outros, refazendo-lhes quadros com suas pinceladas, dele Picasso, às vezes pegando apenas partes dessas pinturas, conferindo-lhes nova autoria, é verdade, mais do que parceria.

Depois do modernismo não se aceitava mais que o aprendiz se limitasse a procurar pintar igual ao mestre. Devia ir mais além. Devia “destruí-lo”, como dissera Leonardo da Vinci. 

Aqui no Brasil, continuava-se a seguir a regra antiga mesmo depois da revolução modernista, de simplesmente copiar os mestres europeus. Tanto assim que Vicente do Rego Monteiro, aqui de Pernambuco, residindo na França juntamente com seu irmão Joaquim por motivo de doença deste, chegou a dizer que o modernismo brasileiro não passava de plágio. 

Talvez seja necessário adiantar que nestas minhas crônicas não pretendo defender nem atacar nenhuma corrente artística mesmo porque atualmente nem se fala mais disso. Pintura de quadro, de pincel ou o que seja, para pendurar na parede, saiu da mira de quem escreve sobre arte. Só quando há um incêndio. 

Há algum tempo encarei uma empreitada, aliás não fui eu a tomar a iniciativa. O pintor José de Moura, morador de Olinda, não sei por que cargas d’água – falar nisso nunca vi tanta chuva como nos últimos dias, em todos os lugares por onde andei, Europa, França, Bahia e mais Estados Unidos – não sei por que cargas d’água, dizia eu, me propôs continuar um seu quadro pela metade. Eu disse sim, sem saber onde estava me metendo. O tempo foi passando, de vez em quando Zé de Moura vinha aqui, trazia uma garrafa de tinto sempre muito bom, batia um papo, contava suas histórias, mas eu sabia que era como se perguntasse: “Que fim levou meu quadro?”. E eu de bico calado morrendo de vergonha. Um belo dia amanheci inspirado e mandei brasa. Aproveitei um espaço no centro da composição e pintei uma mulher nua algo licenciosa para quebrar o puritanismo da Leda e o cisne que parecia mais do tempo da Inquisição, sem tocar nas áreas trabalhadas pelo pintor. Dali não passei. Nem tive coragem de mostrar. Até que na última garrafa de vinho, um rosê italiano, mais para branco do que para rosê, criei coragem. “Vou lhe mostrar o quadro”, eu disse. Ele pediu que deixasse para a próxima vez. Descansei meu coração e ainda conversamos mais um pouco. 

Pedi que ele falasse do time de futebol dele mais João Câmara, Gil Vicente e outros. O nome era Arraes lutando contra o mundo mas na camisa tinha só ARRAES. João Câmara era bom no gol. “Muito bom”. Delano era perna de pau. O destaque dele era possuir uma chuteira Sócrates, sucesso na época. Gil Vicente, uma ocasião, o time jogando em Amaro Branco (Olinda), levou um pau que caiu e não pode mais jogar. José de Moura partiu para cima do agressor e este respondeu que futebol era jogo de homem. Aí se agarraram e lá vem Delano com uma picareta para tacar no valentão e foi pior porque Zé tinha que se defender de um e segurar Delano com a picareta. José de Moura era o bom do time no meio de campo. Chegou a treinar no Náutico e no Santa e foi convidado por Chico Buarque para fazer parte do time dele. 

O quadro ficou para depois. Assim continuei eu na expectativa de saber como o quadro vai terminar. Se ele conseguir, ganha um vinho, talvez um Frascati (frascáti) que eu tomava em Roma.

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