Matéria Corrida

Octávio de Oliveira Lobo (Recife,1932-2020)

TEXTO José Cláudio

04 de Setembro de 2020

Otávio Lobo no último Natal. Foto fornecida por sua filha Dulce Lobo

Otávio Lobo no último Natal. Foto fornecida por sua filha Dulce Lobo

Foto Cortesia

Otávio Lobo não precisará dessa minha literatura. Acho até um enxerimento me meter a fazer o seu panegírico tendo como desculpa o nosso distante convívio diário obrigatório nos bancos escolares do Colégio Marista na década de 1940 no ginasial, em seguida do Osvaldo Cruz para o clássico, e finalmente no único ano da Faculdade de Direito do Recife, tremendo equívoco, não tendo eu nascido para entender de lei a não ser de pintura, se existe. Disso tudo ficou a amizade dos colegas, alguns há muito falecidos, outros que perdi de vista, se deslocando para outras cidades, como eu próprio para a Bahia, São Paulo, muitos desaparecendo de minha lembrança, ou surgindo em momentos fortuitos, apenas traços fisionômicos ou pedaços de fala, para mergulharem de volta ao nada. Noutros casos não se apagando, como Otávio Lobo, que sempre vejo com a farda cáqui do Colégio Marista, mesmo que o tenha visto ontem num almoço no Cabanga com Zé Paulinho, ou recebendo, como ele, uma medalha no Instituto Egídio Ferreira Lima, outro nosso colega de Osvaldo Cruz e Faculdade de Direito, ou num supermercado talvez na seção de vinhos, ou num banco para eu ver se ainda me restava algum trocado, pequenos encontros que nos dizem que ainda existimos, fazemos parte do mundo real e mais, no caso de Otávio, que ilusão, que somos alguém. 

É sim, Otávio, não sei se me incomoda mais o fato em si, tua morte, que é uma coisa que sempre nos dói irracionalmente, ou saber que não vou te encontrar mais em canto nenhum, aquele convívio que parece nunca ter sido interrompido, e por isso sempre te vejo de farda do Colégio Marista, que o Osvaldo Cruz não tinha farda, vida que o mundo adulto desmanchou e por algum motivo eu esperava que fosse retomada, espécie de reconstituição da nossa mocidade, de que somos testemunhas mútuas. Como saber quem eu era, como saberem quem eu era ou como eu era se não posso mais contar com a tua palavra? Sem que eu possa dizer: “Pergunte a Otávio”? 

Dos nossos colegas, poucos vivem ou não conheço mais. Nossa civilização falhou, como já ouvi, nesse quesito: não nos preparou para a morte, nem a nossa nem a dos outros. Já até me ocorreu querer saber mais sobre os ianomâmis. Não sei onde li ou alguém me disse que entre eles é absolutamente proibido nomear, falar, citar, referir-se a quem já morreu. Morreu, nunca existiu. Para nós fica difícil imaginar tal possibilidade, não se falar no passado de jeito nenhum, uma sabedoria que nos escapa, uma forma eficaz de eliminar a morte, não excentricidade de uma pessoa mas um povo todo. 

Sim, Zé Paulo, abaixo as pirâmides. A humanidade já passou por isso. Quando o cristianismo assumiu em Roma, a primeira providência foi destruir o legado da arte pagã. Os templos foram transformados em igrejas cristãs, como a de Santa Sabina que visitei em Roma, de maravilhosa simplicidade e, as esculturas, sistematicamente destruídas. Só se salvaram as enterradas, como o Lacoonte, descoberto na época de Miguel Ângelo. E que o influenciou a vida inteira. O nu foi abolido. Restou o Cristo na cruz, mas mesmo assim com uma tanga. Os artistas da Idade Média, a chamada “noite dos onze séculos”, simplesmente desaprenderam a representar o corpo humano, que só voltou na Renascença. 

Uma língua, não sei qual, não possui o verbo ser. Nada nem ninguém era, fôra, seria, tinha sido ou será. Na língua mais falada no mundo atual, o inglês, em alguns verbos as três formas são iguais, como let, let, let, deixar; cut, cut, cut, cortar; put, pôr; hit, bater; set, pôr, pôr para coalhar (o leite) e outros significados; split, fender; quit, ir embora; cost, custar, no sentido de custo, preço; burst, estourar; hurt, ferir; cast, arremessar; e outros. Será que tudo se resuma a uma questão linguística, os tempos, os sentimentos, comecem a existir depois de nomeados? 

Otávio era um menino sério, bom estudante, correto, educado. Nossa convivência na fase adulta foi vaga ou nenhuma mas pelo que eu soube conservou-se um gentleman por onde passou. Outro dia li um artigo de um de seus alunos orgulhando-se de ter sido seu discípulo, e logo em que matéria árida, falência (direito comercial). 

Engraçado é o que ocorreu com a palavra amor. Diz Ortega y Gasset que a dificuldade de saber o que designa é que foi tirada do etrusco e perdeu-se o significado. Sobrou a palavra mas não o objeto que nomeava. Houve época em que o lugar hoje ocupado pelo coração nas nossas conversas, como fonte de sentimentos, pertencia ao estômago. Parece que no tempo de Santo Agostinho era assim. Aliás ainda hoje se diz “precisa ter estômago”, para prática de ação fora do comum.

Voltando ao assunto morte, como esquecê-la. Na minha célebre viagem ao Rio Madeira com o zoólogo Paulo Vanzolini, e aproveito a ocasião para recomendar seu belíssimo livro póstumo Terra Papagalorum, Imprensa Oficial, São Paulo, Rio Madeira, dizia eu, Vanzolini, também formado em medicina, saiu numa canoa, no escurão da noite, para atender uma índia gravemente doente. Voltou desolado. “Não pude fazer nada”, ele disse. “Precisava de exames.” Mas disse que o fato de ela morrer não incomodava ninguém. O índio se conforma com tudo. Nós é que ficamos desolados com a perda de um ser humano, embora não a conhecêssemos. O índio, não. Certamente estranharia nossa atitude. 

Saímos num livro organizado por Fernando Coelho, também da nossa turma de direito, eu numa seção que ele criou, “Os que ficaram pelo caminho” ou algo assim, inclusive publicando uma crônica minha. Uma pessoa excelente. Encontrei-o a última vez num shopping, de bengala, a simpatia a mesma. Logo depois soube que tinha falecido. 

Estou super cansado de escrever sobre morte. Tantas mortes ao mesmo tempo ou quase. A única coisa que me vem para dizer é use máscara, lave as mãos, guarde distância, fique em casa, abra portas e janelas.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente. 

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