Matéria Corrida

Mário Cravo Júnior (Salvador, 1923-2018)

TEXTO José Cláudio

04 de Outubro de 2018

'Antônio Conselheiro', de Mário Cravo. Madeira pintada, 4,30 x 2,10 x 0,92 m, 1955

'Antônio Conselheiro', de Mário Cravo. Madeira pintada, 4,30 x 2,10 x 0,92 m, 1955

Foto Cravo Neto/Divulgação

O outro Mário Cravo, o fotógrafo, que apenas conheci criança, chamava-se Mário Cravo Neto. Na época, eu morava no atelier do pai escultor Mário Cravo, isto é, Mário Cravo Júnior, na antiga Avenida Garibaldi, único Mário Cravo renomado então, já que o Neto ainda era criança de poucos anos, e a gente chamava “Mariozinho”. Tinha ele e outro menino ainda mais novo, chamado Ivan, além de uma menina, também mais nova do que Mariozinho. Parece que depois inda nasceu mais gente.

Fazia tempo que não via Mário Cravo, embora todo dia pensando nele. Ficava imaginando. Ou melhor, por mais que imaginasse, não conseguia imaginá-lo velho. A imagem que guardava dele era de ferramenta na mão esculpindo na madeira, como o belo cangaceiro inteiriço feito de peroba-rosa, ou na pedra ou dobrando e soldando ferro, tirando a máscara para ver a soldagem a olho nu que não sei como não ficou cego, ou rodando o cabo da prensa de litografia, ou pulando para dentro do jipe Skoda e saindo disparado, eu às vezes acompanhando-o nessas embaixadas, geralmente a trabalho, saindo de qualquer jeito, pau para toda obra, como uma noite em que fomos, juntamente com o gaúcho Geraldo Trindade Leal, pintar no escuro com uma tinta fluorescente, chamada Rica Day Glow se não me engano, na parede de uma sorveteria na Barra (Agnaldo, que depois virou escultor famoso, e também morava no atelier, e não nos tinha visto sair, levou um tremendo susto quando de volta de suas andanças noturnas, se deparou com a gente dormindo brilhando no escuro). Uma vez Mário me chamou para uma queda-de-braço, e olhe que eu era um tanto robusto nos meus vinte anos, ele nos trinta. Botei força, demorou, mas perdi. Ele entrava de manhã no studio, como ele dizia, por ter estudado nos Estados Unidos, peito cabeludo de cabelo preto apesar de raça branca, camiseta jogada no ombro usada mais para enxugar o suor, a maceta comia no centro.

De repente, quando me lembro de Mário Cravo, me dá um branco e não me vem nenhum escultor mais de madeira no Brasil, tirantes Aleijadinho e outro baiano, Chagas o Cabra. Às vezes, isso cinquenta anos atrás, me dava saudades daquela época, do convívio com Mário Cravo, e me metia a esculpir uns arremedos de madeira, quem sabe não de todo perdidos. Qualquer veleidade de escultura em mim deve ter surgido daí, mais até de que de Abelardo da Hora, meu ponto inicial em tudo de arte.

Na notícia da morte de Mário na televisão, no jornal Bom Dia Brasil, deu para vislumbrar no fundo da cena a última escultura em madeira feita por Mário Cravo enquanto estive na Bahia, um Antônio Conselheiro de uns três metros, cujo tronco em que foi esculpido fui eu que descobri quando já morava na Lagoa do Pau Miúdo, na Liberdade. Estava indo a casa de Jenner Augusto, que morava no IPSEP. Dei com essa jaqueira. Haviam acabado de derrubar. Devo ter pedido para não partirem o tronco. Corri a avisar a Mário Cravo. Só anos depois vi a escultura pronta, no canto da praça central na cidade alta. Não sei hoje se ainda se encontrará lá.

Na hora do almoço a empregada da casa perguntava quantos tinham para comer. E botava os pratos, fundos, bem cheios da excelente comida caseira baiana, na janela entre a casa e o atelier. No mínimo quatro: Agnaldo, o único de fato na condição de empregado, negro alto, forte, bom no machado, que Mário havia trazido de Mar Grande, e os outros agregados, o pintor italiano Inos Corradini, que depois trocou o nome para Inos Corradin e a última vez que soube dele morava em Jundiaí, o gaúcho que depois ficou mais conhecido como gravador Geraldo Trindade Leal e a última notícia que tive morava em Santa Vitória do Palmar, última cidade do Brasil já pegada com o Uruguai, e eu, vindo de Pernambuco via Feira de Santana trazido pelo pintor Raimundo Oliveira. Mas tinha também o capoeirista Traíra, que costumava vadiar no barracão do Corta Braço, um que eu nunca soube do nome que tecia num tear instalado no atelier de Mário, o paulista Lênio Braga que morou lá outra época e outros. Foi lá que conheci Poty Lazzarotto, e também artistas de outras áreas como a atriz Maria della Costa e o cantor Lúcio Alves. Dorival Caymmi, também pintor, preparei muitas telinhas de eucatex para ele, certa vez de noite trouxe o violão e deu um concerto para três: Mário, Carybé e eu. Ele gostava de pintar peixe.

Algumas noites, às vezes noites seguidas, depois do jantar, Carybé vinha a pé, que morava perto, no Largo de Sant’Ana, e danavam-se a fazer monotipias em meias folhas de papel canson, pintando sobre uma chapa de bronze e tirando cópia na prensa de litografia. Carybé não tinha carro. Só muitos anos depois, acho que quando já morava em Brotas, resolveu comprar um fusca. Vendiam bem. As visitas chegavam e pagavam na hora. Carybé e Mário davam hurras de alegria. Os dois já eram nomes nacionais. Mário principalmente pelo prêmio na 1ª Bienal de São Paulo. Mário às vezes dizia: “Estou atolado na merda até o pescoço!” Mas não havia lugar para desespero: o pai dele tinha, diziam, muito dinheiro, ganho com a venda de jeep logo depois da guerra.

Certa vez disse que era meu parente porque o nome dele era Mário da Silva Cravo (o meu é José Cláudio da Silva).

Minha mulher, com quem sou casado há mais de 58 anos, e não conheceu Mário Cravo pessoalmente, ao ouvirmos a notícia de sua morte, deu uma tapa na mesa, que tínhamos acabado de tomar o café da manhã, e disse: “Pare tudo que está fazendo e escreva sobre ele. Ele foi um dos esteios de sua vida”.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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