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Livros de arte

TEXTO José Cláudio

04 de Outubro de 2021

'Olímpia', Manet

'Olímpia', Manet

Imagem Reprodução

Muito me distrai folhear álbuns de pintura. Álbuns que fui adquirindo ao longo da vida, e outros livros de texto e reproduções, privilégio que os anteriores às fotos em cores não tiveram. Aqui no Recife era muito raro alguém ter livro com reproduções coloridas na década de 1950, quando comecei, principalmente de arte moderna. De modo que até hoje conservo aquela alegria de folhear livro de pintura, mesmo depois de ter visto muitos quadros pessoalmente nas bienais de São Paulo, Europa ou Estados Unidos. 

É importante ver originais. Melhora nossa visão das reproduções. Me lembro da surpresa que me causaram os originais de Van Gogh. Nunca imaginara tamanha rusticidade. Muitas vezes eu pensava que um claro era pintado quando se tratava do branco da tela (a não ser como Reynaldo Fonseca, que chegou a preparar tela com fundo preto, segundo me disse). 

Pego um álbum de Velázquez, por exemplo. Dou de cara com esse nu de costas reclinado Vênus ao espelho. A legenda nos leva à Maja desnuda de Goya e à Olímpia de Manet, de que o de Velázquez (123x175cm, 1648-1651) é predecessor. Fico embevecido com a delicada sinuosidade da figura ali representada, lembrando-me da Maja vestida quem sabe ainda mais sensual, vingança do pintor por ser obrigado a fazê-la vestida atendendo ao preconceito da época, um século e meio depois da Vênus ao espelho de Velázquez. 

Onde aprendi mais sobre Velázquez foi num livro que comprei simplesmente porque era grosso. Teve uma época que gostava de livro grosso, para ter muita coisa para ler. Geralmente biografia, mesmo que nunca tivesse ouvido o nome do biografado, como no caso da autobiografia de Alfred Speer, arquiteto de Hitler. Isso aconteceu com a biografia do conde-duque Olivares. Olivares gostava de ter à mesa de um lado Rubens e do outro Velázquez para compartilhar 45 pratos e uma quantidade de sobremesas. Foi Rubens que disse a Velázquez que não tivesse medo de deixar vazios no quadro como no Las meninas. Também li de Ortega y Gasset uma biografia de Velázquez e outra de Goya. 

A Olímpia de Manet é de fato também maravilhosa. Parece que ele se esqueceu por um momento de que era impressionista e resolveu mostrar que “também era bom nisso”. Uma característica desses nus reclinados é a sua, por assim dizer, atemporalidade. Parece que pertencem à mesma época, lugar ou estado de espírito. Eu certa vez tentei uma versão dessa Vênus de Velásquez. 

Dois quadros que têm grande parentesco e que podem ser incluídos nesse conjunto: Vênus adormecida de Giorgione, 108x175cm; e A Vênus de Urbino, 119x165cm. Giorgione era cerca de 10 anos mais velho do que Tiziano, que pintou a paisagem de fundo do quadro de Giorgione. Justamente a grande diferença é esse fundo paisagístico de quadro de Giorgione e o interior do de Tiziano, com a cena enigmática de uma mulher abrindo um baú ou pelo menos ninguém me esclareceu do que se trata, ignorância nossa. 


A Vênus de Urbino, Tiziano. Imagem: Reprodução

Isso de dar nome de deusas gregas aos quadros de nu, diz Sir Kenneth Clark, O nu da arte, é pura invenção, não corresponde à realidade. Na Grécia antiga o preconceito contra o nu feminino era total. Até nas olimpíadas as atletas competiam vestidas da cabeça aos pés. Não consigo imaginar como seria na natação. Já quando entrou em cena o cristianismo, o nu foi abolido completamente. Sobrou o Cristo na cruz mas mesmo assim durante algum tempo foi representado com roupa, de que restou a tanga cobrindo as partes. Mas eram crucificados totalmente nus na época dos romanos.

Quando resolvi sair de casa, abandonando de vez a Faculdade de Direito do Recife, em 1952, a convite de Raimundo Oliveira, de Feira de Santana, Bahia, ele estava pintando um Cristo na cruz absolutamente original, pregado de barriga, a gente vendo as costas e as nádegas, bem diferente da pintura primitivista que adotou depois e pela qual ficou conhecido. Ele nos deixou cedo, tendo-se suicidado em Salvador, depois de eu ter saído dessa cidade, para onde ele me levou e apresentou a Mário Cravo, Carybé e o sergipano Jenner Augusto. A paixão de Raimundo Oliveira era Rubens, de quem copiou, em tamanho grande, perto do tamanho original 222x209cm, O Rapto das Filhas de Leucipo. Como morava sozinho em Salvador, seu corpo foi encontrado dias depois muito inchado. Mário Cravo pensou em fazer um ataúde oval de fibra de vidro, já que não cabia no caixão normal, mas a família não permitiu. 

Ah, os belos nus reclinados: Vênus e Vulcano de Tintoretto, Júpiter e Antíope de Correggio, se eu tivesse um avião ia vê-los todos pessoalmente!

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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