Matéria Corrida

Lira dos 88 anos

TEXTO José Cláudio

06 de Janeiro de 2021

Óleo sobre tela, 200 x 120cm, 2018

Óleo sobre tela, 200 x 120cm, 2018

Pintura Roberto Ploeg/Reprodução

Dormir bem ou dormir mal, pouca diferença faz. O melhor e o pior quadro de Picasso é um quadrinho, existe sim, está num livro de capa dura, não dos mais grossos, não sei quem me deu, procuro e não acho, que me impressionou. Li a legenda, nela dizia que Picasso após pintá-lo constatou, cheio de felicidade, assim penso eu: “Estou pintando cada vez pior”. Não é nenhuma Guernica nem Les demoiselles d’Avignon. Deve ter pouco mais de um palmo. O tema, qualquer um, nem dá para lembrar.

Há muito já tinha notado, escrevi sobre isso, viver pouco ou viver muito, tanto faz. Essa é uma ciência que a gente vai aprendendo aos poucos, ou desaprendendo até chegar à pureza, por isso é preciso viver muito, viver como se já tivesse morrido, como diz São Paulo. Leia num dos sermões de Vieira da Quinta ou Sexta-Feira da Paixão. Ia escrevendo “das paixões”. Paixões extintas. Minto, é Quarta-Feira de Cinzas.

Hora de tomar o café da manhã. Antes, tomar um remédio. É. Me submeto. Minha mulher não toma remédio de jeito nenhum. Eu tomo o dia todo.

Acordei altamente inspirado. Abri o olho e a claridade da manhã expulsou minhas genialidades. Devíamos viver como se dormindo. Sem sonhos. Sonhos, só os de acordado. Desejos vagos, aspirações. Sejamos menos racionais, amici miei: ah, eu gostava de falar italiano. Como Vieira de falar latim. Tenho todas as condições para alcançar a perfeita imbecilidade. “Fala baixo”, como diz o soneto de Miguel Ângelo. Para não despertar a razão, essa estraga-prazeres. São oito horas da manhã, céu nublado, obnubilado eu. Preguiça, velhice. Covid? Grupo de risco. Idoso, diabético, obeso. Os gregos chamavam diabete de “urinas abundantes”. Samico só vivia urinando, mas o caso dele era outro. Alguma coisa da bexiga. Vessie em francês. Daí vem verde véssie, como a gente diz aqui. Wellington gostava muito. Eu me limito ao mínimo, as cores que Carybé usava: verde esmeralda, azul cobalto, amarelo cádmio, terra de Siena queimada, branco titânio, preto marfim. Um fabricante de tinta, das tintas Altair que não existem mais, ele já bem velhinho, vendo essas minhas exigências, me perguntou: “Você acha que alguém vai usar cobalto para fazer azul? Um grama de cobalto custa uma fortuna para tratar de câncer!” Carybé dizia que amarelo índio era feito de urina de vaca que come manga. Se ele fosse vivo ia perguntar que relação há entre bexiga e verde véssie. Com esse velhinho, como o conheci, na fábrica dele trabalharam como operários os que depois viraram pintores Volpi e Rebolo. Não consigo lembrar do nome. O do filho era Milton.

Bela exposição de Roberto Ploeg. Também notei a importância do quadro do cavalo. É “o cavalo”. Vou botar num quadro que estou pintando. Não é nenhum cavalo rompante. Não é cavalo do grupo de cima da igreja de São Marcos de Veneza, pai e mãe de todos os cavalos do ocidente depois do de Marco Aurélio no Capitólio que tanto me impressionou que quis saber mais sobre ele e terminei lendo os Pensamentos de Marco Aurélio, onde ele diz que alguém de 40 anos que não sabe o seu futuro é idiota. Esse de Ploeg não tem história nenhuma. Não é o de Gattamelata em Pádua nem os de Ivan Meštrović na entrada de Chicago. Entre parênteses, eu vi de perto os de Veneza no Metropolitan quando gastei todas as economias para ver a retrospectiva de Picasso no MoMA. Vou deixar essa frase para posteridade: faz falta a todo mundo não ter visto a retrospectiva de Picasso no MoMA.

Há anos existe aqui no Recife uma revolução na pintura. Persistente, paulatina, mas não sei se se pode chamar de revolução. Sem alarde, vai se estendendo, vai ganhando adeptos, sem arrogância, pelo contrário, com ar de quem está aprendendo quem está saindo do zero, sem impor, como se perguntasse, isso se os quadros que vêm arriscando poderiam ser chamados de pintura. Sente-se por parte dos autores, por trás do orgulho contido, um ar de quem pisa em terreno sólido, parecendo pisar em ovos. Facilmente podem passar despercebidos, sentindo a extensão do que precisam conquistar. São pintores ainda moços, sabem poder dispor de tempo, sem golpes publicitários. É uma ocupação sem pressa. Pode até parecer um retrocesso, um recuo ao figurativo menos ambicioso possível. Dá para lembrar aquele conto de Jorge Luis Borges, do escritor do Quixote que não era a mesma coisa, na época da televisão, do avião, do automóvel, da eletricidade. Mas não se trata de retrocesso, de involução. Muitas vezes uma descoberta depende de um reexame, de reabrir uma discussão que parecia encerrada. Às vezes até por ignorância, ou por aprender por conta própria, e dá-se a revelação. O tempo dirá. Ou melhor, já começa a dizer, creio.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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