Paletó branco de algodão, sem ser engomado mas muito limpo, roupa de “pobre porém decente”, camisa de colarinho, também sem goma mas muito limpa, sem gravata, chapéu de massa, no salão da loja de meu pai em Ipojuca, assim me lembro de João Fogueteiro. Em pé, espigado, magro, rosto meio encovado, algum fiapo de barba, talvez um pouco mais alto de que meu pai, era também chamado de João do Ó, por residir em Nossa Senhora do Ó, distrito de Ipojuca com festa bem concorrida, páreo para a de Santo Cristo na sede Ipojuca ou Santo Amaro de Sirinhaém; naquele tempo, antes da febre futebolística, a disputa era entre quem fazia as melhores festas, do padroeiro do lugar ou carnaval. Até nos engenhos havia festa do santo, como em Pindoba, de Chico Fininho, ou Penderama, dos parentes de José Paulo Cavalcanti Filho. O padroeiro de Ipojuca era Santo Antônio, mas a grande festa era a de Santo Cristo, 1º de janeiro.
Não vinha comprar. Vinha vender: peido-de-velha, bomba-de-são-joão, estrelinha, diabinho, traque-de-sala também chamado de traque-de-massa e pistola. Foguete de três tiros e bomba real, igualmente fabricados por João do Ó, papai adquiria mais de outro João, João de Ana, de Caruaru.
Devo esse resgate de João Fogueteiro a uma sua bisneta que veio aqui a minha casa com o marido por terem gostado de um quadro meu; pela foto, uma vista do Rio Sibiró. Assim que olhei, disse: “Rio Sibiró”. O marido emendou: “Passa por dentro da minha propriedade”. No primeiro momento pensei estar diante do dono do Engenho Sibiró, mas ele disse outro nome, que ouvia pela primeira vez: algo como Underval, segundo meu primo pintor Daniel Cavalcanti, que os trouxe aqui.
Aí voltei aos dias de feira, domingo, a loja cheia dos moradores de engenho. Cedo, meus ouvidos se acostumaram aos nomes desses engenhos. Não tinha Bom Mirar, como no poema de Ascenso, mas tinha Mirador. Com nome de Sibiró, existiam vários: Sibiró de Cima, ou de Riba, Sibiró do Meio, Sibiró de Baixo, Sibiró, Sibirozinho, Sibiró da Serra, Sibiró do Mato e ainda um Sibiró São Paulo, que vem a ser o atual Engenho São Paulo, onde eu ia passar férias, eu e minha irmã mais velha Nena, em casa de minha tia Edith, irmã de minha mãe, casada com Seu Zé Dias, pai de meu primo Amaro Antônio e administrador daquele ou fiscal daquele e outros engenhos, pegado com o Jenipapo, de Seu Mandu, que nesse tempo não sei se ainda era de Seu Mandu.
Por coincidência lera um artigo de Lecticia Cavalcanti na sua página na Folha de Pernambuco, aos sábados, falando sobre a escravidão, que cita o caso de uma escrava do Engenho Sibiró autêntica rainha africana.
Não encontrei no meu, isto é, dele, de Gonçalves Dias, Dicionário da Língua Tupi/chamada Língua Geral dos Indígenas do Brasil/(tupi-português), Livraria São José, Rio de Janeiro, 1965, o significado da palavra “sibiró”, se tupi. Interessante que no referido dicionário não consta a letra s, pulando do r para t. Ainda por desencargo de consciência, consultei as letras ç e c, seções separadas no dicionário. Catão resolveu aprender grego com 80 anos. Como sou fraco mas só vito os fortes, sou pequenino mas só fito os Andes, às vezes me vem essa de aprender tupi com 86. Só não sei para falar com quem. Talvez seja mais fácil encontrar professor de javanês. Morro de inveja dos paraguaios, peruanos, guatemaltecos que não perderam suas línguas nativas. Já pensei nos fulniô, mas há uma parte sagrada que não pode ser ensinada a estranhos.Falando sério. Vou ter que ir a Nossa Senhora do Ó. Onde não conheço ninguém. Ou talvez conheça. Meu pai, Amaro Silva, era muito conhecido. E agora tenho dois projetos: conhecer a neta de Seu João Fogueteiro e ver o trecho do Rio Sibiró que passa pela propriedade da bisneta. O nome do marido Ruvin: ele disse que o pai botou esse nome em homenagem a um russo amigo dele. O nome da esposa, bisneta de João Fogueteiro, é Micheline, embora eu não garanta a grafia, Michelline, Michellini, a confirmar: os telefones dão sempre “deixe o seu recado”. Adoraria, sabe o que? Ver de novo, numa fotografia, claro, a cara de Seu João. Quando ele aparecia, eu já sabia: faltava pouco para as festas juninas.
A maior fogueira que vi na minha vida foi justamente no Engenho São Paulo. Os quatro paus que a sustinham eram quatro pedaços de trilho de bem cinco metros de altura. Chovia e ela não apagava. Ficávamos olhando, Lilita, Joana, Nena, Amaro Antônio e eu. Uma vez vieram bacamarteiros de Camela para “tomar a fogueira”. Mas o que tomavam mesmo era muita aguardente.
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