Matéria Corrida

João (Rio de Janeiro, 1942-2021)

TEXTO José Cláudio

05 de Abril de 2021

'Nu', pintura de 1986 de Carneiro da Cunha

'Nu', pintura de 1986 de Carneiro da Cunha

IMAGEM DIVULGAÇÃO

JOÃO CARLOS CARNEIRO DA CUNHA. Eu pensava, João, que depois dessa loucura, desse esquecimento de si próprio, voltássemos à vida, ou melhor, você voltasse, que eu nunca deixei a minha, que não sou doido. Vida, a gente só tem uma, a coisa mais óbvia do mundo: será que pensavas que tinhas quantas quisesses? Inda mais você que era inteiro pintor. Quando eu esperava que você já tivesse ciência disso, e não somente isso, que era um grande, raro, pintor, e ficava aqui aguardando que o Brasil finalmente soubesse, agora, depois de velho, você me diz que simplesmente deixou de pintar. Até hoje não acredito. Aí, você morre. No fundo a gente pensa que não morre. Mas morre. Como ontem você morreu. Será que em algum momento você acreditou nessa possibilidade de se reinventar? Eu de jeito nenhum pensava na sua morte e sim na sua ressurreição porque você morreu quando resolveu deixar de pintar. Uma morte provisória. Longe de mim pensar que fosse para sempre. E já faz bem 20 anos ou mais. Cadê João que não retorna? Me perguntava às vezes. Mas se ele não me telefonava era porque não tinha nada para me dizer, isto é, não estava pintando. Porque foi se firmando entre nós esse acordo tácito, com exceção da pintura, nada era notícia a não ser que ocorresse alguma catástrofe como essa da morte.

Ele deve ter proibido me dizerem que estava com câncer. Nem que teve Covid. E pintura? Não ousava perguntar: era coisa de foro íntimo e não tinha que dar satisfação a ninguém. E por que deixara de pintar? O mundo lhe negava apoio, não o reconhecia, então está bem, eu lhe nego minha obra. Mas se todos respondessem assim, era dar de mão beijada a vitória a esse mundo que o ignora e rejeita. Cheguei a pensar nesse tipo de vingança suicida, e imediatamente tirava essa ideia da cabeça, ideia menor, indigna de mim, quanto mais dele.

Foi a arte que nos aproximou a vida toda. Conheci-o na escolinha de artesanato do Museu de Arte Moderna de São Paulo, na década de 1950, na Praça Roosevelt, uma praça grandona e escura, só tendo numa ponta a Igreja da Consolação, que também vivia apagada. Parecia um mundo abandonado, essa a ideia que eu tinha. O único lugar vivo era a aula de xilogravura dada por Lívio Abramo, e de história da arte dada por Wolfgang Pfeiffer, que serviu no exército de Hitler, indo na frente para determinar, em cada cidade, o que era intocável, o que era obra de arte e não podia ser danificado. Acho que serviu até na Rússia. Já Lívio Abramo não precisa dizer quem era, um grande intelectual, cujo convívio nos elevava, sem o que a simples técnica de gravar na madeira era só a alfabetização. Samico estudou com ele anos depois e virou o gravador que é. Ou já era. Os dois discutiam os maiores bizantinismos, Lívio sempre achava que Samico devia gravar em madeira de topo e Samico fazia questão de gravar em madeira de fio.

A família do pai de João tem um lado pernambucano de José e Olegário Mariano, e preza muito isso, apesar de por outro lado descender de Dom Pedro I, conforme o móvel com uma coroinha de ouro pregada na frente e outros móveis que a instâncias de Sérgio Buarque de Holanda, o historiador Pedro Otávio, pai de João, doou ao Museu do Ipiranga.

João era 10 anos mais moço que eu, eu de 1932 e ele de 1942. Tem uma filha, Mariana, que mora na França. Era casado há muitos anos com Dedinha, do interior da Bahia. Suquita, a mãe de Mariana, é também baiana, de Salvador. Estou tentando falar com Mariana e Dedinha para salvar os quadros principalmente os deixados numa fazenda que Pedro Otávio comprou na divisa Rio-São Paulo. João e Dedinha viveram lá muito tempo. A mãe de João, Dna. Anny, morreu lá há alguns anos. Dedinha disse que a metade dos quadros ficou na fazenda e outra metade no apartamento que possuem, isto é, a família de Pedro, no Rio de Janeiro. João era forte sem nunca ter sido como eu, obeso, estatura mediana. Devia ter minha altura, 1,70m. Nunca soube de ter tido nenhuma doença. Era filho mais velho de quatro irmãos: ele, Paula, Chico e Juliana, atriz de Lavoura Arcaica. Todos, inclusive Pedro e Dna. Anny, falavam francês. Eram da época em que se falava francês, conservavam a tradição. Dna. Anny era muito católica. Nos dias de aula na escolinha, Pedro me pegava junto com João e eu ia dormir na casa deles, na Rua do Descalvado, rua ladeirosa na esquina da Igreja do Sumaré. Aconteceu certa vez ter dormido lá e amanhecer num domingo. Eu me dizia católico mas havia muito deixara de ir à missa. Dna. Anny nos obrigou a ir. Naquele tempo só tinha missa na parte da manhã. Eu e João ficamos conversando. “Você sabe que faltar à missa é igual assassinar uma pessoa?”. De fato, era pecado mortal pelos mandamentos da igreja.

João passou a infância numa bela casa da rua, ou avenida, da Consolação, que nunca fui bom na geografia da cidade. Não alcancei essa casa. Quando nos conhecemos Pedro Otávio e família já moravam na Descalvado 123, agora lembrei do número. Mas lhe ficou, dessa residência, a memória que ele transformou na mais bela série de interiores que já vi, ou convivi, porque conhecendo o autor. Páreo para o mineiro Ivan Marquetti, outro grande pintor de interiores das casas onde morou em Olinda. Também outro tema para que tinha extraordinária desenvoltura era o nu, de uma segurança como se já tivesse nascido sabendo, e dele somente, sem influências, direto, cru, sem nenhum tipo de alisado. Será que esses quadros ainda restam, debaixo das camas, que era o destino de todos eles? Procurei interessar alguns marchands ou colecionadores, animei-os a irem à fazenda onde morava, mas nenhum se interessou. Eu até pensava naquele dono de hospedaria jogando lá de cima do sótão no meio da rua os quadros de Cézanne como se fossem tralha inútil quando Vollard demonstrou apreço pelo pintor. Não seria surpresa para João, que conhecia história da arte melhor do que eu. Mas ainda não apareceu um Vollard para a obra de João.

Carneiro da Cunha. Nu. Óleo sobre eucatex, 80x60cm, 1986

Carneiro da Cunha. Nu. Óleo sobre eucatex, 80x60cm, 1986

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necessariamente a opinião da revista Continente.

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