Matéria Corrida

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TEXTO José Cláudio

06 de Novembro de 2017

Sob o sol quente, passistas não aguentam pisar no chão (Pátio de Santa Cruz, Recife, Carnaval 2003)

Sob o sol quente, passistas não aguentam pisar no chão (Pátio de Santa Cruz, Recife, Carnaval 2003)

Foto José Cláudio

Aprendi com Hermilo Borba Filho que quem deve decidir as coisas do povo é o povo. Isso me vem à mente sempre quando vejo o carnaval do Recife ou, seria melhor dizer, não vejo, a não ser que se chame de carnaval, de tríduo momesco (gostou, Arthur Carvalho?), ruas vazias mais parecendo feriadão.

O defeito é meu, que desde que nasci só vejo carnaval de dia. De dia e de rua. Já ia dizendo besteira dizendo que não acho graça em carnaval de noite e, pior que tudo, em ambientes fechados. Aí pelos vinte anos ia a bailes de carnaval dos muitos que eram montados às vezes em prédios em construção ou outros locais improvisados ou não, mas não é a isso que me refiro. Quando falo em carnaval me refiro a carnaval de rua. E de dia. Troça desfilando de dia, a rua tomada de gente, multidão fazendo passo ou olhando, banda de metais, sol de meio-dia tirando faíscas no beiço dos trombones e tubas e pistões, no brilho das fantasias multicoloridas, sombra dos passistas riscada no chão de paralelepípedos ou asfalto ou terra batida, esta última ideal para caboclinhos, que andam descalços, esfregando a sola do pé na poeira como certa vez vi, magnífica exibição de várias tribos, num largo amplo de barro duro, Chão de Estrelas: Canindé, Sete Flechas, lembranças que tento canhestramente fixar nos quadros, aqueda manifestação do divino, caboclinhos, frevo, boi, urso, bloco, maracatu daqui de baque virado ou de lanças do interior de baque solto, maracatu rural, e tantas gaiatices que surgem no improviso da folia, às vezes embrião de um futuro bloco carnavalesco.

Lembro também de clubes grandes que saíam de noite, Vasourinhas, As Pás, Lenhadores. Uma vez, puro encanto, Vassourinhas na Rua da Imperatriz, de noite, Rua Nova.

Gostava do Galo quando era no chão. Ai, Dodora, saímos atrás, debaixo do maior aguaceiro, com Ramiro Bernabó filho de Carybé, Sérvulo com um cantil cheio de cachaça nos abastecendo, nosso clube particular que ele batizou de Pró Álcool. Também tem isso: carnaval com quem se brincou e que não está mais aqui.

Mas a dificuldade maior de falar nesse assunto, que me causa um certo bloqueio desde muitos anos, tem sido a de, de uma forma ou de outra, ainda com a desculpa de defendê-lo, falar mal de algo sagrado para mim que é o carnaval do Recife. Sofri diversas mudanças na minha vida, nestas oitenta e cinco primaveras, mas uma coisa não mudou nunca: o amor, a idolatria pelo carnaval do Recife, mesmo hoje que não tenho mais pernas para acompanhá-lo. Me sinto inteiro, novo todo, quando ouço um frevo de Zumba, de Capiba, de Nelson, Levino, John Johnson, Chapron, e mil grandes compositores só de frevos-de-rua. Me sinto sem voz para pronunciar os nomes dos compositores de frevo-de-bloco. Me sinto muito insignificantezinho para falar bem, quanto mais mal, do carnaval do Recife. Quanto à avalanche de gente do Galo, essa contabilidade não me toca. Preferiria alguma pequena troça apresentando sua nova safra de passistas no Pátio de Santa Cruz.

Ai, Tereza Dourado, finalmente tiraram o posto do meio do teu querido Pátio de Santa Cruz.

Nova safra de passistas no Pátio de Santa Cruz, ou na Pracinha, ou na Praça Maciel Pinheiro, onde Clarice Lispector despertou do seu sono russo aos acordes de algum frevo. Ou no Pátio do Carmo, a rabada da troça invadida pela mundiça. Uma vez, na Pracinha, o sol tinindo, no ruge-ruge do passo, eu me esquecendo que não era mais menino, caí no frevo, caí no chão, fui salvo por outros passistas, senão não estava contando a história. Leonardo Dantas estava no palanque e tentava me fotografar, mas era tanta gente, tanto movimento, que não deve ter conseguido.

Essa quase extinção do carnaval de rua de dia se deve, como sempre se alega, a “diversos fatores”. Primeiro, é terrível dizer, à mudança de nível econômico e de mentalidade, de escolaridade da população que não anda mais de pé no chão. Ainda tem, mas é cada vez mais difícil ver alguém de pé no chão. A sola do pé afinou, ninguém aguenta mais pisar no chão descalço, principalmente o asfalto das dez da manhã às três da tarde, justamente o horário mais belo, a maior claridade da nossa luz que não tem igual no mundo segundo Cícero Dias, assim como não é mais a rua o palco ideal para serem mostradas as belezas físicas, artísticas, cenográficas das esforçadas agremiações que procuram sair do anonimato e pobreza, para o que o carnaval poderia ser a oportunidade, ao lado da ingenuidade perdida: o palco ideal, que dá dinheiro e felicidade, é o palco mesmo, montado nos pontos de maior visibilidade, ocupados pelos cantores renomados e artistas de televisão, reduzindo a população outrora promotora e criadora do carnaval a espectadores passivos e sem voz a não ser urro de aplauso, sem voz e sem vez e sem visibilidade: para que criar qualquer coisa se os modelos já vêm carimbados, importados e impostos? Para isso não se precisa mais pisar no chão quente do asfalto, juntar dinheiro o ano inteiro para fantasia, mostrar beleza sem ter para quem em troca de subvenção quando há ínfima ou as mais das vezes nenhuma.

Eu senti isso na longínqua década de 1940 ou início da 1950 quando vi um carro de som aqui no Recife, que chamavam “carro da Coca-Cola": era o carnaval de som indireto, alevantado do chão. Eu disse logo: “Ih...”

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