Matéria Corrida

Iaba

TEXTO José Cláudio

12 de Março de 2019

Ex Libris de Caribé

Ex Libris de Caribé

Imagem Reprodução

Carybé também escrevia. Teve até coluna num dos jornais de Salvador. Inda quis perguntar a minha amiga Solange, que eu vi nascer, Solange Bernabó, baianinha só-só, questão de datas. Os gregos têm um termo para tempo que abrange todas as datas. E assim é para mim quando se trata de Carybé. No resumo biográfico do fim do livro tem: “Em lº de outubro de 1997 falece em Salvador. Certamente não por coincidência, no Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá”. Falece? Como, se estamos os três, Carybé, Pierre Verger e eu, dormindo numa esteira de pipiri estendida no chão de terra batida, metade debaixo da mesa que o espaço era pouco, justamente numa das casas desse terreiro, depois de Carybé ter levado um carão de Senhora por ter vindo com camisa estampada, e eu, que tinha vindo de camisa branca tê-la trocado com ele? Ele tinha obrigação de ter vindo de branco sabendo festa de Oxalá, porque era da seita.

Aliás ninguém dormiu um minuto. A muriçoca não deixava. No escuro, mais elas se danavam. Carybé ria e tacava tapa nas muriçocas. Verger pedia respeito. Um alívio, quando nos vieram chamar.

A cerimónia ia começar. Carybé e Verger desceram para se juntar às moças que iam buscar água numa grota. Eu fiquei cá em cima esperando. Carybé sempre me levava para esses lugares. O que andamos a pé por dentro do mato para cortar caminho naquele tempo de transporte precário, a não ser de bonde, não está no gibi. Era na época que ninguém tinha carro. A não ser Mário Cravo um jipe Skoda velho que nos levava ao barracão da capoeira no Corta Braço, isto é, até onde dava: a descida era a pé num caminho estreito até o barracão onde imperavam Mestre Waldemar, Traíra, Cabelo Bom, Onça Preta e Maré, um altão que se vestia todo de branco para mostrar que ninguém conseguia tocar nele. Inclusive o sapato. No berimbau, Bugalho. Também ia lá Mestre Pastinha. Só não Mestre Bimba, criador de chamada capoeira regional. Ai, Carybé, eu hoje não ando meio quarteirão.

Nessa novelinha Iaba, o herói Antônio vai trabalhar no abate no matadouro do Retiro, onde o terreiro de Senhora. Eu e Arnaldo Pedroso d’Horta estávamos na cena que ele descreve, os bois caindo fulminados por uma estocada certeira na nuca, um lanceiro saltitando por cima de um engradado que servia de teto e embaixo os bois à espera da morte sem saber de onde ela vinha. Começou ali, nessa época, outro capítulo da minha vida, a amizade de Arnaldo.

Carybé chegou hoje porta adentro que nem notei, disfarçado num pacotinho do correio. Quando vi, estava mergulhado na história de Iaba, que a princípio li “iabá”, mais de acordo com a prosódia ioruba, pensei na minha ignorância. Aliás no Aurélio tem “iaba”, do ioruba, principal sacerdote do culto dos ibêjis. E por acaso a Iaba do livro de Carybé termina parindo gêmeos. Também pensei que o nome da protagonista tivesse sido tirado de “diaba” sem o "d".

O enredo encaminhava-se para uma tragédia, coisa que não era do jeito de Carybé. Isso me despertou curiosidade. Com sua capacidade de aceitação do mundo como é, não sei como partiria para um desfecho menos feliz, como tudo indicava, pela missão recebida de Pai Cosme, que era de Oxalá, pernambucano considerado por Edison Carneiro no Candomblés da Bahia como o último babalaô, cuja casa pintei toda de branco por dentro, incluindo caibros e ripas a mando de Carybé, num alto de Amaralina, um desfecho, dizia eu, de ruindade, de punição, que felizmente não acontece: Salve a Bahia!

Outro dia vi a cara de “Seu” Cosme, como eu o chamava, inclusive Tonho de Bualana, que vivia com ele, já homem feito, num livro de Verger. Me disseram que Bualana é um Oxóssi das águas.

Na descrição das prendas de Iaba, via o que o próprio Carybé me mostrava na rua, Sete Portas, Baixa do Sapateiro, e toda a Bahia. Carybé, como Iaba, tinha um papagaio com quem conversava e ensinou o bicho a assoviar uma toada de candomblé muito delicada e difícil de memorizar. Que fim levou o papagaio, Solange? Ele vivia num poleiro no quintal na Medeiros Neto. Também a possível sucessora na vida do incorrigível Antônio aparece carregando um papagaio no final do livro.

A última vez que vi Carybé deve ter sido aqui em casa, já na minha casa aqui no Monte, Olinda. Eu tinha pintado um quadro relativamente grande para meus padrões, l,83x2,45m. Não gostei. Pintei outro por cima. Gostei menos ainda. Consegui raspar este último à custa de removedor e recuperar o anterior que ficou meio escalavrado. Mostrei a Carybé. Ele disse: “Deixa assim”. Os anos foram passando e, não sei por que, não tinha coragem de mexer no quadro. Minha neta Emília casou e dei-o de presente de casamento, prometendo terminá-lo na parede definitiva, no apartamento dela. Numa festa lá, tornei a vê-lo, talvez com o olhar condescendente de Carybé. Jamais consegui tocar nele. Nem para assinar. Quero que fique como ele viu.

Voltando à água de Oxalá. As moças subiram, longas, negras, vestidas de branco, cada uma com um jarro na cabeça apenas tocando-o com as pontas dos dedos para sentir-lhe o equilíbrio e cantando nas suas vozes delicadíssimas: “Ajô Ajô lonan”, enquanto o dia começava a clarear. Hoje me dou conta de que foi uma das cenas mais belas a que assisti durante toda a minha vida. Estou hoje com oitenta e sete anos; naquela época estava com uns vinte; e continua nítida como se a tivesse visto hoje.

Eu conheci a Bahia sendo conduzido por guias magníficos, ou melhor, pelo guia ideal, que via a Bahia melhor que os baianos: Carybé. Bem que Mirabeau Sampaio dizia que, nascido e criado na Bahia, nunca tinha visto um negro. Só depois de Carybé.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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