Matéria Corrida

Eu vi Cícero Dias

TEXTO José Cláudio

05 de Outubro de 2020

'Casal no Alpendre', década de 1950, óleo sobre tela, 65 x 54 cm, coleção Waldir Simões de Assis Filho, Curitiba

'Casal no Alpendre', década de 1950, óleo sobre tela, 65 x 54 cm, coleção Waldir Simões de Assis Filho, Curitiba

Imagem Reprodução

O título que comento é Eu vi o mundo, Cosac Naify, 2011. Sempre tive curiosidade de saber mais da vida de Cícero Dias. Desde os primeiros tempos, Noruega, Contendas e Jundiá. Apesar de eu ser de Ipojuca, Escada nos foi sempre lugar distante no tempo e no espaço. Em Ipojuca, passavam os ônibus de Sirinhaém, Rio Formoso, Barreiros, antigamente a maior cidade dessa linha, e até de Maceió, menos de Escada e Cabo. Os engenhos de Escada pertenciam a outras usinas. Não sei se já nessa época havia, entre Ipojuca e Camela, um atalho que ligava Escada ao Recife sem passar por Ipojuca. O que estou é querendo entender esse distanciamento das duas cidades. No tempo também porque Cícero é de 1907 e eu, de 1932. Deve ser nesse intervalo de 25 anos que tudo mudou, ou mais, porque o processo tem continuado até hoje: hoje já não é mais apenas usina engolindo engenho, é usina engolindo usina.

Na época de Cícero Dias, os engenhos tinham outra importância, não só econômica como intelectual. Cícero conta que “Jundiá não possuía um primeiro andar. Porém, estendia-se largamente, por uns cem metros corridos. Na frente da casa-grande ficavam salas amplas, no meio, um pátio ajardinado e dois enormes corredores que o ladeavam com vários quartos, três cozinhas e duas salas de jantar. Prosseguindo até os fundos, diversos aposentos: o quarto dos frades, o dos empregados, rouparia, banheiros correndo água o tempo inteiro e cobertos de azulejos coloridos. A casa-grande era cercada de patamares. (...) Quando os visitantes estrangeiros desembarcavam no Recife, como foi o caso de lorde Carnarvon, o célebre egiptólogo descobridor do túmulo de Tutancâmon, se hospedavam em Jundiá”.

E isso influía na formação intelectual do menino Cícero. Além de conviver com a nata da intelectualidade da época sem sair de casa, quando saiu já conhecia todo mundo, não só no Recife, mas no Rio de Janeiro, em São Paulo ou Paris. Aliás, naquela época, as viagens feitas por mar, era normal os jornais da Europa chegarem aqui antes do Rio e São Paulo. Os irmãos Rego Monteiro fizeram essa ligação Recife-Paris, bebendo sua pintura direto da fonte. Por isso que quando conheceu a pintura moderna praticada pelos brasileiros, Vicente disse que a pintura brasileira era feita de plágios.

“Antes de tudo, tia Angelina era pintora. Foi a minha primeira professora, de uma habilidade espantosa. Nada da história da arte lhe era estranho. Tinha um verdadeiro ateliê, onde não faltava material de pintura. Na época, tudo era importado. (...) O barão de Contendas era formado em direito e vários dos seus filhos também. Por isso, em uma sala, ao lado da escola, havia uma farta biblioteca, completa em matéria de direito. Antes do falecimento de Pontes de Miranda [Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda], levei minha mulher, Raymonde, à sua casa no Rio de Janeiro, para que ele nos contasse sua vida no engenho. Ele contou que tinha um quarto cativo na casa-grande de Contendas, como Clóvis Bevilaqua em Jundiá ou Tobias Barreto em Escada. Já se vê o nível intelectual dos engenhos. (...) Pontes de Miranda conheceu a escola primária de tia Angelina. Dizia que não deixava a desejar a qualquer outra do gênero. O primário era completo. Estudávamos línguas, sobretudo, por meio de mulheres estrangeiras que vinham lecionar nos engenhos. Pontes era muito mais jovem do que o grupo de Escada, formado por Tobias Barreto e o vigário Pedrosa, tio de Mário Pedrosa. (...) Tobias foi casado com uma filha bastarda do meu avô. (...) Ele era escritor, poeta, filósofo, grande admirador da cultura alemã. Dizia falar bem o idioma. Mas na passagem de um príncipe austríaco por Escada, contam que, para não se expor ao ridículo, Tobias desapareceu... Falaria mesmo alemão?”

Desculpe tanta citação. Mas se é de eu dizer o mesmo com outras palavras, melhor citar. “O contato que os senhores de engenho tinham com a Igreja fez com que dom Sebastião Leme e os frades do colégio São Bento dirigissem toda aquela juventude para escolas católicas: Sion, Sacré-Coeur, Assomption, São Bento..., muitos aos cuidados do cardeal Arcoverde, da velha família Cavalcanti. O cardeal era tio do cineasta Alberto Cavalcanti.”

Certa vez fui à casa do engenho Jundiá, isto é, algumas paredes, trechos de alicerce. Cavalos soltos pelo que tinha sido sala comendo o capim que crescia do chão. Dava para lembrar da Imitação de Cristo, “sic transit gloria mundi” (assim passa a glória do mundo). Bem, a glória de Cícero Dias é outra, feita de educação e talento, embora sua origem possa tê-lo ajudado em mil desdobramentos. Bem que Joca Souza Leão diz que o pior de ser pobre na cidade grande é não conhecer ninguém. Cícero nunca precisou ser apresentado a ninguém, como ele diz a certa altura. Também outra frase marcante é de Jean Boghici, na parte de Raymonde, Nós vimos o mundo: “Considero a obra Eu vi o mundo... ele começava no Recife a Guernica brasileira”.

Um excelente livro, leitura extremamente agradável. Cícero também era escritor. Como se diz, uma arte nunca vem sozinha. Parabéns Mario Helio, Augusto Massi, editora Cosac Naify e Simões de Assis Galeria de Arte. Aliás, a Simões de Assis já havia produzido uma belíssima publicação juntamente com Mario Helio, patrocínio da Telefônica, Cícero Dias/Uma vida pela pintura, 2002, a que sempre recorro quando preciso ver o pintor.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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