Matéria Corrida

Entre tantos

TEXTO José Cláudio

05 de Dezembro de 2022

Imagem Capa do livro 'Entre tantos', de Joaquim Falcão

“Viver é um contínuo interpretar-se e ao mundo”, diz o autor Joaquim Falcão logo no início. Cita Antonio Gramsci que dizia que todo homem é um filósofo, porque cada ação, por mais irrelevante que seja, como seu próprio cotidiano, revela um modo de ser e estar no mundo, mesmo que este revelar não seja intencional, consciente ou explícito, mas esteja de alguma forma concretizado na ação. E completa Joaquim: “Intérpretes do Brasil não precisam de notável conhecimento ou desempenho científico”. O que me autoriza a riscar e arriscar estas maltraçadas. “Foi este o critério entendido de intérprete do Brasil no cotidiano de cada um que usamos nesta trilogia: Quase todos, Muitos outros e, agora, Entre tantos.” Ele primeiro me trouxe Entre tantos, e é neste que me detenho por ora. Joaquim começa falando, logo na apresentação, de J. Borges, “um grande intérprete do povo pernambucanamente brasileiro”. Como sou do ramo, apresso-me em aplaudi-lo. Aplaudi-los.

Esse pensamento já existia em Gilberto Freyre que, sem detrimento dos grandes autores, mandava estudar nossas comidas e arquitetura dos mocambos. 

No capítulo O escultor filósofo, publicado originalmente na Folha de S.Paulo, em 2019, dedicado a Francisco Brennand, começa Joaquim: “Na década de 1960, o futuro do Brasil passava pela intensa alfabetização de nosso povo. Todo. Este futuro ainda está por completar”. E lembra: “Francisco Brennand participou pioneiramente desta tarefa”. E: “Foi o autor dos desenhos da primeira cartilha de Paulo Freire. Sua arte estava lá”. 

Prefiro citar ao pé da letra do que tentar dizer a mesma coisa com outras palavras, menos precisas, fingindo que escrevi. 

“Os fornos foram também autores algumas vezes. (...) Quando passava do ponto de cozimento, ou ficava aquém, ou algum imprevisto, o forno se rebelava, assumia, então, a autonomia da obra diante do criador.” Certa vez, Lívio Abramo disse que deveríamos aceitar as sugestões do acaso, do erro, e não eliminá-las simplesmente para seguir um projeto. 

No capítulo A amizade entre Jarbas Vasconcelos e o eleitor, fala “da empatia e do pertencimento”. “A amizade além da confiança eleitoral.” “É mútua e convergente com a cultura popular, do povo, de onde vem a maioria dos votos. Coleciona não o barroco ou a prata. Mas a arte popular e artesanato como o ar que respira. Sabe tudo sobre esses seus amigos. Todos. Em sua casa. Partilham mútua estética J. Borges, Maria Amélia ou Zezinho de Tracunhaém.” “Jarbas e seu eleitor são amigos também em nossa comida. Não na gastronomia de refinamentos e elegâncias. Mas na comida de verdade. O cozido dionisíaco e pantagruélico, temperado do seu próprio entusiasmo. O sarapatel, calicezinho de pitu, caju, bode, cabrito, dobradinha, buchada e tudo mais. E cartola.” E termina: “A amizade entre Jarbas e o eleitor nos educa na democracia”. 

O capítulo A cultura como amizade começa: “Precisamos convidar, para este conselho, pessoas montantes. Dizia, em francês, o pernambucano Aloisio Magalhães, no final da década de 1970, então secretário nacional da Cultura. O equivalente hoje [nov. 2021] a ministro da Cultura”. “Mas o que queria mesmo dizer com o qualificativo, quase pernóstico, de montante?” “A tradução em português é ascendente.” E assim fez. Foram protegidos “os fazeres industriais, como as tecelagens de Minas Gerais”, “o patrimônio imaterial, o que hoje todo país e toda cidade tem”. “Como o frevo, o samba de roda, o Círio de Nazaré, a Feira de Caruaru, a vaquejada, o queijo de Minas Gerais.” 

Joaquim diz que o patrimônio cultural em nossa história se transforma no “cimento de nossa amizade”. De Joaquim Falcão com Aloisio Magalhães. E assim vai trazendo à nossa presença criaturas que merecem essa aproximação, ou melhor, que precisamos conhecer, ao lado de um punhado de outros que, independentemente do lado político, mereçam nossa profunda reverência, mesmo que o autor não lhes dedique o capítulo por inteiro. 

Claro que estas citações pretendem apenas chamar atenção para o livro. Depois de Aloisio, Joaquim fala de Clóvis Cavalcanti, que, morador de Olinda como eu, às vezes me traz oiti-corós, fruta de que poucos gostam e pouco conhecida atualmente, de que possui alguns pés em Gravatá. O capítulo sobre Clóvis é um dos mais longos: Os invisíveis

No Um guia aos educadores, o protagonista é Lauro de Oliveira Lima. Decisão judicial é patrimônio documental, Ayres Britto. O escondidinho e o arrumadinho, Gilberto Freyre. 

Joaquim, a certa altura, fala de sua irmã Edméa Falcão, que conheci. “Embora nascida, formada e vivendo na Zona Sul do Rio de Janeiro, era de família pernambucana. Frequentadora todo ano de Ponta de Pedras. Dançava o frevo e não perdia o carnaval de Olinda. Revezando no bloco Eu acho é pouco e no Bloco da Saudade.” 

A partitura e a Constituição: “Aparentemente, uma Constituição, norma fundamental ou, como disseram os ingleses há séculos atrás, a Carta Magna, não teria nada a ver com uma partitura, a expressão gráfica da música. Mesmo que seja da Nona Sinfonia de Beethoven, do Hino Nacional Brasileiro ou de um simples frevo pernambucano. Digo aparentemente, pois acredito que exista, por mais que impensável, uma série de encruzilhadas entre ambos. Constituição e partitura”. 

A política como prolongamento da paz, Marco Maciel, “onde ele estaria hoje, se ativo fosse, o nosso Marco Maciel?” Onde Marco Maciel estaria hoje? Segundo artigo sobre Marco Maciel. Tancredo no Recife. O “Corta-jaca”. Rui Barbosa e Nair de Teffé. Um prêmio maior merecido. É o Prêmio Jabuti ganho por Cida Pedrosa, de Bodocó, com o livro Solo para vialejo. “A impressão gráfica da Cepe é primorosa.” 

Primorosas são também as ilustrações de J. Borges e o capricho da Editora Massangana, da Fundação Joaquim Nabuco, na edição de Entre tantos.

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