Matéria Corrida

É hora

TEXTO José Cláudio

09 de Fevereiro de 2022

'O batismo de Cristo', de Verrocchio, 1,77 x 1,51 m, 1480. Detalhe. O anjo à esquerda foi pintado por Leonardo da Vinci

'O batismo de Cristo', de Verrocchio, 1,77 x 1,51 m, 1480. Detalhe. O anjo à esquerda foi pintado por Leonardo da Vinci

Imagem Reprodução

Nenhum pintor, desde o tempo das cavernas, pinta do mesmo jeito o tempo todo. Cada quadro é promessa de novidade, porta para um mundo novo, mesmo que o pintor não esteja consciente. É inerente ao ato. Pintura é pesquisa, e cada pincelada é um mergulho no desconhecido, inclusive no caso do pintor que pinta em série, como se fosse uma impressão mecânica: um dia, no meio da repetição, um acidente, uma troca de tinta, um erro de desenho, a falta de uma cor, uma correção, e nos salta gratuitamente uma opção fora dos planos. 

Lembro de Lívio Abramo ter falado nisso quando dava aula de xilogravura na escolinha do Museu de Arte Moderna de São Paulo, na Praça Roosevelt, onde também ensinava história da arte o alemão Wolfgang Pfeiffer, de quem foi aluna Aracy Amaral. Gilvan Samico estudou com Lívio. Não tem cabimento, dizia Lívio, você recusar uma dádiva, que não caiu do céu coisa nenhuma, mas resultado, isso sim, do seu trabalho intenso e atento, em favor de um plano anterior hipotético e que você muitas vezes nem sabe aonde vai chegar. E isso, o aproveitamento desse fato novo, pode levá-lo a mudanças tão radicais que obrigará você a abandonar não somente o quadro, mas toda sua arte anterior, como se um novo pintor tivesse nascido ali, naquela fração de segundo, e com tanta força que você não saberá mais trabalhar a não ser à luz dessa recente descoberta. Você não poderá fingir perante si próprio que não sabe o que já sabe. 

É assim que o pintor vai andando, sem medo de se perder. Só se perde quem já está perdido. 

Quando você pinta, critica, comenta, alude a tudo que já foi pintado. Você vem de um pintor que está por perto, mas, à medida que cresce, cai no mar da pintura. Às vezes, a gente diz que esse ou aquele pintor é exceção, mas não passa de uma forma de salientar-lhe a relativa originalidade. Escavaque e você chegará às raízes. E assim continuaremos a renascer o tempo todo, mesmo os acomodatícios. Não se pode recusar uma oferta captada num momento feliz de nossa sensibilidade por não fazer parte dos nossos planos iniciais. 

Também é cansativo ficar obrigatoriamente tendo de meter um achado em todos os quadros, como um cacoete, pensando que assim será melhor identificado como uma espécie de marca registrada. 

Quando passei a aceitar encomendas, e com elas a estética do cliente, não é que tenha abdicado da autoria da obra e sim procurado enriquecer a minha visão, nesse aprendizado infinito que é a arte da pintura. Nunca tive medo de deixar de ser eu mesmo e de fato o que ocorre é o inverso. Cada vez você é mais você. Também me lembro de ter escrito que toda obra tem de se constituir um ato de bravura. 

Não devemos evitar erros ou corrigir o acidente, eliminá-lo sem exame, em favor de um projeto: este sim deve ser imediatamente abandonado. Gauguin disse: observa a natureza, mas fecha a janela e pinta teu quadro. Isso quer dizer que a partir desse momento o quadro é soberano, não nos devemos prender a nada anterior, nenhuma regra, nenhuma lei. 

Sei que seguimos leis, regras, como queira. Mesmo não jurando fidelidade. No meu caso, uma dessas “leis” é pintar o quadro até o fim, até não encontrar mais o que fazer nele. Aprendi isso com o grande desenhista Arnaldo Pedroso d’Horta. Nenhum quadro deve ser dado por perdido. Muitas vezes ele contém ideias que ainda não alcançamos. Nestas minhas noventa primaveras, não raro descubro quadros que ia pintar por cima e acho uma maravilha anos depois. Outras vezes, paro para atender o telefone ou algum outro motivo e quando volto ouço o quadro gritar: não toque mais em mim! Certa vez Di Cavalcanti disse, depois de batalhar, embora ele não fosse de muito batalhar, num quadro: “Não sei mais o que fazer nesse quadro, pra que tá me enganando?” e assinou. 

Outra vez, ao voltar de uma exposição que tinha quadro dele, ele disse: “Meu Deus, como estava horrível o braço daquela mulher! Eu devia ter feito qualquer coisa, botado um bracelete. Eu estava cego!”. Já Carybé pegava uma resma de papel-jornal, o de que mais gostava para seus incríveis bicos-de-pena, e ia desenhando quase sem olhar. Depois escolhia um. Ele desenhava com pena de escrever. 

Na década de 1950, o desenho e a gravura brasileiros estavam em alta. Num mundo dominado pelas bienais de Veneza e São Paulo, essas entidades determinavam o que era bom em matéria de artes plásticas. E isso praticamente acabou com a arte engajada, preconizada pela esquerda. Pintar quadro logo caiu da moda. A arte moderna brasileira, que Vicente do Rego Monteiro já dissera se alimentar de plágio, continuava em todo esplendor de variações e imitação, performances, instalações, arte corporal e não sei que mais dominavam os espaços. Não sei se não dominam até hoje. No meu caso pessoal, comecei a perguntar aos clientes o que queriam que eu pintasse. 

Acontece que, em virtude de muito tempo na praça, me pediam e pedem, mormente, quadros meus que viram em algum lugar e gostaram. Eu procuro melhorá-los, para não repeti-los, embora, na renascença, não houvesse essa preocupação com originalidade, mesmo quando encomendavam a determinado pintor, de preço mais acessível, quadro de outro pintor no auge da fama. Aliás, o método clássico de ensinar arte era fazer do aprendiz imitador do mestre. Foi assim com Leonardo da Vinci, que se destacou com um anjo pintado no quadro de Verrocchio, e Rafael, que imitava Pegurino a ponto de, às vezes, não se saber qual dos dois era autor do quadro. Acho que está na hora de partir daí.

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