Matéria Corrida

Deolindo (Recife, 1918 - Rio de Janeiro, 1942)

TEXTO José Cláudio

02 de Setembro de 2018

Imagem Reprodução

O ano vai se acabando e não vi nada sobre o centenário de nascimento de Deolindo Tavares. Eu mesmo só lembrei porque o amigo André Carneiro Leão telefonou falando do assunto. Como Deolindo, também cursei dois anos na Faculdade de Direito do Recife; sendo que ele estudou, presumo, e eu apenas fiquei por lá com medo de sair para não dar desgosto à família. Digo “presumo” porque o poeta pretendia continuar os estudos na Faculdade de Direito de Niterói. Outra coincidência é que na viagem de navio, como se viajava na época, saltou na Bahia, “passou algumas horas em terra, e certamente se divertiu, comendo os condimentados quitutes baianos” (Autores & Livros, coluna de Múcio Leão no Suplemento Literário de A Manhã, Rio de janeiro, 11/03/1945), sendo que na Bahia me diverti mais tempo, e é como se continuasse o meu curso, não de direito mas de pintura, até hoje inconcluso. O que é bom, porque nunca perco a vontade de aprender.

“Vou me encontrar com Cristo/a uma e meia da manhã”. Tendo adoecido no navio, nem chegou a se hospedar no Rio de Janeiro, a não ser no hospital onde faleceu a 6 de maio de 1942. Nascera a 21 de dezembro: “Sagitário!” exclamaria Guita Charifker, que não sei se teria ouvido falar nele. Quanto a mim, foi na Faculdade de Direito, 1951, que soube da sua existência, justamente através desse verso “Vou me encontrar com Cristo/a uma e meia da manhã”, que fiquei repetindo até hoje, como se fosse uma senha dos estudantes daquela época, mesmo que não soubessem mais nada de sua obra. Eu mesmo, que a única coisa que fazia na Faculdade era me juntar a quem gostasse de poesia e arte, praticamente só fiquei sabendo, de toda a sua poesia, desses dois versos: “Vou me encontrar com Cristo/a uma e meia da manhã”: talvez por estarmos justamente nos afastando dele, de Jesus Cristo, e de tudo que tivesse cheiro de religião, “o ópio do povo”. E foi nesse vácuo, que o poeta já devia estar sentindo na pele, que plantou o verso genial, que nos pegou a todos de surpresa, principalmente pelo tipo de abordagem, pouco comum ou inédito para nós, habituados ao tratamento de “Senhor” quando se referia a Cristo, o Todo Poderoso, e aí vinha Deolindo com aquela simplicidade e grande intimidade de gente sua que o estivesse esperando em algum lugar próximo, logo ali, talvez no mesmo bairro, para acertar com ele algum assunto comezinho, que não precisasse de conhecimentos teológicos para entender, como de fato o motivo de Deus tê-lo enviado, para tornar-se perceptível à nossa condição humana.

Também esse “vou me encontrar” confere ao verso uma atualidade permanente, colocando-nos sempre na perspectiva desse encontro, não importa a distância no tempo ou no espaço que dele estivermos. A possibilidade é real, questão de horas, de poucas horas, expressa nesse “uma e meia da manhã”. Até de minutos: trinta minutos. O que alude a uma certa urgência, a uma certa importância desse encontro, e ao mesmo tempo a não exigir maiores preparativos. Pode ir do jeito que está.

Esses dois versos, do poema “O Encontro”, “Vou me encontrar com Cristo/a uma e meia da manhã”, são repetidos duas vezes ao longo do poema; depois, o poeta volta a eles, desta vez transformados num único verso, e de forma mais impositiva: “Tenho que me encontrar com Cristo a uma e meia da manhã”. Para entender melhor a ideia de tempo em Deolindo, há de se levar em conta a principal medida, ou principal sistema, a que todo conteúdo e até mesmo a lógica deve se submeter: o sentimento. Se você verificar em outro poema, também dos mais conhecidos, “O Poeta”, ouvirá a seguinte explicação: “Para mim não há, nem ontem, nem amanhã, nem depois” e “Para mim o dia é uma eternidade./A eternidade o menor tempo;/para mim o tempo não existe,/Pois rasguei todos os calendários do mundo.” O sentimento e intensidade.

Mas tudo não passa de um arroubo. Como se houvesse caído em si, pergunta-se: “Por que os caminhos não se fizeram ásperos/muito embora tenham brotado sebes de rosas/às margens dos caminhos?”, “Por que, então, neste momento/não me cega a estrela das grandes vigílias?/Preciso mais do que nunca estar desperto,/e sinto que adormeço sobre finíssimas lâminas de ouro”. Também estranhamente não ocorrem os fenômenos que indicariam a hora aprazada: “Mas o vento não canta sinfonias enlouquecidas/nem os espinhos das roseiras se cravam em meu peito./Sinto que me transformam em minúsculo grão de poeira/sob o silêncio da noite obscura”. Parece-lhe humanamente impossível manter-se no êxtase: “Preciso estar desperto, mais do que nunca desperto,/antes que a aurora ilumine os telhados do mundo,/preciso estar desperto,/mas há tantas encruzilhadas e caminhos ásperos, tantos desesperos, tantas incertezas.”

Por fim, sucumbe. Como se apesar desse momento de luz não pudesse ascender, não pudesse se desenterrar da lama de que somos feitos, apostando no falso brilho do transitório: “Ele me espera, mas não o encontrarei ainda./Estou adormecido sobre finíssimas lâminas de ouro”.

Esse segundo poema que cito, “O Poeta”, talvez pelo ostracismo a que Deolindo Tavares tem sido submetido, ou pelo menos ninguém fala nele nos meios onde círculo, ou porque morreu muito cedo, aos 24 anos incompletos, isso há 76 anos, no auge da Segunda Guerra que convulsionava o mundo, não havendo nem a Copa, é outro de que ainda me lembro, ecoando trechos inesquecíveis: “Sou mais pobre que Job/ sou mais rico do que Salomão./ Sou um poeta. Sou o maior de todos os descobridores./ Sem navio, sem bússola e sem leme,/ descubro istmos e estrelas” e “adormeço num som,/ desperto numa cor,/ morro afogado no mar de uma inesperada estrela”.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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