Matéria Corrida

Darel (Palmares, PE, 9/12/1924 – Rio de Janeiro, RJ, 7/12/2017)

TEXTO José Cláudio

05 de Junho de 2019

Capa do catálogo da exposição de Darel Valença na galeria Futuro 25

Capa do catálogo da exposição de Darel Valença na galeria Futuro 25

Imagem Reprodução

Esta apresentação foi escrita em 1985 a pedido de Tereza Dourado para exposição na galeria Futuro 25 de sua propriedade. Para se adequar ao espaço desta coluna, foi dividida em seis partes.

É uma honra muito grande para mim como pernambucano escrever sobre Darel Valença Lins e até me imolar — sim, deixemos que o discurso siga o seu rumo — para devolver-lhe com um pedaço de mim uma parte do que lhe tiramos, que era dele, continua sendo, e jamais poderemos devolver. Ele também nos pune com a via trágica em que se afunda, única para a qual tem faro, mariposa — usando metáfora do ambiente dos seus últimos trabalhos — a se esfacelar contra o foco pelo qual é atraída. Tantas vidas tivesse ele, tantas voltaria ao mesmo ponto, do estraçalhamento e queima, bagaço incandescente como o que vi através das bocarras de fogo da fornalha da Usina Catende.

Fui lá em 1971 ou 72, quando passamos eu e minha mulher um carnaval em casa de Luís Antônio, neto de Seu Tenente. “Darel começou aqui” — disse-me Luís ao visitarmos o escritório, vazio àquele dia, embora a usina estivesse moendo. Parecia que os móveis perguntavam por ele: no entanto eu conhecia-o tão pouco! Não passando de auxiliar de desenhista num dos muitos escritórios da Sudene, não sabia eu o tipo de solidariedade que poderia prestar-lhe, ou quem sabe, Darel é quem me estivesse sendo solidário, como a dizer:

Olha, eu também
Já passei por isso
Fui pra Recife
Sem conhecer ninguém.

Como nesse coco, que eu inventei agora, Darel veio pro Recife, além de desconhecido, liso. Procurou quarto numa pensão na esquina da Rua da Imperatriz com Rua da Aurora (o sobrado está descaracterizado mas a janela ainda está lá, no terceiro andar). Perguntou ao dono como era o pagamento, se tinha de dar alguma coisa logo. O dono, um senhor velhote e sisudo, respondeu que não, que ele fosse arranjar a vida, o pagamento era o mês vencido. Então Darel teve a ideia de perguntar-lhe: “O senhor não tem medo de ser roubado, de levar calote?” O velhote disse: “Não”. Darel insistiu: “Por que?”. O velhote, segredou-lhe bem baixinho e rascante ao pé do ouvido: “Porque não deixo”.

Através de um engenheiro arranjou trabalho no D.N.O.S., onde torna a encontrar Augusto Reinaldo, a quem substituíra no escritório da Usina Catende, e entra para a Escola de Belas Artes de Pernambuco com o ideal de beleza inicial de pintar paisagens enluaradas, cajueiros. Certo dia, na Escola, Augusto Reinaldo lhe disse: “Olha, Darel, se você me encontrar algum dia rico, mas sem pintar, pode dizer que encontrou um fracassado”. Anos depois encontrou-o com escritório de arquitetura no Edifício Sulacap, bem instalado no coração da cidade, e um Buick, o chique na época: mas sem pintar. Darel consegue transferência para o D.N.O.S. do Rio de Janeiro, sua meta. Mostrou-me já do ano da chegada — eu não vou botando datas porque estão nos dados biográficos — no Rio, foto com Ramiro Martins, Inimá de Paula, Maria Leontina e lberê Camargo, quando da despedida deste para a Europa com prêmio de viagem ao estrangeiro do Salão Nacional — vá lá que eu bote esta só para o leitor conferir — de 1947 (naquela época o prêmio dava para viajar).

Ainda menino na Usina, Darel tinha lido na Revista da Semana: “Milton da Costa ganha o prêmio de viagem à Europa”. Darel pensou: “Vou tirar esse prêmio”. Quando a irmã mostrou ao pai no Recife uma página inteira de jornal, “Darel ganhador do prêmio de viagem à Europa”, “Darel, melhor desenhista do Brasil”, o pai limitou-se a dizer: “É, mas eu queria ele doutor, e aqui”. Aliás, quando Darel lhe mostrara um recorte do primeiro desenho que saiu publicado, em O Jornal, 1947 ou 48, dizendo ter ganho trezentos cruzeiros, o velho atirou-lhe: “Você não tem vergonha de estar roubando a humanidade?” (o mesmo aconteceu comigo, quando mostrei ao meu pai, que também queria que eu fosse doutor, um cheque ganho ao pintar um retrato; papai olhou o cheque com desgosto e perguntou: “Quem foi o besta?”). “O mundo está cheio de pais, pais entre aspas, que não me refiro somente ao meu pai” — diz-me Darel —. “Há muita gente que pensa assim. Vender uma mercadoria no armazém, está, certo, tem que ganhar. Artista, não.”

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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