Matéria Corrida

Câmara escuro

TEXTO José Cláudio

14 de Abril de 2023

Imagem Arte sobre capa do livro

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Câmara escuro é livro de Moacir Amâncio. A última vez que nos vimos, Hermilo Borba inda era vivo. Moacir Aparecido Amâncio (Pinhal, SP, 1949). Foi Hermilo quem trouxe aqui em casa essa fruta rara: brasileiro, assim que nem eu, convertido ao judaísmo. “Que nem eu” na cor. Ainda por cima, professor de hebraico da USP. Se o encontrasse na rua, talvez não reconhecesse. Nem ele a mim. 

Hermilo disse, de passagem, que ele estava desempregado. Sem dar nenhuma importância ao fato. Logo Hermilo, que se preocupava muitíssimo com a situação dos amigos. “Ele arranja trabalho quando bem quiser”, disse Hermilo. “Pra ele não é problema.” 

Câmara escuro me pegou de surpresa. Não sabia desse seu dom de escrever verso. Inovador, ainda por cima. 

Sou de Ipojuca, aqui perto. Relativamente perto. Mas naquele tempo era longe. Antes de meu pai me botar interno no Marista, aos 13 anos, trazia-me ao Recife às vezes. Eu amava assistir aos vendedores de folheto, “cordel” como chamam hoje, cantarem A intriga do cachorro com gato, A chegada de Lampião no inferno, e outros que gosto de recordar: O soldado jogador, A herança da minha avó, A peleja de Riachão com o Diabo, A descrição do beijo, mil outros. No pátio do Mercado São José. Perdoem alongar-me. Os cantadores de folheto botavam os folhetos empilhados numa mesinha, pegavam um folheto, que liam sem abrir as folhas emendadas, segurando-o à altura dos olhos, pois liam de pé, a outra mão em concha no ouvido, cantando mesmo e não falando, a cada par de versos, que chamam “linha”, ou estrofe, que chamam “verso”, parando e explicando aos ouvintes para não perderem o fio da trama; respondendo as perguntas de cada um da numerosa plateia que se formava, até repetindo, falando, a estrofe: ninguém me tirava dali por dinheiro nenhum. Invariavelmente eu comprava o folheto lido, digo, cantado. Também extraordinários eram os vendedores de remédios, sempre trazendo um bicho diferente, uma cobra venenosa, uma ema, como vi na Feira de Caruaru. O rádio acabou com tudo. 

Não esqueço aquela história da fila do INPS, uma dessas siglas, IAPETEC, IAPUTUC, me vem o samba de Jorge Veiga, se você quiser eu canto: “Eu sou trabalhador/ eu moro em Belford Roxo lá numa viela/ num barraco sem janela/ e pago todo mês/ trezentos e cinquenta de aluguel/ ao português seu Manuel/ eu ganho três contos de salário/ não precisa dizer que sou operário/ eu tenho tanto desconto/ que já ando tonto/ todo atrapalhado/ eu só vivo pendurado/ eu pago IAPT, IAPETEC, IAPOTOC, IAPUTUC/ meu patrão é cheio dos truques/ e agora inventou/ que eu tenho de pagar um tal de LBO/ vamos com calma/ tenha dó/ eu fui ao sindicato/ falei com o advogado/ o Dr. Macário/ ele me disse que LBO/ significa limpa o bolso do otário”. Mais ou menos isso. 

Você estava na fila e o cara da sua frente, mãos cruzadas nas costas, segurava os documentos. Você leu nome dele: Moacir Aparecido Amâncio. Aí você perguntou: “Este é o seu nome, Moacir Aparecido Amâncio?”. Ele respondeu: “Pois é. Com um nome desse e ainda tem, aqui na mesma agência, um desgraçado com nome igual! Dá pra acreditar? Ele atrasa os impostos e, de vez em quando, sou chamado em lugar dele, para prestar contas, porque acreditam que, com tal nome, só pode existir um”. 

Seria uma maravilha falar sobre sua poesia, quer dizer, você me apresentar pessoalmente, presencialmente, sua poesia, você seu próprio aedo. Eu iria interrompê-lo pedindo explicação, você me explicando em hebraico. 

Brincadeira. Hoje Sexta-feira Maior, comi bredo de coco, estou feliz. Ou será porque você me mandou seu Câmara escuro?

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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