Matéria Corrida

Aquele abraço

TEXTO José Cláudio

06 de Fevereiro de 2023

Imagem Desenho de José Cláudio, 2023

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Bati palmas. Ou toquei a campainha? Nem lembro mais. Era numa casa do estudante em Louvain, Lovaina em português, Bélgica. O escultor Sérvulo Esmeraldo sabia onde obter hospedagem de graça e descobrira esse endereço.

Antes Sérvulo e eu morávamos em São Paulo e havíamos exposto no Clube dos Artistas e Amigos da Arte. Ele gravura, eu desenho. Eu ganhei uma bolsa para a Itália (Roma) e Sérvulo idem (Paris). Quando a minha bolsa terminou em Roma, Sérvulo me convidou para Paris. Em Paris, ele tomava conta de casas de brasileiros que haviam tirado férias. E me deu três casas para tomar conta. Assim vivíamos.

Tratava-se de casal sem filhos. Ele químico, trabalhando em Bruxelas, para onde ia toda manhã. A mulher, Madame Morrin, fundara com o marido essa casa para estudantes estrangeiros pobres e, durante a época de férias, aceitava qualquer outro não matriculado em escola nenhuma, como era o meu caso.

O meu interesse maior era visitar a Expo, ora ocorrendo na capital, quando construíram um átomo gigantesco, que virou símbolo da cidade e lá está até hoje, como ocorreu com a Torre Eiffel em Paris.

Na Expo, montaram grandes exposições de pintura. A maior retrospectiva de Salvador Dali, a maior de Jerônimo Bosh, 50 anos de Arte Moderna, que incluía um Portinari da série Retirantes, retrospectiva de James Ensor, uma maravilha enfim.

Mas voltemos àquela tarde de domingo em Louvain. Bati palmas, ou toquei a campainha, logo a porta se abriu e um rapaz assim do meu tope, da minha cor, moreno que passa por branco da Bahia para cima, como escrevi certa vez, perguntou quem eu era, do que se tratava. Respondi: “José Cláudio da Silva, brasi...” Ele pulou de lá, nem me deixou terminar a frase, me apertando num abraço que quase rolamos os dois para o meio da rua, eu sem saber do motivo. Ele aí abriu os braços e disse: “Vinimos mostrar a estos europeus lo quanto valem nuestros índios!” E vendo que ainda não entendera, quase gritou: “El Brasil acabou de ganhar a Copa do Mundo!”, traduzo aqui no meu portunhol.

Ganhar a Copa de 1958, pude testemunhar, porque chegara à Itália no ano anterior, foi como se Pedro Álvares Cabral tivesse descoberto o Brasil pela segunda vez. Como vivia de albergue em albergue da juventude, descobri que ninguém sabia nada sobre o Brasil. Um único hóspede desses albergues, não lembro a cidade, colecionava hinos de todos os países e tinha o hino do Brasil. Também no dia em que cheguei à Itália, em Nápoles, uma moça sentou-se ao meu lado no trem. Querendo puxar conversa, apontou, numa revistinha de letras de música, a letra de uma música onde estava escrito: “Buenos Aires”. Aí eu disse: “Rio de Janeiro”. Era como se tivesse falado etrusco. Às vezes, os hóspedes, estudantes, discutiam quem iria ganhar a Copa. Diziam sempre países europeus. Quando eu sugeria Brasil, pronunciando em inglês (Brezil), me olhavam como se eu tivesse dito um absurdo (geralmente a língua dominante era inglês).

Quando eu estava no albergue de Veneza, na Ilha Giudecca, já quase noite, no amplo espaço calçado na frente do albergue, uns meninos de seis ou sete anos, um deles, bem na minha frente, passou a bola de calcanhar e gritou: “I brasiliani fanno così” (“Os brasileiros fazem assim”). Perguntei por que dizia aquilo. Ele, correndo mesmo, disse: “I brasiliani hanno vinto la Russia” (“Os brasileiros venceram a Rússia”). A Rússia até então era o bicho papão.

O mexicano pegou minha maleta de sola, comprada na Rua do Rangel por papai aqui no Recife, anos antes, e me guiou até a dona da casa, Madame Morrin. Ela me explicou que eram dois em cada quarto e perguntou qual língua preferia que falasse o companheiro. Eu disse obviamente o português. Mas sabendo pouco provável, acrescentei francês, língua em que estava me entendendo com Madame Morrin, espanhol, italiano e, por último, inglês. Ela cochichou alguma coisa com o mexicano e ele me levou por um corredor para o quarto. Quando a porta abriu, apresentou-se um... hindu! Que língua vou falar com esse cara? Antes de formular o pensamento ele me estendeu a mão e disse com sotaque lusitano: “Muito prazer”. Era de Goa.

Não entendia nada de futebol. Me explicou que falava português com a mãe, mas não sabia escrever na língua. Fora alfabetizado em inglês.

Madame Morrin entendia de pintura. Perguntou-me sobre o que queria ver na Bélgica. Falei do políptico dos irmãos Van Eyck na Catedral de Gent, do ateliê de Rubens em Antuérpia, do quadro de Jean Fouquet A Virgem e o Menino (que Murilo Mendes achava o mais belo quadro de toda a história da pintura), do Museu de Antuérpia e mil assuntos sobre todos os pintores do mundo.

Despedi-me uma manhã, lamentando ter de voltar para Paris, minha base, pois não tinha mais recursos, e corri para o carro do químico, ela dando com a mão que esperasse, ele reclamando: “Essa mulher não sabe que tenho hora!”, quando ela chegou com um envelope, olhei, no mínimo três dedos de grossura de dólares. “Para você conhecer um pouco mais de Bélgica”, ela disse. O marido partiu com o carro. Nem pude agradecer.

No albergue da Giudecca, quando entrei, o papá-albergatore, gritou lá do seu estrado: “Dídi! Váva! Gárrinca!”. E todos aplaudiram, gritando, assoviando, batendo palmas ao novo país.

Algum tempo depois, subíamos uma rua em Madri, Murilo Mendes, Maria da Saudade, sua esposa, e este que vos fala, quando, vem descendo, com uma caixa de sapato debaixo do braço Vavá. Eu disse que era do Recife, demos-lhe parabéns.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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