Matéria Corrida

Anotações de um pintor

TEXTO José Cláudio

04 de Janeiro de 2023

Eduardo Corrêa de Araújo. 'Autorretrato'. Óleo sobre tela, 100 x 46 cm, 1988

Eduardo Corrêa de Araújo. 'Autorretrato'. Óleo sobre tela, 100 x 46 cm, 1988

Imagem Reprodução

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O título do livro é Natureza e arte: Anotações de um pintor, de Eduardo Corrêa de Araújo, Cepe. Quando leio livro sobre um pintor, seja ou não de sua autoria, me ponho logo como termo de comparação. É natural; sendo eu também da profissão. Se é que se pode hoje chamar isso de profissão. Talvez fosse melhor dizer “dedicação”. Tanto faz biografia de pintor atual ou de séculos atrás, Botticelli ou Rafael, Leonardo ou Michelangelo, Goya ou Velázquez: perdoai, leitores, é que me delicio em pronunciar esses nomes. 

Quando o pintor diz uma coisa da vida dele, do começo, do meio ou do fim, sim também do fim, porque já tenho 90 anos completos, me vem imediatamente em mente em que pé estava a minha própria vida naquele momento. 

Engraçado é que Eduardo Araújo, mesmo sendo daqui do Recife, tendo inclusive convivido comigo em sua fase adulta desde a mocidade, em nenhuma hora a sua vida coincidiu com a minha. Não gosto dessa palavra “inclusive”, geralmente desnecessária, mas neste caso significa que a convivência não quer dizer familiaridade. Ocorreu já motivada pela pintura. Eduardo tinha um jipe e nos levava para pintar ao ar livre, a mim e a Guita Charifker. A amizade dele era mais com Guita. 

Eu não conheci Guita do tempo do Atelier Coletivo, do Recife, de 1952. Quando ela entrou, eu tinha saído. Mas ela me conhecia através dos outros componentes do Atelier, principalmente Leonice, com quem me dava desde antes, de um grêmio literário na Rua da Glória, morando eu na contígua Rua da Santa Cruz. É complicado. Ainda: Giuseppe Baccaro criou em Olinda, anos depois de fechado o Atelier Coletivo da SAMR (Sociedade de Arte Moderna do Recife), um novo Atelier Coletivo, fazendo parte deste alguns artistas fundadores do anterior, como Gilvan Samico e eu. 

Eduardo, não sei se necessário dizer, é um artista de grande rigor formal, de grande independência e originalidade, que eu muito admiro. Podemos mesmo falar em uma obra relevante, grande parte da qual continua com ele. Merece um museu, antes que se disperse. 

Continuemos com suas anotações. Ou adendos às suas anotações. Eu, matuto do interior, que estudei interno na capital, continuo sem conhecer ninguém, só sei daqui o que ouvi de pessoas idôneas. Francisco Brennand me disse, certa vez, que quem tinha dinheiro na Várzea não eram os Brennand e sim os Corrêa de Araújo. E aí fiquei eu na minha ignorância imaginando que esse jeito contido que transparece no livro é como se dissesse o tempo todo: esse sou eu, meu eu verdadeiro, o eu que importa, depurado de todas as insignificâncias. 

Eduardo contradiz Lionello Venturi, de quem cita trechos do Storia della critica d’arte, onde diz que ninguém aprende pintura olhando pela janela, mas sim de outros pintores. Eduardo acredita que aprende pela janela, pelo ar do lugar, pelo amanhecer, pelo barulho da água do rio, pela imensidão do mar, pela cor do canavial, não como motivo, quero dizer, mas como mundo que o cerca, prodigalizando um estado propício à materialização de um objeto que é fruto da realidade, mas não tem nada com ela, e sim com o espírito do pintor: a pintura. Parece que a pintura que ele quer atingir é mais o retrato de sua alma do que do objeto pintado, servindo este de pretexto ou quem sabe empecilho. 

Sempre. Tanto que vive pulando de lugar: Olinda, São Luís, Escada, Sítio, Caruaru, Olinda, Noronha, Florianópolis, Ostuni (Itália) – pretendendo até, numa das vezes, ficar definitivamente por lá, naturalizando-se italiano –, Pau Amarelo, Recife. Dentro da própria arte, entusiasmou-se por xilogravura, suas ferramentas, levando-o à escultura em madeira, atingindo sempre em tudo uma maturidade total. 

Talvez essa sua maneira de ser, esse pudor em falar de si próprio, venha de uma formação aristocrática, embora diversas vezes declare sua origem índia e negra, culturalmente falando, diga-se de passagem, porque fisicamente é branco, louro, e sua atração pelo popular. 

Se você pegar um trecho de sua autobiografia, que não deixa de ser estas suas anotações, você se admirará da absoluta semelhança entre as anotações de um dia para o outro, de um ano para outro, de uma década para outra. Se você trocar de lugar, botar uma anotação no lugar da outra, possivelmente ninguém notará. 

Muito lido, seu livro é recheado de citações de grandes nomes: Cézanne, o poeta Sá Carneiro, Thomas Mann, Montaigne, Goethe, Picasso, Cesare Pavese, Victor Hugo, Rilke, Jung, Petrônio, Paulo Rónai, D’Anunzio, Rimbaud, Henry Miller, De Pisis, Sêneca, Jean Renoir, Miguel de Unamuno, Noberto Bobbio, Herbert Read, Andre Gide, Kierkegard, Gauguin e muitos outros. 

Ele era professor de geologia antes de descobrir a pintura. 

O volume contém inúmeras reproduções dos seus desenhos, pinturas, xilogravuras e esculturas em madeira.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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