Matéria Corrida

Sou arriado... (III)

TEXTO José Cláudio

03 de Dezembro de 2020

Melhor falar de rapadura. Nada me faz encher a boca d’água com tanta abundância como rapadura, rapadura tradicional, daquela bem dura, que parto com uma machadinha. Recentemente falei de mel de engenho como a melhor coisa do mundo mas comprei uma rapadura que o desbancou, e olhe que era um mel de engenho de respeito. Jorge Amado não conseguiu morar em Paris porque não tinha água de coco. Me pergunto, será que em todo mundo existe rapadura, rapadura boa como a nossa?

Ultimamente têm aparecido outros tipos de rapadura, justamente procurando facilitar o manuseio, menos duras, mais fáceis de partir, ou até já vindo em pedaços em forma de bombons, que é só abrir o saquinho e jogar na boca, dissolvendo-se com a maior facilidade. Mas em nenhum caso conseguem substituir o sabor da rapadura original, pelo menos as que experimentei.

Às vezes aparecem, as tradicionais, com rótulo. Tenho sempre curiosidade de verificar o lugar de onde vieram, municípios de Pernambuco. Como fiquei diabético, lembro sempre de meu sogro, que também ficou diabético, e dizia, ante as proibições da dieta: “Tudo o que é ruim, é bom para diabete”. Eu, como ele, e ele mais do que eu, não fomos habituados a comer verdura. A primeira vez que comi alface foi no internato do Colégio Marista, com 13 anos, quando vim fazer exame de admissão. Servido pelo garçom Bilola. Outro dia o Irmão Afonso Haus, que acaba de completar 100 anos, lembrou dele. Saúde, Irmão Afonso! Não fui visitá-lo porque sou do grupo de risco, obeso, idoso e diabético. Jurei que não ia falar da pandemia.

Voltemos à rapadura. Há poucos dias, botei um pedaço na boca, salivei tanto que, sem poder fechar a boca porque o pedaço era grande, me admirei da água que escorria da boca e ensopava a camisa. Nunca me havia ocorrido salivação tão intensa! Será que tenha importância o tipo da cana ou a qualidade do solo?

Não me lembro de ter visto rapadura na Itália ou na França, Holanda, Bélgica, Alemanha, Áustria, Suíça, Espanha, Portugal ou Estados Unidos, lugares por onde andei. Deve haver em Nova Orleans, onde nunca estive, que tem plantação de cana. Nos Estados Unidos, me disseram, tem um refrigerante cubano sabor rapadura. Vou perguntar sobre o Tirol a Maria Tomaselli. Por via das dúvidas, nunca quis morar em lugar nenhum fora daqui. Sei que noutros lugares não faltam maravilhas, como pato no tucupi no Pará e mil outras iguarias em todos os lugares do Brasil e do mundo. Mas não quero arriscar estes meus últimos dias. A primeira coisa que vou fazer quando sair é comer um capão com xerém. Infelizmente quando estive fora do Brasil, sabendo que jamais poderia voltar, primeiro meu tempo era pouco para ver tudo o que eu queria em termos de pintura, somente gastando-o em museus, igrejas, palácios, onde houvesse o que ver. O que comer limitava-se a pão com salame, menos em Roma onde comia na mensa, na Via dela Scrofa, um restaurante com preço simbólico e cardápio fixo, minestra, minestrina e minestrone as mais das vezes, ou em Paris onde o escultor Sérvulo Esmeraldo conseguiu um talão para o restaurante dos estudantes no Quartier Latin. De modo que não sou melhor informante da culinária desses países. Uma ou outra exceção, quando a convite de Seu Monte, em Paris, da família do pessoal do Grande Hotel daqui do Recife. Também me dava com o clochard Legalle, que só comia paté de campagne, uma espécie de sarapatel prensado em forma de pão-recife.

Uma vez eu estava fazendo hora com Carlos Garcia na sucursal do Estadão ali na Rua do Príncipe. Alguns repórteres ficavam de plantão jogando dominó com o servente, devidamente vestido de macacão azul, quando entra o pintor alemão Leonardo Duch, casado com a jornalista Ângela Lacerda, que substituiu Garcia tempos depois. Já estava escuro, mas fazia calor. Suado, carregando duas sacolas, foi logo dizendo nunca ter visto uma cidade do tamanho do Recife e tão atrasada: “Bati o Recife todo e não encontrei uma salsicha para comprar. Na Alemanha, na aldeia mais insignificante, você encontra dez tipos de salsichas da melhor qualidade”. O servente, Paulo Bodinho, agora me lembrei do nome, sem ser chamado, atalhou: “Mas não tem sarapatel”. Leonardo ficou parado no meio do salão olhando para ele certamente com vontade de tacar-lhe uma sacola nas fuças.

Sarapatel, lá em casa, se comia de raro em raro. Mamãe não gostava dessas novidades. Domingo, dia de feira, único dia de matança em Ipojuca, assavam-se uma perna de porco e um equivalente pedaço de carne de boi e dava para comer a semana toda até o domingo seguinte. Maria, empregada que ficou lá em casa desde que nasci até morrer, ensinada a cozinhar por mamãe, inventava outros pratos a partir da carne assada. Em Ipojuca não havia refrigerador. Os ovos, os fregueses da loja – meu pai tinha uma loja – traziam dos engenhos e trocavam por mercadorias, tecidos, calçados: na loja tinha tudo, miudezas, perfumes, ferragens, até caixão de defunto e pedra de amolar. Mamãe marcava cada ovo com um risco de carvão para saber quais os mais novos e eram guardados numa cesta de arame pendurada num canto da cozinha. A cozinha lá em casa era o maior cômodo. Tinha mesa de jantar, dois guarda-comidas grandes com telas de arame para não entrar mosca; fogão de lenha, a princípio de tijolo e depois de metal, com forno, um banco comprido onde Seu Jorge Pai de Maria e família sentavam, uma pia de cimento, a jarra de água de beber, espaço era o que não faltava, além de um vasto quintal com três mangueiras onde meu tio Benedito, que morava na casa-grande de Massangana, amarrava o burro.

Até hoje gosto de sarapatel com os pedaços não muito miúdos, como era feito lá em casa. Agora tem sarapatel de todo jeito, até batido no liquidificador. Agora, minto. Gregório já fazia assim. Às vezes os pedaços são tão miudinhos que a gente não sabe o que está comendo.

Gregório foi a primeira pessoa que conheci no Recife. Quando por algum motivo, raro, precisava vir ao Recife, nem sei por qual motivo, ir ao médico talvez, papai, como precisava aproveitar cada minuto para fazer compras para a loja, fazer pagamento, não podendo ficar tomando conta de mim, me deixava com Gregório, então garçom do restaurante de Fuard, acho que se escreve assim, no pátio do Mercado de São José, pegado com o cinema Royal. Tinha 4 anos. Quando eu chorava ele comprava uns pãezinhos de Padaria Siam que eu adorava.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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