Lançamento

Uma coleção de pequenas narrativas

Cepe Editora publica o livro de contos ‘Verão’. Leia duas histórias

TEXTO Nivaldo Tenório

02 de Dezembro de 2021

Foto Freepik

[conteúdo na íntegra | ed. 252 | dezembro de 2021]

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TSUNAMI
No nosso último verão juntos eu tinha 16 anos e eles disseram que eu podia levar um amigo. Eu não tinha amigos, só o Tomás. A gente se conheceu no primeiro ano. Seus pais eram separados e ele morava com a mãe, que trabalhava o dia inteiro. Ele não gostava do trabalho dela nem dos amigos dela, Ela está planejando ir embora daqui, sabia? De fato, nossa viagem à praia foram os últimos dias de nossa convivência. Às vezes eu ia da escola para sua casa e a gente passava a tarde jogando Pac-Man.

Fiz o convite.

Não gosto de praia.

Eu também não, menti. Mas prometeu falar com ela. Não vai ser um problema, garantiu, ela está doida pra se livrar de mim.

Foi o amigo da mãe dele quem o trouxe na sexta-feira de manhã.

Tomás carregava uma sacola com pouca coisa. Na praia a gente não precisa de roupas.

O mar surgiu lá na frente. Eu vi pela janela do carro, depois de uma curva. Papai nos mandou segurar, a descida era de fato íngreme, montanha-russa, mamãe pôs os braços pra fora da janela e, naquela época, a gente nem usava cintos. De vez em quando a vegetação escondia o mar, mas ele ressurgia poderoso, imenso.

Papai gostava de me falar do pai dele, que era um homem gordo e velho mesmo antes de eu nascer e do irmão e do tempo quando eram meninos. A mesa da cozinha era o lugar de nossos encontros, o mais confortável da casa. Fresco no verão. Aquecido no inverno. E o mais mobiliado. Parece que o vejo sentado à minha frente, há pouco jantamos, ajudei-o a pôr a louça na pia, mamãe também está sentada à mesa e corrige provas de seus alunos, de vez em quando ela para o que faz e fica nos olhando, e se ri ou diz alguma coisa, logo se concentra no que estava fazendo.

Nasci dois anos depois que se casaram, ela era a caçula de irmãos e irmãs. Não conheci avôs ou avós, os parentes eram tios e tias, alguns eu só vi pendurados nas paredes. No começo ele e o irmão eram sócios na granja, depois houve uma briga e a granja e as terras da fazenda divididas em dois. Mamãe é professora e só interrompeu as aulas enquanto me amamentou, por causa do trabalho não quis outro filho, e por isso eu cresci na companhia dos bichos. Eles apareciam da mata que ficava no lado sul, micos, capivaras, jabutis eram os mais comuns, mas também havia cobras jararacas e todos me pertenciam, papai dizia. De manhã eu notava as latas reviradas, o lixo fuçado, espalhado, eu não podia culpar mamãe de não aprovar os vizinhos, principalmente os macacos arruaceiros. Enquanto cresci a mata encolheu e não foi necessário que lhe arrancassem uma única árvore, na mata não havia onças nem nela alguém podia se perder, mas era o mundo. Às vezes aparecia alguém querendo comprar madeira, papai podia estar na pior dificuldade, o homem insistir o quanto quisesse, dobrar o preço. Nada.


Verão é o terceiro livro de narrativas breves do
pernambucano Nivaldo Tenório.
Imagem: Divulgação/Cepe Editora

Quando não estava cercado de algum bicho lá fora, dentro de casa eu brincava com bois de barro que mamãe comprava na feira e que eu gostava de cheirar e encostar a língua até sentir o gosto da tinta. Aos domingos, depois do almoço, papai se sentava na poltrona e assistia ao episódio de Cosmos, na televisão, às vezes ele fazia confusão com os nomes e chamava de religião a natureza. De tanto assistir àqueles programas sobre a imensidão do infinito, comprou um telescópio. Nas noites de muito céu montava o instrumento e ficava uma hora equalizando as lentes. Depois era capaz de passar horas perscrutando o espaço.

O que você procura, papai?

O infinito.

Eu mordia os bois de barro. É verme, mamãe dizia, e se eu insistia em morder é porque os vermes se haviam multiplicado. Enquanto mamãe se ocupava com os remédios que me fariam livres dos minúsculos bichinhos que ameaçavam minha saúde, papai só tinha olhos para os astros, gostava de falar das dimensões dos planetas, o raio equatorial da Terra é de 6.378 de quilômetros, enquanto Júpiter tem 71.492 quilômetros de raio. Eu aprendi com papai aquelas medidas de grandeza enquanto ele me fazia olhar pelo olho mágico.

Naquele verão muita coisa já tinha acontecido, papai não trabalhava mais com granjas, também não existia a mata nem suas onças invisíveis, macacos arruaceiros ou cobras jararacas, a última crise acabou com os negócios e mamãe conseguiu convencê-lo a vender a propriedade, podiam comprar uma casa na cidade e pensar em alguma coisa pra fazer com o resto do dinheiro. Não sobrou muito, mas a casa era boa, num bairro arborizado. Nessa época ela já era professora na faculdade, de forma que a gente não ia passar mal, mesmo que o marido demorasse a achar um novo emprego. Mesmo que tivesse de inventar novos negócios a cada novo fracasso. Papai não gostava da cidade. Todas as noites eles discutiam, ele batia a porta e eu não sei pra onde ia, ela não me dizia.

Seu pai precisa arejar a cabeça.

Qual é o problema, mamãe?

Não é nada, ela dizia, ele vai se adaptar.

Mamãe admirava as árvores do bairro, bonitas com as copas redondas e aparadas pela prefeitura. Um dia eles não discutiram mais e eu me lembrei do que ela dissera sobre a força do tempo, meu tio também ajudou quando ofereceu emprego ao irmão. Papai dirigia todo dia até a fazenda e só voltava à noite, cansado.

No fim daquele primeiro ano na cidade eu conheci Tomás, e ele me apresentou o Atari.

Agora, na praia, curtindo o verão, papai se recupera da cirurgia que extraiu o câncer da próstata. À noite eu escuto os sons que ele faz no banheiro. Durante o tempo que puderem os dois vão me poupar dos detalhes. O pior do tratamento ainda por vir, mas só depois, nos meses seguintes aos dias na praia, agora tudo está bem, a praia o lugar pra convalescer. A cirurgia um sucesso. O tratamento levará à cura.

Fazia muito calor. Na televisão só se falava do aumento da temperatura, efeito estufa, o perigo das calotas de gelo derreter. Cidades inteiras seriam inundadas. O Armagedom.

Não é pra já, papai me tranquilizou, e, como gostasse das hipérboles, jurou que o fim do mundo está postergado para daqui a milhares de anos no futuro.

Milhares?

Milhões! Bilhões!

No condomínio, nosso chalé ficava ao lado da piscina. Não se enxergava o fundo dela e alguns azulejos azuis foram substituídos por brancos. Um homem drenava o lodo acumulado no fundo do último inverno. Além do nosso chalé apenas dois ou três, naquele primeiro dia, recebiam seus moradores. Eu e Tomás resolvemos explorar a praia enquanto papai e mamãe tiravam as bolsas do carro. As pessoas ainda estão chegando, Tomás falou. De fato, estava tudo deserto, andamos ouvindo as ondas rebentando, andamos sem conversar, eu olhava suas pernas, são maiores do que as minhas, eu ficava tentando andar ao mesmo passo, mas não conseguia, entre as pernas dele e as minhas um descompasso que eu não conseguia corrigir por mais que me esforçasse.

Está tudo bem?

Sim, respondi.

No que está pensando?

Nada.

O mar estava enchendo rápido, de vez em quando a água nos dava nos joelhos, a gente parava e esperava que as ondas retrocedessem. Retornamos no trecho de pedras cobertas pelo mar.

Ouvimos os gritos de papai.

Não estão com fome?

Sim, eu estava com muita fome.

O vestido de mamãe tinha estampas coloridas e uma das alças caída do ombro. Papai pediu a Tomás que ele fosse um cavalheiro e abrisse a porta, todos nós rimos, mamãe inventou para si modos requintados, e agradeceu quando o jovem cavalheiro abriu a porta e lhe ofereceu a mão. Rodamos uns dez minutos até o restaurante onde comemos peixe.

Enquanto fomos e voltamos alguns carros chegaram ao condomínio, e ou eram crianças ou idosos, nossos vizinhos de chalés.

Dormi depois do almoço e só acordei perto das cinco. Não sei por onde andou Tomás, nem vi mamãe ou papai, depois eu saberia que ele saiu pra comprar cervejas. No quiosque do condomínio é proibida a venda de álcool. O dia ainda estava firme, o céu azul com muita luminosidade. Caminhei até a varanda e olhei a piscina. Um pai gordo brincava com a filha, uma menininha loura, ele pulava e provocava ondas e chacoalhava a boia inflável onde enfiou a filha. Devia ser a mulher dele e mãe da garotinha a mulher de papel estendida na espreguiçadeira. Do outro lado da piscina vi duas outras espreguiçadeiras uma ao lado da outra, numa delas Tomás na outra mamãe. Os dois acenaram, devolvi os acenos e me sentei. Na nossa varanda tem uma mesinha baixa demais para as quatro cadeiras.

Achei que Tomás viria ao meu encontro, feliz que eu o libertasse de mamãe. Porém o tempo passou e os dois continuaram silhuetas naquele final de tarde com a luz doendo nos meus olhos. Cansei da luz. Dentro do chalé fechei as persianas e liguei a televisão. Devia ter passado uma hora e já estava escuro quando papai chegou. Perguntou se dormi bem, eu respondi sim, mas acordei com dor de cabeça. Ele foi procurar uma aspirina na bolsa de mamãe e estava fazendo isso quando os dois entraram. Mamãe falou da piscina, era funda no meio, mas ninguém devia se preocupar pois o Tomás sabia nadar. Tomás nunca me falou de suas habilidades. Papai não encontrou cerveja, andou uns 10 quilômetros. Isso aqui é um deserto. Mamãe perguntou onde a gente ia comer e papai sugeriu que ela fosse com Tomás até a cidade, pois ele não estava com fome e este rapaz aqui com dor de cabeça. Onde foi que você guardou as aspirinas? Um instante depois ela surgiu do quarto pronta, na mão trazia o remédio e as chaves do carro.

O que trago?

Pizza, papai respondeu.

Eles não demoraram, de repente a porta se abriu com cheiro de provolone e catupiry.

Tomás entrou precedido de mamãe, conversavam sobre alguma coisa animada, ele pôs a pizza na mesa e anunciou que ia tomar banho. Não demore, mamãe recomendou, depois me olhou e perguntou por papai. Lá fora, apontei na direção da piscina. Por um instante ela ficou olhando através do vidro da varanda, lá fora tudo parecia escuro e esqueceu-se de mim, acho que fiz algum movimento, ela supôs que eu estivesse vendo televisão e por isso se desculpou por ficar na frente. Não estou assistindo, respondi. Era um desses programas de auditório. Devagar ela se sentou na poltrona olhando o programa e dois minutos depois parecia tão concentrada que teve um susto quando a porta da varanda se abriu.

A pizza estava gostosa e minha cabeça não doía mais.

Mais tarde ia começar um filme na TV, convidei o Tomás, mas ele disse que já vira o filme. Acabei não vendo o filme todo, fiquei mudando de canais, surpreendeu-me o número de canais de pastores de igrejas neopentecostais extraindo o demônio de seus fiéis. Papai e mamãe ainda conversavam na varanda quando desliguei o aparelho e fui me deitar. Tomás dormia, eu me deitei sem sono.
Acordei umas 10h, na cama de Tomás só os lençóis desalinhados, ouvi um barulho na cozinha, era papai, perguntou se eu queria café e eu perguntei por Tomás.

Foi acompanhar sua mãe numa caminhada na praia.

Mas está muito quente a esta hora.

Quando saíram não estava tão quente.

Tomei um banho pra ver se me livrava do enfado, e nesse meio-tempo ouvi vozes e deduzi que fossem os dois de volta do tal passeio. Saí com a toalha ainda enxugando os cabelos quando ouvi mamãe, ela repreendia o Tomás por ter saído sem proteção, mandou que ele se sentasse enquanto ela pegava o creme hidratante no quarto, voltou de lá esfregando o creme nas mãos, uma quantidade que julguei exagerada escorreu nas costas do meu amigo, Isso vai refrescar, mamãe garantia enquanto passava tocando de leve a pele inflamada de Tomás. Não deve ser nada demais, ele disse. Mamãe tinha dúvidas, Foi muita exposição, mais tarde vai doer.

As queimaduras forçaram Tomás a ficar sem camisa dentro do quarto e eu notei o quanto nele a musculatura se desenvolveu mais do que em mim.

Depois do almoço, um camarão sem cascas e arroz com creme de queijo que papai passou aquela manhã preparando, chamei o Tomás para dar uma volta. Ainda é dia, disse ele, as queimaduras o transformaram num animal noturno; num peixe das regiões mais abissais. Logo sua pele vai ficar fosforescente como a dos vaga-lumes e vão crescer presas e dentes carnívoros...

O que você disse?

Nada, só estou dizendo que você deve mesmo se poupar do sol.

Pode ser no final da tarde?

Sim, respondi, no final da tarde.

Tomei o lado sul da praia.

O sol estava quente, mas soprava uma brisa agradável. Pelo caminho não vi muita gente. Aquela praia era um roteiro ainda não descoberto dos banhistas, havia muitas casas construídas ao longo da costa, enormes casas de veraneio de pessoas endinheiradas que provavelmente passam ali dias contados. Então as poucas pessoas que vi, mulheres com crianças ou casais de idosos, eram alguns dos eventuais moradores das casas de verão. A maré estava baixa e me distraí acompanhando os desajeitados siris caminhando em diagonal e se enfiando em buracos na areia. Milhares de carapaças de moluscos marinhos foram trazidos pelas ondas e despejados ali, cada um deles foi abandonado por animaizinhos de corpo mole quando se tornaram adultos. As conchas descartadas são de todos os tamanhos e as cores variam de rosa ao vermelho e púrpura, são cônicas, pontiagudas e devem furar, por isso caminhei olhando o chão. Cheguei a colher algumas no caminho, mas acabei descartando, eram tantas ao longo daquele trecho que ao fim da caminhada se revelaram comuns demais para alguém se dar ao trabalho de levar pra casa.

Depois de umas pedras avistei ao longe alguns barcos a motor. À medida que me aproximava fui sentindo o cheiro de diesel. Eram barcos de pescadores. Mais próximo notei quatro homens pescando com uma enorme rede. Na areia três cestos de vime continham peixes pequenos, muitos ainda tentando respirar numa agonia de olhos abertos, mas não tinha jeito, as guelras só lhes secavam as esperanças. Senti dó dos coitados. Um dos pescadores parou o que fazia e me encarou ou achei que encarou.

Afastei-me muito do condomínio, devo ter andado uma hora, talvez mais, na praia o tempo se dissipa, se alonga ou se esvai, tudo depende da melancolia. Talvez não fizesse uma hora, talvez não fizesse nem vinte minutos. Era o segundo dia e eu já desejava voltar pra casa, senti uma dolorosa falta de meu quarto. Tomás não é o mesmo, adquiriu musculatura e sensibilidade ao sol. Eu nunca estive com Tomás em outro lugar além da escola e nossas casas.

O que é isso, Tomás, você muda de cor e de pele conforme o ambiente?

As luxuosas casas de veraneio ficaram pra trás, agora há uma trilha de peixes mortos na areia, alguns me surpreenderam de tão grandes, não entendi por que foram abandonados. Um regato de água suja que dependendo da intensidade da corrente desaguaria no mar ou morreria na areia apareceu por trás de uma barraca. Eu estava na vila de pescadores, o cheiro de peixe assado se misturava ao diesel dos barcos à deriva. Senti fome e enjoo. Acordei tarde e não comi nada. Não pensei que fosse andar tanto. Não tinha dinheiro e por isso resolvi voltar. Regressei de cabeça baixa e por isso não notei mais cedo que a silhueta de um homem que vi de relance, cada vez maior e distinta, era meu pai caminhando ao meu encontro.

Vi quando você passou e resolvi seguir o mesmo caminho, mas você é rápido.

Não era verdade, eu me distraí um tempão com as conchas, mas não falei de conchas. Lívido e arquejante, perguntou o que tinha lá na frente.

Só uma vila de pescadores.

Está com fome?

Não.

Vamos voltar, sinto cheiro de peixe assado.

A mulher da barraca, uma senhora gorda, nos serviu uma porção de agulhinhas, papai pediu uma cerveja e me ofereceu um copo. Era a primeira vez que ele me oferecia bebida. Vamos, disse, sei que você bebe escondido. Eu não bebia escondido, não sei de onde ele tirou aquilo, mas não disse nada e aceitei o copo. Minha garganta estava seca, eu morreria naquele deserto antes de chegar em casa. Depois da fome e sede saciadas lamentei que ele tivesse me encontrado. O gosto da cerveja não era bom, também não estava gelada, mas um gole ou dois me levariam salvo até o condomínio. Papai disse que precisava descansar, que a caminhada não foi mole.

Que horas são?, perguntei.

Cedo, ele respondeu sem olhar o relógio.

Deve ser quase uma hora, mamãe e Tomás estão nos esperando.

Não se preocupe, ele respondeu, o Tomás piorou das queimaduras e ela o levou a um pronto-socorro, não devem ter chegado.

Tomei o segundo gole da cerveja morna.

É uma hora de caminhada.

Eu sei, você andou muito. O que estava pensando, queria nos deixar e voltar pra casa?

Ele tinha razão, eu queria voltar pra casa, aquela viagem não estava sendo nada do que pensei.

Esqueça Tomás, ele me disse de repente, vamos, faça companhia a seu pai, e chamou a senhora gorda, ela disse que havia barcos de alugar, sim, e gritou por alguém, um menino magrinho, de uns 12 anos, surgiu de algum lugar, devia ser seu filho ou neto, a idade dela era indistinta, e o menino, depois de ouvir o recado, se pôs a correr de novo.

Eu não quero andar de barco.

É só uma voltinha de nada. Uns três quilômetros daqui há uma prainha assim de bichos marinhos.

O menino voltou com um rapaz, e depois o seguimos até a praia. O barco era velho, mas tinha motor, fedia a peixe e óleo diesel.

Dentro do barco o cheiro de peixe era insuportável. Papai não parecia sentir. Olhei-o com raiva. O que a gente faz aqui, pai? Por que não voltamos?, mas eu não disse nada, ele me apontava alguma coisa. Olhei e não vi, só o mar imenso. O rapaz conseguiu ligar o motor, depois de várias tentativas, engasgos. O barco se pôs em movimento, sacolejava quebrando as ondas. O barulho do motor era maior do que o estertor do mar. O diesel tornou suportável os fantasmas de peixes mortos. O barco dava sopapos, vencendo as ondas, o capitão sem camisa se mantinha ereto, sua mão no leme, não parecia prestar atenção aos passageiros, parecia hipnotizado pelo barulho intermitente do motor que expelia óleo diesel e empesteava de fumaça o paraíso. Olhei papai de perfil, ele se mantinha firme, apoiado no horizonte. Piscava pra mim de vez em quando e me dirigia palavras que eu não conseguia ouvir, devia estar me chamando a atenção para alguma coisa ou me alertando os perigos de cair, o mar respingava frio no meu pescoço e braços.

Quando chegamos parecia que não havíamos chegado a lugar nenhum. Era o mar, longe da costa, em todos os lados o infinito e só. De repente uma revoada de aves marinhas que eu não sabia identificar a espécie apareceu do nada, perguntei ao nosso capitão, mas ele tampouco sabia e isso punha sérias dúvidas à sua competência de homem do mar. Só agora percebi que papai estava de calças. Apoiado no barco ele arregaçava as pernas, dobrando o tecido com paciência. Papai não funcionava com o relógio, seu ritmo outro. Tirou a camisa e a deixou no barco. Juntos, pulamos do barco na água. Era engraçado, a gente estava no meio do mar, mas a água mal cobria nossos calcanhares. Eu me lembrei do Messias andando sobre as águas, um truque. Para quem nos olhasse de longe, nós também andávamos sobre a superfície das águas. A água cristalina nos revelava seus segredos, milhares de peixinhos nervosos bicavam nossos pés de gigantes. Caminhamos sem afundar na pele cristalina das águas. Eu pensava em mamãe e Tomás, queria ir embora. Papai à minha frente não ouvia meus pensamentos. Vamos embora, pai, eu gritei, mas ele se distanciava muito, o rugir aumentou e os últimos pássaros, do tipo desconhecido por nosso capitão, voavam seguindo o rumo de seus companheiros. Olhei o horizonte e desta vez tive a certeza, é só um segundo e o tsunami vai nos achar e arrasar nossas vidas.


Formado em Letras, o contista traz as imagens de uma adolescência. Imagem: Divulgação

O JARDIM DE LAURA
É de manhã e Laura já se levantou, o café está pronto e a mesa posta, faz isso há tanto tempo que não parou de fazer, mesmo quando os remédios lhe deram o peso do chumbo. 

Na hora de sempre o marido se senta à mesa. Ivan gosta dos ovos malpassados. Todas as manhãs, durante a semana, é sempre o mesmo; os ovos moles e o jornal.

Vinte anos não o fizeram desistir dos jornais nem enjoar dos ovos moles, lê enquanto toma café. Depois do colapso nervoso da esposa, tudo mudou naquela casa. Antes Ivan podia ouvir o estalido das folhas de jornal, era sua concentração antes do escritório e ela sempre soube respeitar, agora não para de falar, irrita-o com toda aquela peroração sobre a resistência das ervas daninhas e outras obsessões pelo jardim.

Se ele soubesse não teria comprado nada. 

Não adianta seus olhos duros por cima do jornal, ela faz que não vê, aliás, fala como alguém que conversa sozinha, despreocupada com um interlocutor a quem importaria o sentido das palavras. Ontem acordou preocupada com o cometa Halley, que ainda faltavam 63 anos para a nova passagem. Você devia se ocupar das rotas menores, Ivan sentiu vontade de dizer, mas não disse, não ia dar cabimento, afinal quem nunca sofreu um colapso nervoso? Todo mundo, o que não pode é adoecer dele. Não é fácil admitir, não ele em quem sempre imperou um espírito meticuloso, mas às vezes se arrepende de tudo.

Toma um longo gole do café, suspira profundamente e dobra o jornal.

Não venho almoçar, ele diz, e se levanta. Sua maleta já estava na mão, as chaves do carro no bolso, desce os degraus até a garagem, Laura escuta a porta bater e só se levanta para cuidar do jardim quando o ronco do motor deixa de fazer parte do mundo. 


No ensino médio Laura só pensava em sair de casa. Não diga isso, minha filha, dizia-lhe a mãe. Não precisa sussurrar, mamãe, ele não está aqui. Incrédula, a mulher olhava de um lado e de outro, fixava algum objeto como se suspeitasse que não era o fogão aquilo que olhava, ou a pia ou a mesa, mas o marido disfarçado a um passo de se revelar. 

No último ano Laura vai conhecer Ivan, o bairro onde morava com os pais tem uma praça com bancos de pedra sombreados de angicos. A praça fica no meio do caminho entre a escola e sua casa, Ivan sempre se despede ali. Nos bancos vazios se acumulavam tantas florezinhas brancas e miúdas e pequeninos gravetos que Laura se indagava se eram os únicos usuários da praça. 

No último encontro, antes de ele ir pra faculdade, os passarinhos haviam cagado o banco inteiro, coisa que fez Ivan passar um tempo enorme limpando. Ela ainda pensou em sugerir outro banco, em vez disso observou as casas, do outro lado da rua, todas iguais, com grades de ferro nos muros altos. 

Ivan vai prometer cartas todos os dias. No começo serão duas por semana, depois uma e ao cabo de um mês apenas uma. Laura não se importará de escrever no mesmo ritmo. As cartas dele serão relatórios enfadonhos das suas obrigações de leituras na madrugada, a incidência de tanta luz amarela vai fazer doer os olhos de Laura, fazê-los arder de lágrimas. Naftalina, mau hálito, caspas e seborreia serão os nomes dos professores, todos culpados pelo Teorema de Pitágoras e todas as relações métricas no triângulo retângulo. A letra dele, parecerá a Laura, é a de alguém que perdeu a vida fazendo caligrafias. 

Naquele último encontro, depois que Ivan limpou as fezes das aves, sobrou um cheiro azedo, uma cigarra começou a cantar e não parou mais, depois tudo acontecerá muito rápido: os meses na casa dele, a sogra gorda e miúda, a promessa dele de que tudo ficaria bem quando tivessem a própria casa, seu primeiro emprego de auxiliar de engenheiro na mineradora, a primeira consulta a que foram juntos, o constrangimento de Laura diante da pergunta do marido ao doutor sobre a eficácia do DIU. Os primeiros anos no quarto minúsculo daquele primeiro apartamento, sem cortinas, que abrigava eternamente o verão, onde acordar era sempre uma luta contra a luz, a convicção dele em não ter filhos, sua fé na imortalidade da alma, sua certeza de que a morte era um mal que só atingia pessoas velhas e displicentes. Sua promoção.

Em certo dia, no terceiro ano de casados, Ivan vai chegar do trabalho com a notícia de que foi transferido para o escritório da mineradora do Norte.

É muito longe?, Laura vai perguntar.

E quente, ele vai responder.


O terapeuta sugeriu música ou pintura, mas ela preferiu acatar a sugestão do irmão e sujar as mãos de terra.

Vai de vaso em vaso, revolve a terra de uns e de outros, se encontra um fiapo recém-nascido de erva daninha não deixa crescer, de jeito nenhum, está sempre atenta, e se orgulha em dizer que foi seu zelo que transformou toda a lateral da casa, antes terra e só, no mais belo jardim da vizinhança, se o marido fosse de ter amigos e se a casa recebesse visitas ninguém se cansaria de admirar suas gérberas, seus lilases, espinheiros, suas rainhas margaridas, celósias rosas, suas chuvas-de-prata, cravinas, crisântemos, até suas avencas. 

Com o irmão aprendeu que não se deve adubar as plantas no inverno, que as samambaias e as avencas detestam os ventos, que as suculentas e cactos preferem os vasos de barro, que algumas plantas gostam de sol enquanto outras se ressentem com uma nesga de luz. Sozinha, vem descobrindo que não há tempo ruim para as ervas daninhas nem sementes roubadas, elas não sufocam no meio dos espinhos nem se perdem no meio das pedras, tudo é terra boa e fértil.

Júlio vai substituir a mãe nos cuidados com o jardim, mas no começo era só um rapazinho e uma promessa.

Você jura que vai cuidar das plantas quando eu não estiver mais aqui?

Se no início foi só a palavra empenhada, quando a mãe gozava de saúde e nada diria que fosse morrer ao término de um ano, soube enquanto acompanhava o caixão que a promessa, cuja única solução era a integridade, cobrava-lhe disposição e entendimento e se entraria naquele casamento sem amor — fora o que devotava à mãe — o tempo haveria de mostrar que o amor pode surgir com a convivência, principalmente numa relação baseada no dar e receber.

Quando Júlio pediu demissão da fábrica, o pai perguntou do que ele ia viver. Flores, respondeu. Começou fazendo pequenos serviços em jardins de pessoas satisfeitas que pagavam e o recomendavam. O pai jogava na sua cara que jardim não é coisa de homem. 

Todo trabalho é digno, papai, o senhor também trabalha com folhas. 

Eu trabalho com fogo, dizia com raiva. 

Laura ficou sabendo de tudo, o irmão contou que viu a hora o pai se jogar em cima dele. Venha, ia dizer, agora você não tem a mulher pra fazer seu trabalho sujo, mas o velho só ficou ali, em pé, olhando pra ele. Não é mais o mesmo, Laura, você precisa ver, anda definhando, de noite escuto seus horrores no banheiro, às vezes acho que vai morrer de tanto tossir, de manhã há sempre sangue e catarro no vaso.


Quando a mãe morreu, Laura não pôde ir ao enterro, o telefonema chegou atrasado no meio da noite, Ninguém imaginaria que fosse se agravar, eu mesmo já me queimei, todos nós já nos queimamos, elas estão em toda parte, não é? Sempre estiveram, disse o irmão. O médico falou que o sangramento intracraniano não é comum, só em pessoas alérgicas, ela sabia que era alérgica, Laura. 

Enquanto Laura escutava Júlio ao telefone, pensou na mãe acocorada no meio do jardim, as tardes pertenciam às suas plantas e flores, a elas dedicava todo o amor que dizia ter aprendido com a própria mãe, avó de Laura e Júlio, uma senhora que os netos só conheceriam numa fotografia desbotada que também mostrava o avô no pátio de uma antiquíssima casa que já não existe mais. 

Algumas plantas no jardim da mãe eram grandes, mais altas do que Laura, que naquele tempo não as poderia nomear, eram as plantas da mamãe, verdes, coloridas, de folhas compridas, ovaladas, algumas se amontoavam no chão, cresciam nas extremidades, se esparramavam, outras subiam pelas paredes, troncos, parasitas, desenvolviam touceiras redondas, imensas.

A lembrança daqueles finais de tarde tão longe fora trazida com aquela notícia da morte. 
Júlio chegava afoito da escola, naquele tempo estava sempre com fome, passava pela irmã no portão e desaparecia dentro de casa. Laura ficava ali, vendo a mãe sentada no meio do jardim. 

Sentada ou de joelhos?

Ela nunca pôde ter certeza, sua mãe estava sempre com uma saia longa que lhe escondia as pernas e pés, às vezes Laura era capaz de jurar que estivesse de joelhos, de outro modo o tronco não pareceria elevado daquele jeito, ou talvez fosse só ela se esticando de uma câimbra ou dor. Tantas vezes a menina parou ali naqueles interstícios.

Ivan tentou consolar, Mesmo que a gente dirigisse até o aeroporto mais próximo, jamais chegaríamos a tempo.

Podíamos ter ido no Natal como pedi, Laura disse.

Meu Deus, como o tempo passa, e de repente Laura se deu conta que hoje faz exatamente vinte anos desde aquele telefonema, em um ano estará com a mesma idade da mãe.

Laura se lembra da primeira vez.

O jardim estava vazio naquele fim de tarde, dona Inês apareceu do nada, ninguém gostava dela porque vivia olhando o quintal alheio, era assim que sua mãe se referia à vizinha.

Deve ser picada de abelha, dona Inês disse, só pode ser, e Laura num ato reflexo imaginou a cabeça da mãe tomada por um enxame, Os olhos ficaram inchados, minha filha, muito inchados, e se coçava como uma infeliz. Nunca vi alguém se coçar daquele jeito.

Dona Inês estava no portão quando o pai de Laura chegou, ela não deixou o homem entrar antes de contar tudo o que ocorrera com a mulher, a cara inchada, o alvoroço, a resistência dela em não querer ser socorrida.

Laura estava no quarto, acompanhou os passos do pai até a cozinha, ouviu os barulhos de panelas vazias sendo destampadas com raiva.


O pai estava sempre pedindo silêncio.

É por causa da fábrica, a mãe lhes dizia, mas não fornecia detalhes, bastava que soubessem que era muito cansativo o trabalho do pai, mesmo um homem como ele, grande, forte e de braços como marretas, por isso os dois tinham que brincar mudos e correr com pés de pano. Mais tarde Laura vai saber que o pai trabalhava numa estufa, que o fogo precisava atingir uma certa temperatura e permanecer estável enquanto durasse o longo processo de secagem da folha de fumo.

Do silêncio que o pai exigiu ou do teor de sua zanga Júlio e Laura ficavam sabendo pela mãe, também a ela cabiam as providências, se chinela ou tabica, dizia a gravidade do delito. Uma ou outra doía-lhes igual, mas não guardavam mágoas da mãe, as pisas eram encomendadas e às vezes aquele que batia sabia tanto quanto o que apanhava. O marido dizia à mulher que já lhe bastava a fábrica, o trabalho duro, os turnos de 12 horas, não queria saber de aborrecimento dos filhos, então Laura e Júlio tinham de se comportar, não adoecer nunca, estudar até morrer e fazer silêncio. Naquela tarde, quando sua mãe foi socorrida e descobriu que era alérgica ao fogo das lagartas, só pensava no jantar que não teve tempo de preparar.

Era preciso levantar cedo.

Na marmita do marido cabiam as porções de arroz, feijão e carne distribuídas em três compartimentos de alumínio, presos por um aro. A comida feita no dia se conservaria fresca até às doze horas. Laura vê o pai saindo numa daquelas manhãs, está frio e seu casaco puído será o mesmo ao longo dos anos. Ela já tem idade para se acordar e caminhar até a cozinha.

A cozinha é um lugar escuro, leva-se sempre um tempo para poder enxergar, a mãe está em pé fazendo alguma coisa na pia, Laura pede a bênção e a mãe, como das outras vezes, responde num grunhido, como se em todas aquelas manhãs precisasse aprender a falar de novo.


Nesse mundo de índios e uma enorme selva vizinha da cidade, o tempo é sempre ruim, piorado pelas queimadas que poluem o ar. Ela ainda se cansa muito durante o dia e sofre com a asfixia e a inquisição dos mosquitos, mas não se incomoda mais em ter de usar a máscara todas as vezes que tem de ir ao mercado. Quando seu marido comprou a casa, disse que o fez por estar no alto e pela sensação que dava, Que sensação?, perguntou a moça da imobiliária. Parece que tudo o que a vista alcança, ele disse, de algum modo me pertence.

De fato, a casa está num planalto, de qualquer janela se avista o horizonte da selva. Antes ela se via muitas vezes penetrando naquele horizonte e sumindo no mar verde. Calculava que ainda existissem selvagens, talvez canibais, se imaginava desaparecendo na mata e depois na garganta de animais famintos, só lhe sobrariam os cabelos que seriam enterrados com os ossos. Depois de alguns dias, de buscas infrutíferas, feitas por nativos que já lhe adivinharam o destino, ela seria dada como morta, vítima de alguma fera ou poço ou caverna, afinal, numa selva, sobram maneiras de desaparecer, Não é, Júlio?


Júlio continua ligando uma vez por semana, sempre a cobrar, numa hora em que o cunhado está no escritório, pergunta se a irmã está bem, se o jardim conseguiu ajudar, Laura responde que sim ou diz que não sabe, então o irmão fica grave, Qual é o problema? Tudo, a crise da meia-idade, o marido que nunca quis filhos.

Ainda bem que você tem as plantas.

Graças a você.

Na verdade, nossa mãe é a culpada.

E nele, você pensa nele?

Já faz 10 anos, Laura.

Digo, quando chega em casa e encontra tudo em silêncio.

Às vezes tenho a impressão de ouvi-lo tossindo.

A fábrica nunca pagou a indenização.

Nunca teve intenção, muitos ainda morrerão envenenados.

Trabalhar numa estufa devia ser muito quente e asfixiante.

O próprio inferno.

Na primeira semana o quintal era só terra e mato.

Você não precisa fazer isso sozinha, eu posso contratar alguém, disse Ivan.

Não precisa.

Meu deus, há muito mato, você sozinha não vai dar conta.

Ela não quis ninguém, só as coisas necessárias.

Já naqueles primeiros meses, durante o café da manhã, quando conta os progressos e fracassos de ser jardineira, surpreende-a a resistência das ervas daninhas.

Às vezes acho que tudo isso pode ser inútil, que elas vão continuar nascendo não importa o que façamos.


Quando Laura se levanta, sente um fio de dor percorrer sua coluna. No chão juntou folhas secas. Suas mãos pressionam os rins. Já vai dar meio-dia. Ivan não vem almoçar e ela não sente fome, pode trabalhar sem interrupções. As nuvens mudaram de cara, deve chover mais tarde e que novidade, se ao menos melhorasse o calor, mas tanto faz dia ou noite, é sempre verão, se não fossem as árvores que cobrem de sombras o jardim, ela não aguentaria um minuto de sol. 

Enquanto se estica a dor se afina e some, se abaixa mais uma vez e vê pela primeira vez a lagarta de fogo.

NIVALDO TENÓRIO nasceu em 1970, na cidade de Garanhuns. Formado em Letras pela UPE, publicou Dias de febre na cabeça (contos, 2014) e Ninguém detém a noite (contos, 2017), ambos pela Confraria do Vento.

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