Um verdadeiro jornalista 'in totum'
Leia trechos da biografia de Geneton Moraes Neto, escrita por Ana Farache e Paulo Cunha e lançada pela Cepe Editora
TEXTO ANA FARACHE E PAULO CUNHA
05 de Agosto de 2019
Considerado um dos mais importantes jornalistas brasileiros, 'Geneton – Viver de ver o verde mar' conta sua trajetória no ofício, que iniciou ainda jovem, na década de 1970
Foto Reprodução
[conteúdo na íntegra | ed. 224 | agosto de 2019]
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PREFÁCIO
Geneton: A primeira página
Por Amin Stepple
Eu tinha 23 anos e não me venham dizer que é a mais bela idade da vida. É assim, parodiando o escritor francês Paul Nizan, que eu me situo no tempo em que conheci o meu grande amigo Geneton Moraes Neto, que tinha 18 ou 19 anos. Na sala de aula apertada do curso noturno de jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco, cinquenta jovens ouviam as sandices dos professores ligados à Ditadura, mas acreditavam que era possível devolver os militares aos quartéis. Nesse ambiente difuso, de sorrisos e cumplicidades silenciosas, quem aí é Bouvard?, quem aí é Pécuchet?, não consigo lembrar o momento em que se estabeleceu o contato de primeiro grau flaubertiano. Cinema, Beatles, tropicalismo, jornais alternativos, aversão visceral ao regime e a descoberta de um pequeno cartucho amarelo que atirava para ressuscitar sonhos, o Super-8. Eu e Geneton nos tornamos amigos, até o dia em que uma flecha desocupada e envenenada com creme de baunilha atravessou o seu coração.
Sempre me espantei com as pessoas que já nascem sabendo o que vão ser na vida, qual personagem vão representar na tragicomédia. Geneton foi o primeiro jornalista in totum que eu conheci. Aos 18 anos, já era repórter profissional e assinava uma coluna de cultura no suplemento dominical do Diario de Pernambuco. Passei a disputar com jornalistas mais velhos (e que logo viram naquele cara com uma camisa surrada do Sport a genialidade do jornalismo) a presidência do fã-clube. Juntos, logo no início do curso, fizemos o primeiro Super-8. O filme não era pretensioso: apenas queria derrubar o imperialismo americano! Mas era um filme bem moderno, roteiro inspirado num poema-processo, montagem paralela, trilha com um belo jingle da Coca-Cola e zero de panfletagem. Isso é que é recebeu uma crítica favorável do jornal Movimento. Os fotogramas juntaram uma boa turma.
Ainda logo no início do curso, uma cena me marcou muito e ainda se mantém vivíssima nas minhas retinas fatigadas. Cheguei atrasado para a aula e, de certa distância, vi Geneton descendo as escadarias, sereno e de cabeça erguida, ladeado por dois miliquinhas da Ditadura. Impressionou-me como os dois agentes estavam malvestidos, amarfanhados, saídos diretamente de um filme policial de Godard. Mas Geneton não estava nos Detetives godardianos. Estava sendo levado para um interrogatório sobre uma inocente notinha dada na coluna cultural sobre um show que uns estudantes estavam programando fazer. Por notinhas iguais a essa, a Ditadura forjou falsos atestados de óbito. Geneton foi o primeiro jornalista que conheci a ser perseguido, de alguma forma, pelos militares.
A juventude dura 24 horas. Fizemos muitas outras coisas juntos. Telejornais, jornais alternativos, blogs. Compramos brigas com o exército de medíocres. Comemos sal grosso. E, cada um na sua trincheira, demos contribuição (a minha, insignificante) para que ninguém mais fosse arrastado da sala de aula para explicar a playlist de um show estudantil.
Como jornalista, tenho uma coleção de dívidas irresgatáveis com Geneton. Quem o conheceu sabe que era obcecado por jornalismo. Um caso que seria estudado e pesquisado, com rigor acadêmico, em qualquer frenocômio, em qualquer St. Vincent’s Lunatic Asylum. Certa vez, escrevi um texto em que citava uma frase de um astronauta americano. Ele dizia: “O planeta Terra é a colônia penal do Universo”. E quem ousa negar? Cometi o pecado de não escrever o nome do astronauta. Lapso imperdoável. Uma pequena falha, que me custou um preço altíssimo. Dezenas de vezes Geneton, literalmente, me acossou para que eu me lembrasse de onde tinha lido a frase, que era inaceitável que eu me esquecesse do nome do navegante do espaço. Geneton iria até a lua, mas entrevistaria o astronauta. Infelizmente, até hoje não consigo me lembrar do nome dele. E a dívida jamais foi paga.
Geneton, obviamente, tinha um milhão de melhores amigos. Apesar de ser mais velho do que Geneton, nunca me preocupei com ele. Sempre achei que a cavalaria americana chegava no final e o resgatava dos abismos da vida. Já Geneton, irmão mais novo, tinha uma permanente preocupação comigo. Um cuidado difuso, diáfano, manifesto de forma sutilíssima, quase imperceptível, mas que se fazia sentir. É como se ele me dissesse: os índios sempre tocam fogo na carruagem, mas estou aqui, por perto. Obrigado.
Geneton Moraes Neto participou do Ciclo de cinema Super-8 do Recife,
na década de 1970. Foto: Reprodução
Hora de dizer o óbvio: Geneton é um dos maiores jornalistas do Brasil. Íntegro, ético, incorruptível, workaholic e obcecado. A paixão juvenil pelo jornalismo se manteve até o último momento e irá sobreviver a ele. São centenas de textos, artigos e entrevistas disponíveis na rede que vão sempre surpreender o leitor pela inteligência e argúcia. Uma aula de jornalismo de qualidade, independente, insubmisso, iconoclasta e criativo; e de memória, também. Documentos históricos, acervo valiosíssimo, produzido por alguém que amava o ofício.
Hora de escrever o não óbvio. Aviso aos medíocres. Agora mesmo, em qualquer lugar do planeta, tem um cara de 18 anos disposto, por meio do jornalismo, a tornar insuportável a vida dos facínoras, tiranos e poderosos desta colônia penal; e, ainda, decidido a lutar por uma humanidade mais fraterna, solidária e afetuosa. Geneton acreditava nisso. Esse é o seu legado. Essa é a sua biografia.
EXPEDIÇÕES À NOITE MORENA
Primeira estação
Tenho pensado sobre se valeria a pena escrever neste caderno algumas dessas frases, palavras, ideias que ouço, leio ou digo, diariamente. Há uns quinze dias guardei esse caderno numa gaveta qualquer, à espera do momento de preencher as folhas em branco. Creio que não escrevi nada até agora porque, de qualquer forma, me assalta o receio de que tudo não passe de um desses arroubos adolescentes de escrever, simplesmente. Mas agora, nesse domingo sem cor, de inverno, minha vontade de guardar algumas frases soltas é maior que qualquer receio ou preguiça. Há também uma vontade maior: esta de não escrever apenas profissionalmente. Penso que devo também escrever longe de uma mesa de redação, nem que o destino do que eu escrevo seja tão somente uma folha em branco de um caderno qualquer.
Do ano passado para cá, venho multiplicando a leitura de livros, para preencher os vazios. Vencer a mediocridade, na medida do possível. Não é ler para ostentar uma pseudocultura. É descobrir, penetrar, vasculhar as aparências. Interrogar. Os livros são imensas janelas por onde se pode vencer o claustro das quatro paredes. Não é possível definir a necessidade de vasculhar as páginas dos livros. “A ordem é: ampliar a área da consciência”. Luz, altura, claridade, ar. Nem paredes, nem portas, nem tetos, nem claustros. Nada. Tudo.
Cinema em Super-8: janelas, também. Com uma diferença: em vez de espectador, qualquer um, como eu, pode ser autor.
Quando despertares com os olhos incendiados de cores, te verás cercada pela eternidade das estátuas, pelas vozes invictas dos satisfeitos, por nosso medo domado. Ofegante, como quem aperta o gatilho do coração, brilharás os olhos de mãe e de mata, e me apontarás os caminhos da festa, e ouvirei nossas vozes represadas e ensaiaremos um gemido de dor e vitória, para saudar o definitivo instante de sol.
*Textos extraídos dos diários de Geneton Moraes Neto, de 1985 a janeiro de 1997.
1. GENETON POR GENETON
Pequeno ensaio autobiográfico
Como fez durante quase cinco décadas com os personagens de suas reportagens, certo dia, em 2004, Geneton Carneiro de Moraes Neto escreveu, a seu modo, sobre a sua própria trajetória. Como se fosse a abertura de uma das suas incríveis entrevistas, assim ele se descreveu, quando criou seu primeiro blog:
Nome: Geneton Moraes Neto. Recife, 13/07/56.
Se o autor fosse uma celebridade, já teria prontas as primeiras frases da autobiografia: “Nasci numa sexta-feira 13, num beco sem saída, numa cidade pobre da América do Sul: Recife. Tinha tudo para fracassar. Fracassei”.
Quem sabe, a autobiografia poderia também começar assim:
“Em suma: fracassei. Aos fatos, pois”.
Darcy Ribeiro sendo entrevistado por Geneton Moraes Neto. Foto: Reprodução
Acontece que o autor não é uma celebridade. Jamais escreverá uma autobiografia, por absoluta falta de assunto. Resolveu, então, gastar logo esses primeiros parágrafos — ou leads, na linguagem do submundo jornalístico.
Se fosse supersticioso — ou pelo menos previdente —teria se recusado terminantemente a sair da maternidade, por ter nascido numa sexta-feira 13 do ano de 1956, num beco sem saída. Mas saiu.
Pressentiu desde cedo que não tinha a menor vocação para exercer profissões realmente importantes: por esse motivo, aos treze anos, em 1970, já era um praticante amador do jornalismo — em artigos que tentavam clonar o estilo bombástico de David Nasser, no suplemento infantil do Diario de Pernambuco.
Entre 1975 e 1980, trabalhou — primeiro, no Diario de Pernambuco; depois, na sucursal Nordeste de O Estado de S. Paulo — sempre como “repórter da geral”. Em Paris, para onde se mudou na esperança de um dia ver Charlotte Rampling andando na calçada num fim de tarde de inverno, foi camareiro do Hotel Mônaco, motorista de uma família rica e estudante de Cinema na Sorbonne.
Não fez carreira em nenhuma das três atividades: camareiro, motorista ou cineasta. Só veria Charlotte Rampling ao vivo e em cores vinte anos depois. Com irremediável ar de pateta, tirou uma foto ao lado da estrela. C’est la vie.
De volta ao jornalismo, no Brasil, trabalhou na Rede Globo Nordeste como editor e repórter. Como milhões de nordestinos atraídos ao “Sul Maravilha” pela lei da gravidade, terminou caindo no Rio de Janeiro.
Entre idas e vindas, trabalha na Rede Globo/Rio desde 1985. Já foi editor-executivo do Jornal da Globo e do Jornal Nacional; correspondente da GloboNews e do jornal O Globo em Londres; repórter e editor-chefe do Fantástico por duas vezes.
Não troca por nada o exercício da reportagem — a única função realmente importante no jornalismo. Tenta aplicar, na vida profissional, o mandamento de um velho jornalista do The Times. Toda vez que estiver entrevistando alguém, anônimo ou famoso, rico ou pobre, o repórter deve sempre fazer a si mesmo, intimamente, a seguinte pergunta: “Por que será que estes bastardos estão mentindo para mim?”
Existencialmente, é adepto de um inerradicável sentimento de desconforto que uma vez Paulo Francis (que falta ele faz!) resumiu com brilho. Se fosse remotamente capaz de articular uma frase inteligível cinco minutos depois de nascer, Francis teria perguntado aos presentes, ainda na maternidade: “Quem disse que eu queria vir pra essa joça?”
Há décadas o autor repete em tom inaudível a pergunta: “Quem disse que eu queria vir?”
Já que veio, faz jornalismo. É a melhor profissão para quem não consegue ser outra coisa na vida. Teve a chance de percorrer corredores da morte em prisões de segurança máxima americanas, ruínas de campos de concentração na Alemanha, além de entrevistar três astronautas que pisaram na Lua, duas sobreviventes do naufrágio do Titanic, o copiloto do avião que jogou a bomba atômica sobre Hiroshima, o produtor de todos os discos dos Beatles, o assassino do líder negro Martin Luther King, o promotor britânico que comandou a condenação dos criminosos nazistas no Tribunal de Nuremberg, o agente secreto britânico que armou um atentado — frustrado — para matar Hitler, o golpista que engendrou o célebre Assalto ao Trem Pagador inglês.
Entre trancos e barrancos, o jornalismo pode valer a pena. Faz de conta que vale.
Em 1993, Geneton Moraes Neto entrevistou James Earl Ray, assassino de Martin Luther King. Foto: Reprodução
Próxima reportagem, por favor.
Geneton reunia assim, para falar de si mesmo, alguns dos elementos característicos do seu texto: frases curtas, ironia, capacidade de síntese, dados curiosos e aparentemente superficiais associados a ideias complexas.
Ao ler o pequeno ensaio autobiográfico, o jornalista Luiz Cláudio Cunha, do Observatório da Imprensa, reagiu: “Bela mentira. Em quatro décadas de jornalismo, o Geneton do beco e da sexta-feira 13 tornou-se, para sorte de todos nós, um exemplo de sucesso e uma referência para todos os repórteres que tentam ser fiéis ao compromisso irrevogável de uma imprensa dedicada à verdade, à memória, à história e ao dever de consolar os aflitos e afligir os consolados”.
Luiz Cláudio Cunha não tinha dúvidas: “O jornalismo brasileiro ficou mais obtuso, medíocre, raso, frio, casmurro e sem respostas nesta segunda-feira, 22 do agosto sempre aziago”.
Foi nesse final de agosto de 2016, seis semanas depois de completar 60 anos, três meses depois de ter sofrido um aneurisma da aorta, que Geneton faleceu na Clínica São Vicente, na Gávea, Rio de Janeiro.
Mas se o perfil que traçara de si próprio era mesmo uma “bela mentira”, que histórias poderiam corresponder à verdade desse profissional que foi, para muitos que o conheceram ou simplesmente acompanharam a sua carreira em jornais e na televisão, um cineasta extremamente talentoso e um dos maiores jornalistas brasileiros das últimas décadas, alguém que redefiniu as exigências do texto das grandes reportagens, ou ao menos um dos melhores entrevistadores que encararam artistas, astronautas, políticos, criminosos, jornalistas ou generais que afinal tiveram a sorte imensa de figurar nas pautas de Geneton?
Mais: como escrever a biografia de alguém que não suportava a ideia de ser biografado?
Pessoa sem a menor vocação para o heroísmo, fugindo das autopromoções, da síndrome do ex-combatente a relembrar antigas batalhas, Geneton evitou durante anos (mas nunca se negou completamente) a dar ele mesmo entrevistas que tanto queria que suas fontes lhe concedessem. Esporadicamente, abriu exceções: por dever contratual, divulgando os livros que escrevia, ou para atender estudantes de jornalismo, por acreditar que sua experiência talvez pudesse acender a chama no coração de jovens repórteres, como Luísa Ferreira, da revista Arrecifes, que em 2011 ouviu dele:
Acho que o que acontece com a gente no início do nosso trabalho profissional marca pra o resto da vida. Sempre fui repórter, porque pra mim jornalismo sempre foi ir pra rua. Sempre considerei qualquer trabalho interno em redação uma perda de tempo. Eu sei que não é, mas é minha sensação. Eu preciso ver e ouvir alguém fazendo alguma coisa. Uma lembrança marcante é que aos 16 anos fui escalado para fazer uma reportagem no Hospital da Tamarineira. O editor me disse: “Diga que você tem uma irmã internada lá dentro, faça qualquer coisa, pule o muro, mas volte com a reportagem”. E foi o que eu fiz: entrei, me misturei entre os internos e vi quais eram realmente as condições de vida. Ninguém notou que eu não era paciente. Isso é o grave dessa história toda. Aí que eu descobri que tinha alguma coisa errada comigo [risos]. Depois eu voltei, me apresentei como jornalista e entrevistei a diretora. Ela disse que tinha uma equipe de nutricionistas que preparava as refeições dos internos, mas um dos internos tinha dito que vinha pedra no feijão, às vezes. Foi aí que eu aprendi uma lição que ficou pro resto da vida: sempre há mais de uma verdade nos fatos.
Para traçar o retrato dessa figura que falava baixo, gostava de ouvir repetidas vezes o Abbey Road, dos Beatles (“Não se fez, em música pop, nada que igualasse a beleza de Abbey Road — o auge dos Beatles”, diria em 2004), conseguiu sua primeira entrevista, publicada em jornal, aos 14 anos e odiava cuidar dos carros que possuía, não só há uma maneira, mas várias: viajar do Recife a Londres, passando por Paris e pelo Rio de Janeiro; revisitar as redações de O Estado de S. Paulo, do Diario de Pernambuco, da GloboNews; conversar com cineastas, editores, sua família e seus amigos; rever seus belos filmes, seus programas de televisão, ler suas reportagens e suas poesias, onde é possível encontrar versos como: “Viver de ver o verde mar”.
EXPEDIÇÕES À NOITE MORENA
Segunda estação
Hoje é 13 de julho novamente. As águas de julho se choveram todas hoje e só há pouco estiaram. A vida não tem sido triste nem alegre por esses anos. Não preciso fazer declarações de amor à vida. Basta que eu viva, certo de que o mundo inteiro não cabe de uma só vez nos olhos. E, então, haverá sempre espaços a serem preenchidos, rotas, caminhos, direções. Que tudo seja o verbo ir.
O tempo vem voando por essas semanas. A vontade de passar algum tempo estudando fora do Brasil começa a aumentar novamente em mim. A Espanha significa sempre um sonho de distância e alegria. O ato de renascer. Transformar o sonho numa passagem de avião ou de um transatlântico não depende somente de mim. De qualquer forma, apenas o céu parece a única paisagem que se encontra fora do alcance das mãos. Não sei qual será a minha maior vontade no próximo ano. O meu sonho espanhol, então, pode se transfigurar numa casa diante das areias e dos azuis da praia do Janga. Pouco importa, na verdade, o paradeiro. O que vale é a existência dos caminhos, rotas, direções; a possibilidade de luz, altura, claridade. O Rio de Janeiro continua sendo. O verão se aproxima e desde já me alegra. Domingos em Candeias, a paisagem em chamas, azul. Os olhos incendiados de cores. O verão me alegra, o verão não se escreve.
Ando um pouco desanimado. Hoje, pelo menos. Haja coração.
2. A CERIMÔNIA DO ADEUS
Uma morte tão súbita
No falso outono brasileiro de 2016, as notícias do Rio de Janeiro começaram a chegar ao Recife e eram assustadoras. No dia 17 de maio, recebemos o seguinte e-mail:
— Paulinho e Aninha, aqui quem fala é Joana, filha do Geneton, que continua no hospital já faz 12 dias. Ele mandou uma mensagem para vocês:
Só para dar uma notícia, em meio a boatos. De fato, escapei por muito pouco. O médico disse que cheguei a estar em 70% do processo de morte súbita. Por hora, obviamente, eu não teria muita coisa boa para contar, porque ainda estou no purgatório. Agora, é torcer para sair daqui sem muitas escoriações depois dessa trombada federal. Como diria Gilberto Gil “tudo, tudo, tudo vai dar pé”. Não posso falar muito. Em uma situação assim, a gente fica igual a uma vaca choradeira. Só para vocês terem uma ideia: bastou uma enfermeira, obviamente humilde, uma dessas brasileiras que pega dois ônibus para chegar em casa, dizer que se eu precisasse poderia contar com ela fora do hospital, em qualquer lugar… Em um minuto, nós dois estávamos chorando abraçados no meio do quarto.
Penso em vocês. Beijos, Geneton.
Dois dias após, 19 de maio, depois de termos respondido, Elizabeth Garson Passi (Beth), esposa de Geneton, nos escreveu:
— Paulinho, aqui é Beth. Geneton adorou receber a mensagem de vocês, mas continua fora de combate, sem poder falar muito. […] Beijos meus e de Geneton para você e Aninha. Ele manda para vocês o velho mantra de Caetano: “E Pelé disse love, love, love”.
No dia 4 de junho, outra mensagem:
— Paulinho/Aninha, aqui é Clara, filha do Geneton. Estou com meu pai na UTI e ele preferiu ditar algumas linhas para vocês:
Olá! As coisas estão indo para frente na medida do possível. Como vocês devem imaginar, as horas demoram a passar numa UTI. Nem quero falar das madrugadas. Já passei horas e horas olhando prum teto. Quanto ao corpo, eu me sinto como um vietcongue absurdo que acabou de sair da floresta, todo estropiado, furado por mil agulhas, insone, mas de olho no sinal que pode abrir a qualquer momento e me tirar daqui. Chico César cantando aquela serenata bonita, que entrou na novela das 9, virou o som mais triste do mundo para mim. São as lembranças que vou carregar. Agora é esperar para ver o que vai acontecer. É uma batalha de cada vez. Eu me lembro de que, na sucursal de O Estado de S. Paulo, alguém (pode ser Preá, pode ser Paulo Moraes) contava uma história engraçada de um cachorro que começava a chorar quando ouvia Triste partida. Eu devo ser a versão atualizada desse cachorro. É isso. Penso em vocês. Beijos, Geneton.
Entre as suas entrevistas famosas, está a que fez com Yoko Ono, viúva de John Lennon. Foto: Reprodução
O que aconteceu logo antes dessas mensagens? Na noite da quarta-feira, 4 de maio de 2016, Geneton estava em casa, um apartamento no oitavo andar de um prédio da Rua General Venâncio Flores, no Leblon. Tinha pedido, como de costume, a comida japonesa que adorava e acabado de jantar com Beth. Foi deitar-se logo após o jantar. Beth decidiu tomar um banho e, ao terminar, encontrou Geneton em pé, na sala, ofegante, sem conseguir respirar direito.
Geneton não era alguém excessivamente preocupado com a saúde, até porque nunca tinha tido doenças sérias durante a vida. Tomava medicação para controlar a pressão e tivera uma crise renal — por conta de um cálculo, finalmente expelido naturalmente. Nos últimos anos, andava com sobrepeso — chegou a pesar 115 quilos, mas fizera uma dieta e, nos meses que antecederam sua morte, voltou aos 90 quilos. Naquela noite de maio de 2016, mesmo sem querer dramatizar esse tipo de situação, a sensação de sufocação foi forte o suficiente para que ele aceitasse que Beth o levasse até a Clínica São Vicente, na Gávea, a dez minutos de onde moravam, a mesma clínica onde nascera o terceiro filho deles, o ator Daniel Passi. A primeira suspeita foi uma gripe, e os médicos da emergência fizeram uma nebulização, que não adiantou de nada.
A preocupação de Geneton, naqueles momentos de atendimento de emergência, era ter agendado uma equipe da GloboNews para o dia seguinte, com o objetivo de entrevistar o jornalista e escritor carioca Fernando Pedreira, ex-embaixador do Brasil na Unesco. Como de costume, durante toda a manhã, Geneton tinha preparado cuidadosamente as perguntas que queria fazer a Pedreira, a partir do livro de memórias do embaixador, Entre a lagoa e o mar. Digitou no computador e imprimiu as questões em fonte 16 para facilitar a leitura durante a entrevista. Uma das perguntas — que ficou para sempre sem resposta — era:
O senhor faz um julgamento duro de nomes importantes da oposição ao regime militar. Chega a chamá-los literalmente de farsantes e trapalhões, porque, segundo o senhor, eles queriam sabotar o processo de abertura política. Por que haveriam de sabotar um processo que, em tese, seria bom para todos?
Na clínica, a partir de certo momento, a falta de ar já o impedia de falar e Geneton foi levado ao CTI. Ao amanhecer do dia 5 de maio, uma médica informou que o diagnóstico era de aneurisma na aorta, um quadro gravíssimo em qualquer circunstância. Os médicos optaram por colocar uma prótese entre o coração e a artéria. Assim foi feito. A intervenção foi considerada bem-sucedida. Beth e os filhos — a jornalista Clara, a artista plástica Joana e o ator Daniel — ficaram aliviados porque, a esta altura, já sabiam que o risco de morte nos casos de aneurisma da aorta chegava a setenta por cento.
Depois da primeira cirurgia e dos primeiros dias de aparente recuperação, começaram a surgir outros aneurismas na aorta, a maior parte abaixo do coração, na região abdominal. A recomendação era “blindar” uma grande extensão da artéria e, no dia 25 de junho, aconteceu a segunda cirurgia. Com a função renal já prejudicada, Geneton passa a fazer hemodiálise. Apesar do agravamento que o levara à segunda intervenção, havia sinais de melhora e até de alta hospitalar — e mesmo temeroso em deixar a clínica, Geneton foi ficando mais animado. Beth e os filhos se revezavam para dormir com ele. No final do mês de julho de 2016, o cineasta e diretor de fotografia Walter Carvalho foi visitá-lo e conversaram a respeito do filme que fariam juntos sobre o poeta Carlos Drummond de Andrade — o grande projeto ao qual Geneton estava dedicado antes de adoecer. Os grandes amigos da confraria, os colegas de trabalho George Moura, Ricardo Pereira e Ernesto Rodrigues, que há anos se reuniam uma vez por mês num restaurante do Leblon, também apareceram. O amigo Claudio Renato Passavante também o visitou no hospital.
— Levei um livro do Elio Gaspari e foi a última vez que nos falamos. Ele estava bem-humorado, mas também muito saudoso, ele chorava por tudo. Ele andava comovido com tudo. Ficava olhando as fotos dos netos. Ele me contou a história de quando ouviu os médicos dizendo sobre sua condição: “Perdemos o pulso! Perdemos o pulso!” E revelou sua maior preocupação: “Será que do outro lado vai ter alguém para me ouvir?” Eu pensei: ele era um jornalista transcendental, que pensava na comunicação do outro lado da vida. Mas ele continuava com muita esperança, achava que iria sair logo. Não esperava que o quadro fosse se agravar.
No início de julho, outra notícia péssima: os médicos se reuniram com a família e com Geneton para informar que a área onde tinha sido colocada a primeira prótese, bem perto do coração, estava se esgarçando. A ideia era fazer sua substituição como nas duas intervenções anteriores, pelo procedimento de videolaparoscopia. De toda forma, uma sala de cirurgia foi reservada, para o caso de necessidade de uma intervenção mais radical. Geneton ouviu os argumentos e aceitou a nova cirurgia, que foi marcada exatamente para o dia do seu aniversário, 13 de julho de 2016, quando completaria 60 anos.
Sessenta anos era a idade que Geneton usava como fronteira mágica, imaginária. Seria o momento de virada profissional — a partir da qual passaria a se dedicar, principalmente, ao cinema. Também o tempo de retornar aos poucos a Pernambuco, às praias do Janga e de Candeias, ao Sertão, depois de tantos anos longe de casa. Disse a muitos amigos, quando deixou de fumar, aos 46 anos, que voltaria aos sessenta, “já que não daria mais tempo de adoecer por conta da nicotina”.
Apaixonado pela vida, Geneton espreitava a morte desde muito jovem. Em 1994, na abertura do seu Dossiê Drummond, recorreu a Elias Canetti (“A morte é o primeiro e mais antigo, haveria quase a tentação de dizer: o único fato”) e a Schoppenhauer (“Quão longa é a noite do tempo sem limites, comparada com o curto sonho da vida!”). Entrevistou prisioneiros condenados à morte. No diário que manteve entre 1977 e 1985, anotou uma frase do escritor Érico Veríssimo: “Eu só morrerei sob protesto”.
Na noite que antecedeu o procedimento, Geneton pediu ao filho Daniel que dormisse com ele. “Foi muito bom ter passado aquela noite no quarto com ele. A última vez que o vi totalmente consciente. Estávamos tranquilos e assistimos juntos uma entrevista do atacante Neymar na televisão”. Daniel contou que Geneton estava sereno quando seguiu para implantar a nova prótese, no início da manhã, o que seria, segundo os médicos, um procedimento simples e rápido. Não foi bem assim. O paciente, que deveria ter retornado ao quarto no final da manhã, apenas saiu às oito da noite, depois de quase doze horas de sala de cirurgia. Após a intervenção — e por um período de 40 dias —, a situação só se deteriorou. A esperança partiu lentamente, como um navio que desatraca do cais.
Em 2015, um ano antes do seu falecimento, Geneton Moraes Neto junto aos amigos Ernesto Rodrigues, Ricardo Pereira e George Moura, no Rio de Janeiro. Foto: Reprodução
Um dia, era 22 de agosto de 2016 — exatamente na mesma data, um quarto de século antes, da morte de Glauber Rocha, o cineasta que Geneton tanto admirou —, a esperança desapareceu de vez no horizonte azul. Outra vez. No velório, sobre o caixão havia páginas de suas crônicas e roteiros. Um deles era o do seu antológico Super-8 Funeral para uma década de brancas nuvens, cuja última sequência foi filmada no Janga, em Olinda. Foi bem perto de lá, na praia de Pau Amarelo que, no dia 24 de setembro de 2016, as cinzas de Geneton foram jogadas ao mar.
EXPEDIÇÕES À NOITE MORENA
Terceira estação
Volto a sonhar. Retomo minhas antevisões de uma vida longe dessa paisagem. Lembro que minha idade e minha vida, hoje, me dão uma maravilhosa sensação de disponibilidade. Nada me prende profundamente, nada me acorrenta. Minha ocupação maior, acima dos expedientes que cumpro e das aulas que assisto, é traçar o rumo dessa disponibilidade, é entender a coerência dos sonhos, é saber que nada existe de tão importante quanto ter a consciência da efemeridade de tudo. Convivo com meus fantasmas e minhas alegrias de criança, minhas cegueiras, meus portos de luz, altura, claridade. Vejo meu rosto eventualmente cansado. Eu tenho jeito de quem não se espanta, de quem não entrega os pontos. O verbo ser vale a pena. Seja como for. Além de mim, há sempre a imensidão.
Hoje foi um dia que se antecipou ao verão. Voltar às areias que se chamam Candeias, jogar bola, tomar cerveja. Brinquedo de criança. Ontem de noite na cama: mulher como se fosse bicho do mato. Nesta hora exata, são corpos de animais selvagens, idade da pedra, a beleza maior. Não há cultura, nem civilização, nem relógios, nem nada de errado. Nem paredes, nem prisões. Só corpos, como se fossem animais selvagens. A idade da pedra e da razão, bela como a conquista das estrelas.
Vi hoje uma moça que é um Rio de Janeiro, uma dessas que carregam canteiros nos olhos, sem que seja preciso que ninguém note. Uma dessas que são o verbo ser. Um Rio de Janeiro.
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Extra: Leia também texto de Marcelo Abreu, Geneton Experimental, de abril de 2018, que comenta sua produção em Super-8.
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ANA FARACHE é jornalista, fotógrafa, doutora em Comunicação pela UFPE. Trabalhou em revistas, jornais e na televisão. Atualmente é Coordenadora do Cinema da Fundação Joaquim Nabuco e da Cinemateca Pernambucana. Participou do movimento superoitista dos anos 1970.
PAULO CUNHA é jornalista, pesquisador e doutor em Artes pela Universidade de Paris I. Foi Professor Titular na UFPE e, como jornalista, trabalhou em jornais e na televisão. Participou do Ciclo de cinema Super-8 do Recife realizando curtas experimentais, entre os quais Esses onze aí e O coração do cinema, em parceria com Geneton Moraes Neto.