Os filmes, realizados entre 1973 e 1984, foram exibidos, na época, em festivais e para pequenos grupos de universidades e cineclubes. Com o tempo, foram relegados a segundo plano pela vasta produção de Geneton no campo do Jornalismo e dos livros. Vistas hoje, as obras suscitam uma rica discussão sobre a estética do cinema e o papel do Super-8 nas décadas de 1970 e 1980, que no Recife teve vários trabalhos antológicos, como os de Jomard Muniz de Brito, Amin Stepple, entre muitos outros. Todos realizados numa época em que o cinema experimental não tinha produção, nem se sabia o que seriam as leis de incentivo à cultura no país.
A produção de Geneton Moares é fortemente influenciada pelos valores da contracultura, sendo uma reação aos anos mais duros do regime militar brasileiro. Como realizador de cinema, bebia nas fontes do francês Jean-Luc Godard e do baiano Glauber Rocha. Inspirava-se na música popular, sobretudo no rock e em Caetano Veloso. Basicamente os filmes revelam o mesmo universo de influências e interesses que iria nortear o trabalho dele nos anos seguintes.
Caetano dá entrevista a Geneton (dir.), no Diario de Pernambuco, 1971
O primeiro curta, Mudez mutante, de 1973, é o mais simples, quase minimalista. Em uma pequena sala, um casal silencioso lê revistas, enquanto a câmera percorre as paredes repletas de manchetes de jornais e revistas. Provavelmente por pura coincidência, lembra alguns curtas de Wim Wenders na fase inicial. Nessa discreta reflexão sobre a liberdade em tempos de ditadura, já se vê o uso cênico das manchetes de jornais misturado ao uso de músicas. Em película, é o filme em pior estado de conservação, mas, ironicamente, agora transferido para o digital sem restauração – a imagem esgarçada pelo tempo acaba apresentando outro elemento estético interessante para o conteúdo da fita.
Isso é que é, de 1974, baseado em poema-processo de Ney Leandro de Castro, tem roteiro de Amin Stepple. É claramente uma obra que pode ser atribuída ao idealismo juvenil. As imagens mostram alguns jovens de bodoque na mão mirando anúncios de empresas multinacionais nas ruas do Recife. A mensagem simplista fazia sentido então – e tem o seu encanto para muitos ainda hoje. O jingle da Coca-Cola, que dá título ao filme, é tocado na trilha sonora e também pichado numa parede sobre a data de 1822, o que prenuncia uma preocupação geral nos filmes: a questão da identidade nacional e da independência do Brasil.
A flor do lácio é vadia, de 1978, tem a ótima narração de Jomard Muniz de Brito enquanto a câmera percorre as ruínas do Forte Orange, em Itamaracá. O texto fala direto com o espectador, como fazia Godard na sua fase militante. “O cinema comporta discursos desde que o país seja o Brasil”, diz o texto. “O Brasil da Rede Globo não confere com o original.” As possíveis ironias da mensagem só aumentaram com o tempo.
Em parceria com o amigo Paulo Cunha, Geneton fez, em 1978, Esses onze aí – um filme panfletário, a favor do futebol. O hoje professor de Cinema Paulo Cunha coordenou a digitalização da obra de Geneton junto à Cinemateca Pernambucana. O processo foi realizado no laboratório Pro8mm, em Burbank, na região metropolitana de Los Angeles. Esses onze aí é provocador do início ao fim, ao desmistificar as teorias que apresentam o futebol como uma atividade alienante. Diz a narradora Juliana Cuentro, dedo em riste, olhando para a câmera: “Este filme é dedicado a Pelé, o gênio da raça”. Muita gente pensou que era ironia. Não era. Geneton tinha, entre outras qualidades, a de não seguir o rebanho das opiniões consensuais no grupo em que circulava. Curioso é o uso livre que se fazia de música, neste caso de Jimi Hendrix e das Frenéticas, sem preocupação com direitos autorais ou obtenção de permissão. A pequena circulação dos filmes facilitava que os artistas não se preocupassem com isso.
Filme de Geneton traz o Clássico das Multidões (Sport x Santa Cruz), de 1978. Imagem: Reprodução
CINEMA TOTAL Em Funeral para a década de brancas nuvens, de 1979, Geneton consolida sua propensão para os títulos longos, criativos e de tendência bombástica que seriam usados em muitos livros e documentários posteriores para a televisão. Brancas nuvens é provavelmente o mais conhecido e celebrado trabalho dele em Super-8, mas talvez o mais datado. Reflete exatamente a visão que a década de 1970 tinha de si própria. Essa visão pessimista como a “década do silêncio” e a “década sem bandeiras” é desmentida pela riquíssima produção cultural da época – no Brasil e no mundo – e pelo próprio curta em Super-8. É um filme que utiliza todos os recursos estéticos que caracterizam o trabalho experimental de Geneton: os letreiros com mensagens, a colagem musical diversificada (Luiz Gonzaga, Roberto Carlos, Moraes Moreira, Joe Cocker) e as fotos de personalidades como Carlos Marighela, Roberto Carlos, Richard Nixon, Papa João XXIII. O texto poético, forte e político – em parte, baseado em poema de Lawrence Ferlinghetti – é narrado para o espectador num tom irônico-panfletário, dando margem a dubiedades.
A ironia está mais do que nunca presente em Fabulário tropical, de 1979, que anuncia logo no início: “Um filme financiado com o décimo-terceiro salário, sem desconto do Imposto de Renda. Obrigado, Receita Federal, um abraço”. O trabalho é definido como um filme “épico-paupérrimo” e mostra um passeio turístico pela cidade fazendo uma interpretação crítica da história pernambucana em tom de escracho.
A esperança é um animal nômade, de 1981, foi rodado em Paris e releva uma certa obsessão pelo tema da morte, presente no trabalho de Geneton. Há imagens plasticamente bonitas do metrô de Paris com a música Because, dos Beatles, ao fundo. O texto é muito poético, inspirado e, mais uma vez, ironicamente panfletário. “Copiar a frase: ‘Só o futuro é revolucionário’. De novo: ‘Só o futuro é revolucionário’”, repete a narração.
Dr. Francisco, rodado entre 1981 e 1984, está mais próximo das entrevistas de TV que tornariam Geneton famoso nacionalmente. Mas há enquadramentos inusitados do entrevistado Francisco Julião, ao fazer revelações sobre sua trajetória política. Mais ruínas (uma obsessão do realizador), desta vez no coliseu romano.
Loja dos trapos do coração, de 1982, é basicamente uma homenagem a Glauber Rocha, uma colagem de entrevistas dadas pelo cineasta à televisão, entremeadas com uma personagem que anda numa mata com uma arma na mão – com cortes para estátuas da liberdade filmadas em contra-plongée. Enquanto isso, no áudio, escutam-se discursos nazistas em alemão e grunhidos de animais. Geneton nunca foi afeito a dogmas políticos e não tinha medo das patrulhas ideológicas. Daí também vem a admiração por Glauber, evidente em Lojas de trapos, mostrando a fase na qual o polêmico cineasta baiano transitava entre o apoio ao general-presidente Ernesto Geisel e suas reflexões sobre socialismo e cristianismo.
O coração do cinema, de 1983, apesar de ter sido rodado originalmente em 16 mm, circulou em Super-8 e foi incluído na digitalização. O filme, também co-dirigido por Paulo Cunha, é livremente baseado num texto do poeta russo Vladimir Maiakovski. Jomard Muniz de Britto caminha, filmado de costas e na contraluz, gritando: “Eu estou em chamas”. E escreve numa parede: “Acorda Glauber, eles enlouqueceram”.
A cinemateca digitalizou também curtas-metragens, como: Conteúdo zero – um filme para desentendidos, de 1974, que mostra Caetano Veloso; Verão, veredas, de 1976; e também os títulos Quando JK; Corinthians, coração; América morena I; América morena II, todos de 1977.
Com a digitalização, os curtas podem ser exibidos sem risco de se perderem definitivamente, já que, com o tempo, as cópias em película se deterioram e correm o risco de se partir de forma irremediável, durante as exibições. A cinemateca mantém as cópias em 4K para exibições eventuais em tela grande, no Recife ou em convênio com outras instituições do país. Os filmes podem também ser consultados nos terminais da própria cinemateca, na Fundaj de Casa Forte.
Falar em Super-8 caseiro normalmente traz o tema da facilidade atual de se registrar imagens com o celular. A comparação é tentadora, mas enganosa. Um trabalho como o de Geneton mostra que, para ter qualidade e permanência, ele é fruto de muita leitura e um amplo mergulho nas referências do próprio cinema, da música, da literatura e da história. E fruto até de uma época onde era possível ser experimental sem compromissos com agendas políticas.
MARCELO ABREU é jornalista, autor dos livros-reportagem De Londres a Kathmandu e Viva o Grande Líder.